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“Independência ou Morte”: um quadro injustiçado

“Independência ou Morte”: um quadro injustiçado

Artigo por RED
09/09/2022 02:33 • Atualizado em 09/09/2022 16:13
“Independência ou Morte”: um quadro injustiçado

De FLÁVIO AGUIAR*

A primeira referência desabonadora sobre o quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, veio de minha
mãe. Eu estava no antigo primário, estudava no Colégio Estadual Paula Soares, na rua General Auto. Não me lembro
por que falávamos sobre o quadro. Talvez fosse por algum dever escolar. Ela me disse que o quadro não correspondia à “verdade dos fatos”. D. Pedro, o futuro Imperador, não estaria a cavalo, mas a pé. Também não estaria segurando a espada, mas as calças. Parara por causa de uma diarreia (ela usou uma palavra mais chula, que não vou reproduzir aqui). Enfim o quadro era “falso”. Não me lembro da solução que eu dei para a contenda instalada em mim, entre a descrição positiva e grandiosa que eu recebera da escola e a negativa e depreciativa que minha mãe me dera.

Dali por diante convivi anos a fio com a disputa íntima e só comecei a resolver a questão, se é que a resolvi, quando, já na universidade, compreendi melhor e mais a fundo as complexas relações entre arte, cultura, história, sociedade, psicologia e política. Aprendi, com os excelentes mestres que tive, que para considerar o significado de uma obra de arte, é preciso, primeiro, analisar a sua estrutura interna; depois, cotejá-la com seu contexto artístico, o presente, o passado, e sua projeção de futuro; para só então procurar discernir como, em seu interior, se espelha seu contexto cultural, histórico, social, político (que pode compreender o econômico) e o psicológico.

A partir daí é possível discutir o valor da obra, em termos artísticos e culturais. Por valor, entendo seu papel, sua função, diante do contexto a que pertence e que lhe pertence, valor que pode variar de acordo com as mudanças históricas do olhar que a contempla. Não poderei me estender demais nisto que, na verdade, é um esboço de análise. Pretendo, isto sim, apresentar alguns vetores de pensamento.

Desconstruindo leituras: o pseudo-fotógrafo e o pintor real

A meu ver, tanto a leitura grandiosa quanto a depreciativa hoje correntes cometem um mesmo erro de perspectiva em relação ao quadro, embora se apresentem como opostas. Para mim, parecem dois lados de uma mesma moeda. Ambas veem o quadro como se ele fosse o equivalente a uma fotografia. A primeira vê nele uma reprodução fiel dos “fatos”; a segunda o vê como uma falsificação dos mesmos. Ambas veem seu autor, Pedro Américo, como o que ele “seria” ou “deveria ser”: um fotógrafo, artista emergente na segunda metade do século XIX, e que se firmou no século XX, não como o que ele de fato era: um pintor acadêmico, que executou o que se entendia então por um “quadro histórico”, no caso, com um forte pendor alegórico.

Na leitura negativa, se acumulam observações sobre os “erros” do quadro . Naquelas viagens, diz-se, que eram longas, subindo ou descendo serras (no caso, a Serra do Mar, entre Santos e São Paulo) não se usavam cavalos, mas jumentos e mulas, de passo e trote mais suaves. Não haveria tanta gente na comitiva do Príncipe: não era o costume, dado que não havia guerras nem revoltas armadas na região, apenas contendas políticas. Os viajantes não estariam em trajes de gala, como estão no quadro: os Dragões (futuros “da Independência”) com seus capacetes heráldicos, os civis com cartolas ou chapéus do tipo “bicórneo”, ou de dois bicos, como o do Príncipe. Este, para ler as cartas que lhe chegaram enquanto se aliviava, estaria a pé, não sobre a montaria. Não havia público circunstante: o carreiro caipira de roupagem tosca, o cavaleiro que, diz uma versão, representaria o próprio Pedro Américo, nem o negro, cuja animália transporta dois cestos ao lombo, no fundo, à esquerda. Além disto, a paisagem onde o Príncipe parou seria completamente lisa, já no planalto, não havendo montanhas no horizonte. A comitiva sequer teria parado tão perto do riacho do Ipiranga, cujas águas banham as patas do cavalo ao pé do quadro; e aquelas seriam barrentas,
justificando o nome tupi-guarani, Y-piranga, “água vermelha”, e não azul celeste, como o respingo que chispa ao toque da ferradura. Fica a dúvida sobre se poderia ou não haver bananeiras por ali, como aparecem à direita do quadro. Desculpem-me os cultores das eternas desconstruções, mas esta leitura não se sustenta, assim como não se sustenta a que vê no quadro um realismo a la Frank Cappa, Alberto Korda ou Ricardo Stuckert.

Os círculos e a espada

Apontam as melhores análises estruturais que li sobre o quadro que este se organiza geometricamente, em torno de dois semi- círculos. Tomando-se o olhar do observador como ponto de referência, o primeiro desce da esquerda para a direita, seguindo o caminho de terra; o segundo, da direita para a esquerda, segue a linha dos militares a cavalo. Ambos os semi- círculos se encontram no pé do quadro, junto das patas dos dois cavalos que estão em frente ao Príncipe, este no segundo plano, mas acima dos cavaleiros. Um dos cavalos embaixo, à direita, é castanho e o outro, à esquerda, branco; acima, o Príncipe monta um cavalo castanho, à direita, e quase no
mesmo plano há um cavaleiro cuja montaria é branca, à esquerda, o que estabelece um ponto cromático de equilíbrio, contendo, como se fosse num relicário central e transparente, a convulsão dos movimentos frenéticos e dramáticos dos cavalos e dos cavaleiros, bem como os brados e braços erguidos dos civis, atrás.

Os cavalos e os cavaleiros dão ao quadro uma movimentação narrativa. Um deles, à direita, está arrancando os laços de cores portuguesas da ombreira; o outro, à esquerda, já os arrancou, e os joga ao ar para caírem por terra. Este teor narrativo, além de materializar o grito – “Soldados, laços fora!” – que teria antecedido o “do Ipiranga” – “Independência ou Morte!” – se estende ao grupo de militares, culminando, retroativamente, nos dois cavaleiros que ainda buscam suas montarias, bem ao fundo, à direita. O conjunto sugere que os cavaleiros foram surpreendidos pela decisão do Príncipe, o que sublinha o caráter absolutamente pessoal de seu gesto, como se este adviesse de uma força superior que é sua, ou que nele se manifesta. O que capta esta força? Sua espada erguida em direção aos céus, como o cajado dos peregrinos ou dos beatos milagreiros, funciona como se fosse um para-raios, fazendo a
ligação com uma Energia ou Vontade superior, que emana do céu, ou diretamente de Quem nele habita, isto é, Deus. E ela, espada erguida, reúne em si, como se formasse um feixe, o conjunto das demais espadas e dos braços que se erguem num coro visual, em sua direção. A Corte Civil, que segue o Príncipe por detrás, acompanha seu gesto altaneiro. O povo, ao lado do caminho e do gesto, a tudo acompanha com o olhar, entregando-o àquele que empunha a “espada da libertação”. Na visão do quadro, é bom lembrar…

Entre a Europa e o Brasil

O paraibano Pedro Américo recebeu a encomenda de pintar o quadro em 1885, por parte do Barão José Inácio Ramalho, Conselheiro Imperial. Ambos assinaram um contrato no ano seguinte, estabelecendo o prazo de três anos para a execução da encomenda. A partir daí o pintor fez minuciosa pesquisa sobre trajes da época e o movimento que levou à Independência. E também foi à Europa, pesquisar sobre o gênero “pintura histórica”. Esta última parte da pesquisa ilustra bem a condição do artista brasileiro, em todos os campos de atuação. O público a quem se dirigia, nas artes plásticas, na literatura, no teatro, na música, já possuía um padrão de consumo dominante e hegemônico: o europeu, particularmente o francês, o português e o italiano, com aberturas aqui e ali para outras nacionalidades, como a inglesa, a espanhola, a germânica e, mais ao fundo, a antiguidade clássica, greco- romana. Claro: Pedro Américo dirigiu-se a Paris, à “pintura histórica francesa”, de traço idealizado, estudando as obras de Horace Vernier e Ernest Meissonier. A escola francesa, então na moda, contrastava com a italiana, mais realista, digamos.

Dois quadros de Meissonier lhe foram fontes particulares de inspiração: os quadros “Napoleão na batalha de Solferino”, pintado em 1863, e “1807, Friedland”, finalizado, pelo que pude pesquisar, um pouco mais tarde (salvo engano de minha parte). Deste último, Pedro Américo guardou a movimentação dos cavalos e a posição do Imperador, saudando sua cavalaria que desfila, célere, de braço erguido, os cavaleiros com o chapéu
na mão, ao invés da espada. Como no quadro brasileiro, Napoleão está em segundo plano, mas num montículo que o projeta para uma posição superior em relação aos militares de espadas erguidas. E tem por trás de si um séquito de
cavaleiros que usam roupas diferenciadas em relação às dos cavaleiros do primeiro plano. Também as cores dos cavalos, entre o castanho e o branco, estabelece um jogo “cromático de equilíbrio” na pintura de posturas contrastantes, em que se chocam o dinamismo dramático da cavalaria com a posição hierática e solene do Imperador e de seu séquito.

Graças a tal semelhança, que prefiro chamar do “rima”, Pedro Américo chegou a ser acusado injustamente de “plágio”. Digo “injustamente” porque a prática de buscar inspiração em quem se considera mestre foi e é comum na vida artística. Valho-me do exemplo ensinado pelo professor Northrop Frye ao examinar, em seu livro, “Fábulas de identidade”, a Divina Comédia, de Dante. Diz ele que podemos discutir ad infinitum se o florentino imitou a natureza toscana de seu tempo (no sentido aristotélico, criativo, não servil), ao mencionar na abertura de sua obra, a selva “oscura” e “selvaggia” em que se perde.. O que é certo, diz o professor, e se pode provar, é que  no poema ele imitou Virgílio que imitara Homero.

O quadro ficou pronto e foi exposto pela primeira vez na Academia de Belas Artes de Florença, em abril 1888. A seguir foi exposto em Chicago, nos Estados Unidos, em ambos os casos recebendo muitos elogios. No Brasil, ele só seria exposto em 1895, quando da inauguração do Museu Paulista, já no período republicano, depois da queda da monarquia e do exílio de D. Pedro II e sua família.

O padrão europeu da “pintura histórica” de então, ao final do século XIX, impunha uma visão idealizada e grandiosa dos eventos históricos. Foi a opção de Pedro Américo, determinando muitas de suas escolhas. Por exemplo: seria
impensável representar um quadro majestoso com seus protagonistas montando, ou mesmo tendo meramente ao lado, prosaicas mulas ou pacíficos jumentos. Impunha-se o cavalo, elemento de tradição militar, e além disto, divinamente solar, associado a Apolo ou Helios na tradição clássica, passada, mas ainda latente.

Também impunha-se uma visão abrangente do país, consubstanciada na paisagem, que vai das águas da base do
quadro às montanhas ao fundo. Com tais características, o quadro sobreviveu à queda da monarquia. Veio a ser
consagrado nas comemorações do centenário da Independência, quando a elite paulista pretendia afirmar-se como “a locomotiva econômica da nação”, graças às exportações de café, e a raiz da nacionalidade. Foi aí que ele
deixou de ser “apenas” um quadro comemorativo, idealizado, do processo da Independência, e foi “elevado” à categoria “fotográfica”, sendo avaliado como um :”retrato fiel” dos acontecimentos e assim entronizado nos livros escolares, além de outras formas de reprodução.

O certo e o incerto

Como disse a professora Lilian Schwarcz numa recente conferência em Berlim, o melhor que se pode fazer com uma
efeméride é toma-la como tema de reflexão. Ou seja, refletir sobre o processo histórico que levou-a a existir, e sobre o
processo cultural de sua eleição como efeméride. Isto é melhor do que simplesmente comemora-la, ou simplesmente querer destrui-la. Porque ela, efeméride, junto com seus ícones, constitui um “lieu de mémoire”, conforme o conceito
consagrado por Pierre Nora. Um “lieu de mémoire” pode ser um acontecimento, um objeto, como um livro, caso de “Os sertões”, ou um estádio de futebol, caso do Maracanã e do “Maracanazo” de 1950; pode ser positivo, negativo, etc. O “lieu de mémoire” vale como um ponto concreto ou abstrato de investimento afetivo por parte de uma coletividade. É o caso do sete de setembro e de um de seus ícones principais, o quadro de Pedro Américo.

No quadro vemos o esforço de um artista por se afirmar perante seu público nacional e aquilo que este público
reconhecia como “arte hegemônica”, a arte europeia, afirmando seus país como digno de comparecer perante as balizas desta arte. Não precisamos imitar seus padrões, o que não nos
impede de reconhecer seus méritos na empreitada. Olhando o quadro deste prisma, podemos vê-lo sob a lente de
um “outro realismo”. Ele idealiza um festival da elite brasileira, colocando o povo à margem do processo que levou à
Independência: lá estão, à beira do caminho, o carreiro, o cidadão mais simples, embora também a cavalo, indicando
alguma posse, e o negro (escravo?), aliás, de todos, o mais à margem de tudo.

Não foi assim?
De mais a mais ou a menos, podemos ver o quadro como um espelho de incertezas, como se fosse um negativo. Como seriam de fato as roupas do momento? Onde estariam as mulas, os jumentos, e algum cavalo, se houvesse? Como seriam os gestos na ocasião, depois das leituras das cartas? Dentre todas as incertezas, uma coisa é certa: o Príncipe D. Pedro já encontrara em São Paulo Domitília de Castro, a futura Marquesa de Santos, a sua “Titília” das famosas cartas assinadas pelo “Demonão” ou pelo “Fogo Foguinho”, e os dois já eram amantes.

* Jornalista, professor aposentado de literatura brasileira, escritor e tradutor.

Foto de Rovena Rosa/Agência Brasil.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

 

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