Opinião
Frei Tito de Alencar e a negação à memória no Brasil
Frei Tito de Alencar e a negação à memória no Brasil
De CLARISSE MEIRELES*
Quando fui convidada, em 2012, por Leneide Duarte-Plon para escrever com ela o livro Um homem torturado – nos passos de Frei Tito de Alencar, publicado no Brasil em 2014 e na França em 2020, pude me confrontar com minha própria ignorância e com imensas lacunas sobre o período da ditadura militar brasileira, assim como o papel fundamental dos setores progressistas da Igreja Católica na resistência ao regime que vigorou entre 1964 e 1985.
E pude ver como essa falta de memória coletiva foi e é um projeto muito bem sucedido no país.
Daqui a pouco mais de um ano, o mês de abril de 2024 marcará as seis décadas do golpe militar que depôs o presidente João Goulart para instaurar uma ditadura sangrenta.
Como essa história será contada pelos diferentes atores políticos do país?
Que histórias serão construídas pela opinião pública e pelo governo?
Questões que permanecem em aberto nestes primeiros meses do terceiro mandato presidencial de Lula, confrontado neste exato momento por militares que não aceitaram nem a “redemocratização” instaurada em 1985 nem a recente derrota do capitão do Exército Jair Bolsonaro, ele mesmo defensor do regime militar e cuja eleição, em 2018, representa um importante sintoma da negação à memória no Brasil.
Pesquisas de opinião realizadas após os ataques do dia 8 de janeiro mostraram que 10% dos entrevistados ainda apoiavam o retorno de uma ditadura militar.
Como isso é possível diante de todas as atrocidades que esse regime cometeu contra seu povo, do qual Tito de Alencar é um exemplo entre milhares?
Que trabalho de memória não foi feito, que democracia não foi construída?
É fácil constatar que a ditadura militar brasileira não nos roubou apenas 21 anos de democracia.
Nosso déficit democrático a precede e persiste na violência policial e na violação sistemática dos direitos humanos, na política de segurança oficial baseada em execuções sumárias, na precariedade da educação e da saúde públicas.
Da mesma forma, essa democracia débil se reflete e se perpetua em um modelo midiático hiperconcentrado nas mãos de um punhado de famílias desde o período militar.
Um modelo que, num país-continente, se caracteriza pela pouca pluralidade e no qual os principais meios de comunicação aderiram acriticamente, nos últimos anos, a uma caça às bruxas que criminalizou a política, contribuindo para a despolitização de grande parte da população.
As heranças nefastas deste período são sintomas da nossa persistente incapacidade de, enquanto sociedade, construir um trabalho de memória e justiça para lembrar e punir os crimes contra a humanidade cometidos pelo regime militar.
Essa negação à memória está explícita em cada canto de nosso cotidiano.
Na ignorância de minha geração, por exemplo, da história do Frei Tito de Alencar, falecido em 1974, vítima de tortura sofrida nas mãos do Estado brasileiro, entre novembro de 1969 e janeiro de 1970.
No fato de os livros de história adotados nas Escolas Militares do país tratarem o golpe de Estado como uma “revolução realizada por grupos moderados, respeitadores da lei e da ordem” para salvar o Brasil do comunismo.
As Forças Armadas, aliás, nunca deixaram de explicitar seu compromisso com o passado e com a ditadura.
Como ao boicotar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2011 pela presidente Dilma Rousseff,
trabalhando nos bastidores para garantir que o resultado da Comissão não gerasse nenhuma punição ou mudança na Lei de Anistia de 1979.
História e imaginário
Nasci em 1976, em uma família de esquerda – meu avô, Silo Meireles, era do Partido Comunista Brasileiro e foi o líder da revolta comunista do Recife em 1935, rápida e violentamente reprimida pelo governo Vargas.
Sempre me emocionei com a história de vida desse avô que não conheci, que passou quase 10 de seus 57 anos de vida na prisão.
Toda a minha educação foi feita em uma escola metodista, progressista e humanista do Rio de Janeiro, onde tive excelentes professores de história e geografia.
No entanto, mergulhando na literatura e na historiografia da ditadura, percebi minha quase total ignorância sobre tantos militantes de organizações que lutavam contra a ditadura, algumas das pessoas mais generosas e corajosas que meu país já conheceu.
Enquanto os ditadores ainda estão presentes na memória coletiva e no cotidiano dos brasileiros. Muitos nos esquecemos, mas a ponte que separa o Rio de Niterói ainda homenageia o general Costa e Silva, o segundo dos generais que comandaram um regime ilegal e ilegítimo.
E, por todo o Brasil, avenidas, escolas, pontes e estádios eternizam os nomes de generais da ditadura.
São eles que povoam nossos territórios reais e imaginários e nossos livros de história, e que ignoram, por sua vez, as mulheres e os homens que, como Tito de Alencar, resistiram e arriscaram suas vidas por um projeto de país mais justo.
Jair Bolsonaro sempre debochou de pessoas que buscavam os corpos de seus familiares desaparecidos pelo regime militar.
Mas a mídia corporativa também ainda precisa aprender a contar a história de milhares de militantes (muitos presos, tantos torturados, outros banidos, exilados, mortos ou desaparecidos) como uma história de resistência e de combate a uma ditadura sangrenta, fruto de um golpe contra a democracia.
Quem esqueceu que em 2010, durante a campanha presidencial, a candidata de esquerda Dilma Rousseff sofreu uma violenta campanha de demonização por parte da imprensa por ter pertencido a um grupo de luta armada contra a ditadura?
Neste país sem memória, é importante elogiar esforços específicos para retirar homenagens a ditadores, como o projeto Cartografias da Ditadura, que marcou os 50 anos do golpe mapeando lugares de memória ligados tanto à resistência quanto à repressão no estado do Rio de Janeiro.
Já em 2021, em São Paulo, cidade onde Tito de Alencar foi torturado, a rua que levava o nome de seu algoz, o comissário Sérgio Fleury, passou a se chamar Rua Tito de Alencar.
Esse apagamento da história é uma construção permanente que tem repercussões cotidianas na vida dos brasileiros, como a banalização das atrocidades cometidas pelas polícias militares dos Estados. Há anos, a ONG Anistia Internacional classifica a polícia brasileira entre as mais letais do mundo. O que já levou órgãos internacionais de direitos humanos a pedir formalmente o fim da polícia militar. As PMs gozam de quase total impunidade e cabe lembrar que isso não começou na ditadura. A polícia sempre matou e torturou os pobres em nosso país.
Teologia da Libertação
O projeto do livro sobre Tito de Alencar também me interessou enormemente porque a trajetória do frade dominicano destaca o papel fundamental dos setores progressistas da Igreja Católica na resistência à ditadura no Brasil.
Como Tito disse em uma entrevista de 1972, “o Evangelho traz uma crítica radical da sociedade capitalista. Os temas da esperança, pobreza e messianismo, profundamente bíblicos, estão na origem do movimento revolucionário. Realmente não vejo como ser cristão sem ser revolucionário”.
Descobri que o engajamento de Tito e seus confrades era a concretização daquilo que preconizava o Concílio Vaticano II: o ecumenismo e a ampliação dos espaços da fé católica na vida quotidiana, aproximando-se das pessoas mais vulneráveis, como foi o trabalho das Comunidades Eclesiais de Base no Brasil.
Apesar da hostilidade do Vaticano sob João Paulo II contra a Teologia da Libertação, descobri que muitos religiosos ainda acreditam, vivem e pregam uma fé transformadora, como evidenciado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Amigo mais próximo de Tito no último ano de vida, o frade dominicano francês Xavier Plassat desenvolve seu trabalho na Amazônia desde 1989 e hoje é o coordenador da campanha da CPT contra o trabalho análogo à escravidão.
Para escrever a biografia de Tito de Alencar, entrevistamos mais de 30 pessoas que conheceram Tito em sua curta vida. Entre eles, sua irmã Nildes, que o criou, e o ex-deputado federal José Genoino, que fez campanha com Tito em Fortaleza, na militância da Juventude Estudantil Católica (JEC). Na França, entrevistamos seu psiquiatra, Jean-Claude Rolland e a maioria dos frades franceses e brasileiros que viveram com ele no exílio.
No Brasil, entrevistamos seus colegas dominicanos do Convento das Perdizes, que deram apoio logístico à Ação Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella, como os frades Ivo Lesbaupin, Fernando Brito, João Caldas Valença, Magno Vilela, Oswaldo Resende e Frei Betto.
Também tivemos a oportunidade de conversar com vários membros de grupos de luta armada e muitos presos políticos, libertados com Tito em troca da vida do embaixador suíço Giovanni Bücher, sequestrado em 1970.
Muitas portas e arquivos se abriram para nós, como os preciosos arquivos de Magno Vilela, ex-dominicano, hoje historiador em São Paulo, que viveu exilado em Paris no Convento Saint-Jacques, como Tito.
Resposta política
Em 1973, Frei Tito já criticava a luta armada quando escrevia: “É necessário e urgente responder politicamente à ditadura. Desse ponto de vista, acho que a luta armada, como principal forma de luta, é um erro”.
Contar e recontar a história da resistência à ditadura é uma importante contribuição para a democracia brasileira. Foi a negação à memória que permitiu a eleição de Bolsonaro, defensor de um regime militar que nunca viu seus crimes punidos graças à Lei de Anistia de 1979.
A negação à memória e à justiça permitiu que o ex-presidente nomeasse oito mil militares para cargos no governo federal durante seus quatro anos de mandato, incluindo o vice-presidente e vários ministros.
Essa negação à memória e à justiça também está na origem dos ataques às sedes do poder em Brasília, em 8 de janeiro de 2023.
Os inquéritos em curso e os julgamentos que virão são oportunidades para punir os responsáveis pelos atentados, obviamente manipulados pelos militares.
Esses julgamentos também deveriam estimular o debate sobre os crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura – lacuna que tem impactos permanentes e cruciais na política e na sociedade brasileira.
Como escreve o filósofo Vladimir Safatle no prefácio do nosso livro sobre Tito de Alencar: “neste contexto de invisibilidade e esquecimento forçado, o uso da memória é um ato político importante, porque impede que o tempo extorque reconciliações puramente formais”.
*Jornalista e tradutora, é coautora do livro Um homem torturado – Nos passos de Frei Tito de Alencar, Editora Civilização Brasileira, 2014.
Imagem de Tito de Alencar Lima – Wikimedia Commons.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
Toque novamente para sair.