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Garças na Praia de Belas
Garças na Praia de Belas
De NORA PRADO*
Hoje amanheceu sem chuva, o que já é motivo de alegria para a gauchada louca para seguir com a limpeza das casas e o comercio enlameado. O vento forte balança as copas das árvores, trazendo o frio típico do inverno. Coragem, irmãos, vamos em frente para mais um dia nesta contagem regressiva para recuperarmos as nossas cidades. Porto Alegre ganhou mais um corredor humanitário por onde chegam mais caminhões com comida e donativos para os desabrigados. Facilita o trânsito pela zona norte da capital.
Ontem, a base aérea de Canoas já começou a operar os vôos comerciais diminuindo a distância do estado com todos os outros da federação. Aleluia! Já se pode chegar aqui de avião, agora. Nosso aeroporto, Salgado Filho, submerso sob as águas, só dará o ar da graça novamente a partir de setembro. Sigamos pelos planos Bs.
Meus gatos se acomodam, enroscados, cada qual na sua poltrona ou cama preferida, enquanto lá fora o frio gela tudo ao redor. Ouço uma máquina de cortar grama ao longe. Vizinhos trabalham nos jardins limpando galhos e folhas secas, cortando a grama. A vida precisa continuar. Penso no cardápio do almoço e lembro das centenas de cozinheiras que trabalham nos abrigos provendo café da manhã, almoço e janta para as vítimas da enchente. Quanto trabalho diário que segue enrodilhado na rotina que segue impávida.
Repórteres do estado, e fora dele, seguem alinhando pautas e transmitindo imagens do nosso triste cenário. Reportam a nossa situação de extrema vulnerabilidade dando visibilidade e a real dimensão da destruição do estado. Eu, sigo escrevendo, compulsivamente, todas as manhãs sobre algum novo aspecto dos efeitos colaterais da tragédia. Impossível ficar imune ao que acontece. Como numa guerra, escrevo este diário, tristonho, na esperança de elaborar o luto e encontrar novas perspectivas de entendimento da calamidade. Descobrir sentidos e restaurar a confiança perdida e a fé de que logo voltaremos a uma nova normalidade. Por mais que me esforce, não há como acelerar o processo, quem dita o tempo são as águas. São os rios e a altura do nosso -rio Guaíba, que teima em boiar tranquilo pelo Centro Histórico, impedindo o retorno da antiga geografia.
Nesta guerra contra as forças da Natureza, que veio buscar o que é seu por direito, precisamos ouvir as águas com mais atenção, perceber o que elas nos dizem, ouvir os seus gemidos, seus presságios, reclamações, seu acalanto noturno quando vamos, enfim, dormir. Sim, nosso suposto inimigo está nos ensinando sobre sobrevivência e convivência mais pacífica, mais justa entre nós e a Natureza. Se não reconhecermos o efeito didático desta catástrofe, não teremos aprendido nada sobre sustentabilidade e harmonia com o meio ambiente.
É o que parece nos dizer as garças brancas que, em suave vôo, alcançam as águas podres da Praia de Belas com áreas, ainda, muito alagadas. Assim como se debruçam diariamente sobre o Arroio Dilúvio, na Av. Ipiranga, agora, elas encontram novo abrigo entre as águas e os edifícios da cidade. Uma cena poética em meio a tristeza que nos enche de ternura e esperança.
Que a gente aprenda um pouco mais sobre leveza e convivência em grupo, com as garças bailarinas, a nos aproximar uns dos outros com cordialidade e respeito. Que a gente conviva com a Natureza como o rio abraça delicadamente as margens das matas, dos banhados e das matas ciliares. Que a gente reprenda a viver em paz nesta terra.
Porto Alegre, 28 de maio de 2024.18.
*Atriz, Coaching para Cinema e Televisão, Arte Educadora, Poeta e Fotógrafa.
Foto: Jornal do Comércio
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