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Opinião

Inimigo X

Inimigo X

Artigo por RED
18/01/2024 05:20 • Atualizado em 19/01/2024 08:51
Inimigo X

De CLÁUDIO COUTO*

É difícil afirmar cate­goricamente agora, mas o dia 8 de janeiro de 2023 pode ter sido o fechamento de um ciclo iniciado em junho de 2013, quando as jornadas de protesto começaram a tomar as ruas País afora, com a direita saindo do armário e sua franja extremista emergindo do esgoto. Franja esta, aliás, muito maior do que se poderia imaginar até então.

O possível fechamento de ciclo não concerne, contudo, ao fim da presença da extrema-direita na política brasileira, mas ao ponto culminante de sua emergência, quando o autoritarismo, a intolerância e a virulência extremistas tomaram corpo da forma mais palpável.

A comemoração de um ano da intentona bolsonaresca é muito reveladora do significado que esse episódio tem em nosso presente e pode vir a ter futuramente. Lembrando que o significado de “comemorar” não se restringe a “festejar”, como no uso mais habitual do termo. “Comemorar” quer dizer “memorar junto”, recordar coletivamente. A importância de nos lembrarmos juntos de algo transcende a ideia de festejo e, por vezes, tem a ver justamente com o oposto disso: lembrarmo-nos de algo para lamentar, frequentemente para evitar que tal coisa se repita. Eis o sentido de memoriais e museus de genocídios e da resistência a ditaduras.

A comemoração do último dia 8 foi muito reveladora do que a intentona ainda representa: pelos presentes e ausentes, pelo que foi e pelo que não foi dito. Falou-se na necessidade de superar a polarização, de buscar a união do País, de assegurar a democracia como o único jogo político possível. Cabe questionar: de que polarização se trata? Que divisão é essa que flagela o País? Quem se coloca contra a democracia?

A maioria das intervenções da solenidade falhou em sanar tais dúvidas, pois elas tinham um sujeito indeterminado – o bolsonarismo –, cuja nomeação permitiria respostas claras. Com exceção do presidente da República, nenhum dos demais oradores chamou a coisa pelo nome. E há razões para isso, elas próprias indicadoras do problema que precisa ser superado para que o 8 de Janeiro efetivamente se encerre.

Ao mesmo tempo que perpetrou as barbaridades na Praça dos Três Poderes, o bolsonarismo segue como partícipe regular do jogo político brasileiro: dá as caras em bancadas legislativas, em governos estaduais e municipais, integrando partidos, disputando eleições, sem que precise se disfarçar. Ora, se atua como ator legítimo no palco democrático, de que maneira o nominar como aquilo que a própria democracia deve combater em sua defesa? Eis por que ministros do STF, o procurador-geral da República e a governadora que representou seus pares ali presentes não puderam dizer claramente de quem falavam. Se o fizessem, o ato cívico de rememoração do 8 de Janeiro seria tachado de evento partidário. Pior, atores de quem se exigem posturas isentas (como juízes e promotores) seriam acusados de partidarismo. E, com isso, eles é que perderiam a sua legitimidade.

Trata-se de uma cilada, do mesmo tipo que Bolsonaro, na Presidência, utilizou para enredar o Judiciário: transgride, gera reação judicial, ataca o Judiciário pela reação, o Judiciário defende-se do ataque, acusa o Judiciário de partidarismo por se opor a ele. O incrementalismo e a dissimulação desse tipo de solapamento da democracia permitem ao sujeito autoritário apresentar-se como se fosse apenas mais um partícipe legítimo da democracia que ele mesmo ataca. Assim, a defesa da democracia contra seus assaltos é denunciada por ele como uma tentativa antidemocrática de reprimi-lo. Insidioso.

A polarização extremada e assimétrica que vivenciamos não se encerrará enquanto houver sujeito indeterminado, mas vociferante e ativo, perseverando no assalto à democracia e ao mesmo tempo dela se valendo para dissimular o ataque. É kafkiana a necessidade de se falar o tempo todo contra a ameaça à democracia sem, contudo, poder nominá-la.

Até que seja possível, o 8 de Janeiro segue em aberto. Sua superação só ocorrerá quando diferentes instâncias institucionais puderem tratar de um sujeito determinado, o bolsonarismo, abandonando referências genéricas que pairam no ar – fascismo, extremismo, autoritarismo – sem um ator concreto a encarná-las. Assim, o combate a tal ameaça torna-se mais difícil, se não inglório.

A dificuldade ficou clara em um ato falho do ministro do STF, Luís Roberto Barroso, que em julho de 2023 falou em “derrotar o bolsonarismo” e depois teve de se corrigir, dizendo que, na realidade, se referia ao “extremismo golpista e violento que se manifestou dia 8 de janeiro”. Ora, de fato o malogro do 8 de Janeiro foi a derrota de quem o perpetrou, o bolsonarismo, e não de um extremismo, fascismo ou autoritarismo abstratos ou genéricos.

E que fique bem claro, não foi um malogro completo. Houvesse sido, seria do bolsonarismo que até mesmo juízes poderiam falar e não o teríamos como sujeito indeterminado de discursos. Mas de que forma tal derrota completa poderia ocorrer, de modo que pudéssemos chamar a coisa pelo nome?

A solução só se dará quando o 8 de Janeiro, como sinédoque do bolsonarismo, tiver como consequência a punição judicial (e não só política) de seus artífices. A construção da intentona não foi produto de um improviso de última hora. Ela foi instigada e diligentemente construída ao longo de quatro anos de governo, com as reiteradas investidas deslegitimadoras contra o Poder Judiciário, o Congresso, a legalidade, a imprensa, a oposição leal e o processo eleitoral.

Individualizando condutas, identificando e sentenciando responsáveis pelo golpismo, determinar-se-á o sujeito. Claro que o ator principal nessa história é o ex-presidente, que dá nome ao movimento extremista que lidera.

Enquanto não pudermos falar de “bolsonarismo” da mesma forma que hoje falamos de fascismo, nazismo e autoritarismo, permaneceremos numa situação de ambiguidade: seguiremos tratando de ataques à democracia no Brasil sem apontar o seu autor. E é muito complicado defender a democracia de um sujeito indeterminado.


*Professor da FGV-EAESP e criador do canal do YouTube Fora da política não há salvação.

Publicado na edição n° 1293 de CartaCapital, em 11 de janeiro de 2024.

Imagem em Pixabay.

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