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Guaíba, o lago dourado e a “experiência exclusiva”
Guaíba, o lago dourado e a “experiência exclusiva”
Por FABIO DAL MOLIN*
O texto a seguir foi transcrito de uma propaganda veiculada no intervalo comercial de um telejornal do Rio Grande do Sul. Os destaques são do autor do texto.
Golden Lake apresenta “Lake Eyre”, segundo condomínio do ÚNICO bairro PRIVATIVO de Porto Alegre.
Um lugar para viver experiências EXCLUSIVAS.
onde o cotidiano é repleto de momentos UNICOS.
Espaços projetados para cuidar DO CORPO E DA MENTE.
Você tem TOTAL CONTROLE sobre o que realmente importa: o seu bem-estar.
Um lugar sofisticado e DIFERENTE de tudo que você já viu.
Que torna cada instante ESPECIAL.
Com ambientes para a família toda viver experiências memoráveis.
Onde O TEMPO SE ALINHA AO SEU RITMO e cada dia se transforma em uma nova Oportunidade para você se conectar com o SEU PROPÓSITO..
Com elevadores panorâmicos inéditos e vista deslumbrante.
Os apartamentos foram projetados para oferecer conforto incomparável e um estilo de vida EXCLUSIVO.
A sala de estar, equipada com lareira e churrasqueira cria a atmosfera ideal para momentos ESPECIAIS.
Onde você tem um lugar RESERVADO para o espetáculo mais belo da cidade.
Lake Eyre, viva DIFERENTE, viva o EXCLUSIVO.
Observação discursiva: em inglês a palavra exclusive denota tanto exclusivo no sentido de privado quanto “excludente”, que é mais usado no português para exclusão social.
Em 1997 o diretor Phillipe Rousselot lançou o filme “O beijo da serpente”, estrelado pelo jovem Ewan MacGregor (Trainspotting, Cova Rasa, Star Wars) que interpreta um jardineiro farsante chamado Meneer Crown, contratado por um riquíssimo fabricante de canhões do período entre as revoluções Francesa e Industrial para uma tarefa aparentemente banal mas singular: projetar um jardim. Não qualquer jardim, este teria sido receitado por um alienista para curar sua filha emotiva, sensível, que flertava com a bruxaria na pequena floresta adjacente a seu palácio, que outrora pertencera a um nobre medieval. A ideia seria um projeto paisagístico que representasse o total domínio do homem sobre a natureza, da razão sobre a emoção, um jardim sem plantas, sem fontes naturais, e cujas únicas plantas seriam importadas das colônias e seriam cultivadas em estufas. O plano do médico era que, ao passear pelo jardim, este conduziria a mente do caos a ordem, e traria a cura.
Em sua tese de doutorado que originaria “A história da loucura na idade clássica”, Foucault faz a genealogia da passagem entre a loucura mística, espraiada pelas comunidades humanas e folclorizada para a cisão moderna entre razão e desrazão em um mundo que se convertia de uma sociedade tradicional para uma sociedade moderna, urbana e industrial. Foucault chama de “grande confinamento” o processo de “governo dos vivos”, onde, da dicotomia dos castelos e igrejas vs camponeses a europa vai se constituindo em cidades e a vida social subjetiva vai sendo gerida pela fábrica, o exército, a escola, o hospital, o manicômio, a prisão.
Foucault enfatiza a figura de Phillipe Pinel, considerado o grande libertador dos loucos, o pai da psiquiatria como conhecemos hoje. Do encarceramento herdado dos leprosos, os desarrazoados de Pinel serão tratados como “humanos”, sendo o conceito de humano oriundo do iluminismo. Em vez de torturas e correntes, um ambiente geometricamente organizado, dividido, limpo, organizado no tempo e no espaço irá aplacar a desmedida da loucura. E o saber médico irá definitivamente adentrar as portas dos manicômios de onde nunca mais sairá.Alguns anos mais adiante, depois de publicar “O nascimento da Clinica”, “As palavras e as coisas” e constituir a Clínica como o conjunto de aparatos físicos, técnicos e morais de verificação para o governo dos corpos vivos, Foucault lança sua obra mais popular “Vigiar e Punir” onde faz a genealogia dos modos de governar os corpos dóceis que tem início com as estratégias disciplinares para o modelo panóptico, que representa a individualização e molecularização do poder.
A revolução industrial não representa apenas o predomínio das máquinas de metal, mas também o domínio das máquinas do corpo e da mente.
Os tempos cartografados por Foucault representam o que os sociólogos chamam de Modernidade. A Modernidade é um conceito que procura dar conta da ideia de sociedade como um conjunto de instituições disciplinares e de controle e gestão da máquina humana do capitalismo europeu. As sociedades modernas são coletivos de indivíduos governados pelo estado, a ciência, a moral e seus agentes, operadores da medicina, da engenharia e do direito.
A sociedade moderna europeia foi financiada pela brutal exploração escravocrata das colônias, e seu corolário filosófico e científico serviu de suporte ideológico para as noções de higiene, eugenia, raça e pureza integradas a de “humano”. “Liberdade, igualdade, fraternidade” são atributos humanos, direitos humanos são para humanos. Na medicina normativista e eugenista loucos, mestiços, pobres miseráveis,negros, mulheres rebeldes e devassas, pederastas, eram considerados desvios , não humanos, objetos de estudo e governança da ciência e dos operadores do direito.
As duas grandes guerras mundiais e a depressão econômica de 1929 representaram o auge ideológico (os ideais nazistas) e o colapso econômico do sistema capitalista moderno e duas grandes revoluções comunistas ameaçavam o “mundo livre”.
A injeção de recursos dos EUA na Europa e os incrementos científicos e tecnológicos da Segunda Guerra Mundial deram novo fôlego à Modernidade, e os anos pós 1945 são chamados de “os 30 gloriosos” pela sociologia. Foi quando começou a Europa que os turistas brasileiros amam, onde visitamos museus, usamos o trem como transporte, andamos seguros nas ruas e cujos autores das humanidades predominam até hoje nas bibliotecas universitárias (Foucault entre eles). Contudo, todo esse desenvolvimento se deu em uma sociedade que se tornava cada vez mais complexa, comunicativa, questionadora, alfabetizada, transgressora, que produziu maio de 1968, Black Panthers, feminismo, Stonewall, Woodstock, Angela Davis, protestos contra a Guerra do Vietnã. O grande aparato social e tecnológico da modernidade dos 30 gloriosos não era unânime: nos EUA apenas negros eram presos e “ressocializados”, os filhos e filhas passaram a se revoltar contra a repressão sexual das familias heneronormativas, os estudantes não queriam ser mais tijolos de um muro. Chegamos ao conceito de Modernidade Tardia. Ele é muito caro à sociologia contemporânea e surge em oposição ao de Pós Modernidade. A Modernidade tardia representa a queda do sonho moderno, pela não sustentação do trabalho, da ciência e das instituições modernas como sustentáculo do laço social, e mais:representa a noção de que esse laço jamais existiu, um enorme contingente da população mundial, mesmo habitando os chamados países centrais, jamais experimentou a chamada Modernidade.
Da Modernidade vem o conceito de “inclusão social”: o sujeito moderno é aquele que é socializado pelas instituições modernas, o emprego, a medicina, a saúde, a habitação, todas as promessas que ressurgem na campanha eleitoral. Mas por outro lado o mundo é cada vez mais governado pelos detentores dos meios de produção e logo em seguida pelos especuladores financeiros e acionistas das Big Techs, nunca experimentamos um período de tanta desigualdade social. O conceito de “inclusão” da modernidade gera o que o sociólogo Jock Young em 2002 chamou de “sociedade excludente” (exclusive society). Quem não tem acesso aos mecanismos ideológicos e tecnológicos da inclusão, está excluído. E a ideia de sociedade excludente é que a de um mecanismo permanente de exclusão.
Hoje, seis meses após o desastre ambiental vivido pelo Rio Grande do Sul, onde cidades inteiras foram varridas do mapa, um enorme contingente de pessoas perderam tudo o que tinham a estão até hoje vivendo na casa de parentes ou moradias provisórias,Porto Alegre não possui parque industrial e cuja economia depende do trabalho precário e do setor terciário de serviços, e também uma enorme crise urbanística e ambiental.
Os eleitores da cidade, em sua maioria pobres e trabalhadores precarizados, insistem em eleger gestores que privilegiam a devastação do patrimônio histórico, cultural e ambiental da cidade e grandes empreendimentos imobiliários voltados a um público restrito, mesmo após ter vivido as piores consequências desta gestão na enchente.
E agora como sintoma social surge a propaganda de uma empresa chamada “Golden lake”, um lago dourado, referência ao Guaíba iluminado pelo sol, o mesmo rio que transbordou e inundou a cidade de fezes, que agora está mais raso ainda pelo assoreamento e encalha navios e prejudica mais ainda sua pobre economia. O primeiro bairro “privativo”, onde é possível ter controle total sobre viver experiências únicas e desfrutar de uma vida exclusiva, onde há espaços projetados para o bem estar do corpo e da mente.
A gestão “exclusiva” do bairro privativo, às margens do “lago Guaíba” mas que possui seu próprio lago artificial, se dá pela exploração privada da força de trabalho precária dos operários da construção civil, da limpeza, segurança, comércio, alimentação e entregas. Todos pauperizados e precarizados e que jamais poderão morar onde trabalham, vivem justamente “do outro lado do rio” em Eldorado do Sul, no Sarandi, Humaitá, Navegantes.
Ali onde o lago dourado transborda realmente em uma “exclusive experience” já que as pessoas gostam de nomes em inglês.
*Fabio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS.
Foto de capa: Alex Rocha/PMPA
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