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Opinião

FakeNews, a Rainha das mentiras?

FakeNews, a Rainha das mentiras?

Artigo por RED
20/10/2022 11:49 • Atualizado em 21/10/2022 11:41
FakeNews, a Rainha das mentiras?

De FERNANDO HORTA*

Hoje, as chamadas fakenews são apontadas como causa para todos os problemas do século XXI. A democracia está em risco em quase todos os continentes e o coro pela culpa é das fakenews. O fascismo ressurge com valores como o racismo, misoginia, nacionalismo e preconceitos de todas as formas. A culpa? Fakenews. Movimentos anti-ciência invadem o globo e determinam o boicote às vacinas, por exemplo, e à luta contra o aquecimento global. Novamente as vozes se juntam apontando as fakenews como responsáveis. Quando não se usa o termo, opta-se pelo estanho “narrativas”. “Narrativas”, no senso comum atual, seriam sequências de fakenews encadeadas perfazendo uma descrição lógica, mas falsa, de uma situação ou problema. Seja como for, as fakenews são vistas como um fenômeno do século XXI e tão disruptivo que são responsáveis por quase todos os problemas contemporâneos.

Pois, permitam-me discordar de tudo o que até aqui foi exposto. As chamadas fakenews não são novas, e também não são causa dos nossos problemas. Estamos mirando nos problemas errados e, por isso, não conseguimos achar soluções.

Em 1924, o historiador Marc Bloch lançava o clássico “os Reis Taumaturgos”. O livro é o início da chamada “História Cultural” e fala sobre a crença de que os reis europeus (especialmente franceses e ingleses) eram entendidos como tendo origens e poderes divinos. No caso do livro, mostra que os reis eram entendidos como curandeiros, seus toques poderiam curar doenças. Aos poucos, o rol de doenças curáveis foi diminuindo centrando-se na escrofulia. A escrofulia é hoje entendida como uma inflamação dos gânglios linfáticos, quase sempre causados pela ação dos bacilos da tuberculose. Doença comum na Idade Média,  era parte da vida de todas as pessoas na Europa naquele período.

O “poder” dos reis se consolidava no imaginário das pessoas a partir da cerimônia simbólica da cura pelo toque e da observação de que, após a cerimônia e o toque, muitas pessoas “se curavam”. A percepção era, sabemos hoje, fruto de fenômenos estatísticos, sociais e mesmo políticos, nada tendo de sagrado ou divino. Em realidade, a doença da escrofulia não apresenta um desenvolvimento igual em todas as pessoas e também não mostra uma piora sequencial rígida. As pessoas pioravam e melhoravam dependendo da condição física pessoal (que não raro envolvia também a questão psicológica) e da alimentação e cuidados que recebia.

Em muitos casos, portanto, a relativa melhora que o paciente apresentava após o toque curador do rei era fruto da sua fé em que o rei tinha esse poder. Em outros casos, aqueles escolhidos pelo rei eram alimentados para a cerimônia e recebiam alguns cuidados que não eram comuns a todos na época (melhores roupas, noites melhores de sono e etc.) e tudo isso concorria para o fenômeno da melhora. Na realidade, a diferença de tempo entre o ritual da “cura” e o desfecho (morte) do paciente era todo o milagre. Dado que as impressões eram tiradas no momento da cerimônia (e algumas semanas posteriores), o milagre era dado como feito e as eventuais alterações no estado do paciente, após esse tempo, não eram entendidas como parte da mesma relação de causa e efeito.

No livro, Bloch mostra que até o século XV esta percepção foi forte na Europa e que passou a declinar exatamente pelo ressurgimento do racionalismo renascentista e pelo movimento da contrarreforma que atacava exatamente o falso uso da fé. O último monarca a usar o toque como cura para a escrofulia foi a Rainha Ana, da Inglaterra, já no século XVIII. Após isso, o Iluminismo se encarregou de fazer troça da prática dos Reis Taumaturgos e vários autores Iluministas (como Voltaire, por exemplo) têm textos contanto histórias de fracassos do toque curador.

Poderíamos recuar ainda mais na história para mostrar como a interpretação da realidade com a chancela de “verdade”, mesmo quando não era respaldada pela empiria, é uma das bases do poder político e esteve sempre presente nas relações humanas. Poderíamos voltar às pitonisas gregas ou à reforma da Monolatria feita por Amenófis IV no antigo Egito. De toda sorte, a disputa pelos sentidos do mundo é ferramenta tão antiga quanto a própria humanidade e mesmo se alegarmos que atualmente a potência das fakenews é muito maior do que em outros tempos, teremos dificuldade de sustentar esse argumento visto que na Idade Média, por exemplo, a interpretação religiosa das coisas do mundo envolvia os indivíduos 24 horas por dia. Ou seja, mesmo na inexistência das “redes digitais”, dos celulares e computadores, as redes simbólicas (conforme descreveu Bourdieu) envolviam as pessoas talvez com mais presença e abrangência.

Por que estamos tão chocados com as “fakenews” hoje e por que tão sem reação? E novamente Bloch nos oferece uma chispa para pensar na resposta. Assim, como mostra Bloch, a enorme diferença social da época sustenta o ambiente propício para a sustentação da taumaturgia. Quando essa diferença passou a diminuir, ao menos no âmbito das cidades, também a fé na taumaturgia desaparece. Não significa dizer que a partir do século XVIII o mundo se viu livre de ideias como a da taumaturgia. Passamos, por óbvio, a outras noções que explicavam o mundo sem base causal na empiria (o darwinismo social, o fascismo, a meritocracia capitalista ou mesmo a superioridade do homem branco). Concorre aqui não apenas a enorme desigualdade de acesso às informações e capacidade de compreendê-las como também a desigualdade material. A vontade de estar certo (o autoengano e o viés de confirmação) jogam papel central, como mostra a psicologia.

Num momento em que o mundo está mais desigual do que jamais foi desde a I Guerra Mundial, os diferentes níveis de formação e acesso às condições materiais de existência cumprem um papel fundamental no fenômeno das fakenews. Antes de ser uma “arma dos perversos” contra a democracia e a sociedade contemporânea, as fakenews são uma forma de significação do mundo que uma parte da população, alienada por razões econômicas, acaba tomando para si e impulsionando para os outros. O sentido de inclusão que a crença numa determinada interpretação do mundo (verdadeira ou falsa) é muito grande. Em torno deste fenômeno alinharam-se liberais e também comunistas. Cada um na sua forma, claro.

Nunca vamos conseguir acabar com a vontade humana de explicar a si e as coisas do mundo. Nunca conseguiremos atacar toda forma de engano, mentira ou apenas disputa política pela noção de verdade. O que parecíamos ter conseguido, no alto da Guerra Fria, era um certo consenso sobre valores e prioridades. E mesmo assim, tal “consenso”, valia apenas para pessoas brancas, tendo permanecido a África inteira fora do raio de visão dos humanistas do século XX.

Esse pequeno consenso se quebrou no século XXI e as razões para isso são muito complexas para este espaço. Contudo, é preciso compreendermos que o problema não são as fakenews, mas a enorme desigualdade social, econômica e cultural que o mundo vive hoje. Escondida pelo meio digital, mas impossível de ser contornada, esta desigualdade atua como legitimadora das ideias que atacam os consensos do século XX. O novo está nascendo e o velho ainda não morreu, estamos no lusco-fusco gramsciano.


*Historiador (UFRGS), mestre e doutor em Relações Internacionais (UnB).

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

 

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