?>

Entrevista

Entrevista com o dominicano Régis Morelon: “Os dois Estados não são mais possíveis por causa da colonização”

Entrevista com o dominicano Régis Morelon: “Os dois Estados não são mais possíveis por causa da colonização”

Internacional por RED
22/11/2023 05:30 • Atualizado em 24/11/2023 09:33
Entrevista com o dominicano Régis Morelon: “Os dois Estados não são mais possíveis por causa da colonização”

De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris

O dominicano vê um suicídio na propaganda israelense contra qualquer solução

O dominicano e astrônomo Régis Morelon, especialista das ciências árabes, conhece perfeitamente o Oriente Médio, onde viveu: na Argélia, em Beirute, em Alep e vinte e sete anos no Cairo, onde dirigiu o Instituto Dominicano de Estudos Orientais. Além disso, fez conferências em três universidades palestinas da Cisjordânida, onde pôde constatar a dura vida dos palestinos sob ocupação israelense.

Chocado com o apoio de François Hollande ao bombardeio de Gaza, em 2014, ele escreveu uma carta ao presidente, comparando Gaza ao gueto de Varsóvia.

Depois do 7 de outubro, ele acompanha com um olhar crítico os bombardeios israelenses, que interpreta como um suicídio de Israel. Segundo a ONG israelense “Breaking the silence”, formada por veteranos de guerra, “nas duas primeiras semanas de bombardeios este ano, a força aérea israelense jogou mais bomba em Gaza que os Estados Unidos no Afeganistão durante um ano inteiro. »

Régis Morelon deu esta entrevista em Paris, no dia 13 de novembro, no Convento dominicano Saint-Jacques:

Leneide Duarte-Plon : Em 2014, na terceira guerra de Gaza, o senhor escreveu uma carta ao presidente François Hollande, em quem votara. O texto diz: “Fiquei profundamente escandalizado com sua declaração aprovando sem restrição a política suicida de Netanyahu com os bombardeios de Gaza”. Como qualificar o apoio incondicional de Macron a Netanyahu e os bombardeios diários de Gaza nesta quinta guerra contra o Hamas ? 

Régis Morelon : Macron faz um cálculo eleitoral pois vê-se muito bem por certas reações que ele não compreende nada do problema palestino-israelense. Ele tentou depois encontrar um certo crédito junto aos países árabes mas seu apoio a Netanyahu foi tão absoluto que ninguém mais consegue levá-lo a sério.

LDP : O senhor dizia ainda na carta : “Não é exagero esquerdista dizer que a faixa de Gaza é atualmente numa situação próxima do gueto de Varsóvia durante a segunda guerra, com alguns graus a menos por causa da presença da imprensa internacional, o que não havia na época do gueto. Mas o princípio é o mesmo, o estrangulamento com a lei de talião (um foguete de um lado e um F16 do outro) para destruir tudo. E isto com o silêncio absoluto da comunidade internacional ou com sua aprovação”.  

O que mudou nos bombardeios de 2014 e nos atuais, além da total ausência da imprensa internacional em Gaza ? 36 jornalistas palestinos e 5 estrangeiros morreram nos bombardeios até esta semana, um por dia. 

Régis Morelon : É quase a mesma situação. O ato dos palestinos com o massacre de cerca de 1200 pessoas é pretexto para bombardear Gaza. Israel é dominado pela vingança. Mas a situação pode fazer a opinião internacional se voltar contra eles por causa dos bombardeios incessantes. Ao contrário das outras vezes, fala-se muito do direito internacional ignorado por Israel. Antes ninguém cobrava isto e do ponto de vista internacional tudo pode mudar. 

LDP :  O psicanalista Gérard Miller escreveu no Le Monde um pouco antes de 7 de outubro: “Um grande número de judeus franceses tendo decidido associar sua sorte à de Marine Le Pen e de Eric Zemmour, vejo que foram atingido pela décima-primeira praga do Egito – a amnésia.  E enquanto milhões de israelenses descem às ruas toda semana contra os extremistas que os governam, devemos constatar que aqui na França, na comunidade judaica dois campos, duas judeidades são impossíveis de conciliar.  Temo que sejam irreconciliáveis.” 

Por que uma grande proporção de judeus franceses aderem ao discurso da extrema-direita ?

LDP : Porque a extrema direita divulga o mito da « grande substituição » (os muçulmanos esmagando a civilização judaico-cristã francesa) que aponta o Islã como o grande terror. E os judeus aderem porque estão de acordo com essas teses. Duas judeidades, isso é verdade. Tenho um amigo que devolveu seu passaporte israelense (ele tinha a dupla nacionalidade) dizendo : « Atualmente, Netanyahu nos faz perder nossa alma e eu me recuso a aceitar ». Foi em 2014, na outra guerra de Gaza. Ele me disse que muitos amigos judeus pensam como ele.

LDP : Durante o jantar do Conselho Representativo das Instituições Judaicas da França (CRIF), em 2019, Emmanuel Macron anunciou que a definição de antissemitismo era consubstancial à noção de antissionismo. 

O que o senhor pensa disso ?

Régis Morelon : Ele é um incompetente. Tenho amigos judeus totalmente antissionistas porque são contra a apropriação por Israel das terras palestinas. Eu sou antissionista, não porque sou contra a existência de Israel, eu constato que Israel existe, mas sou contra o fato que extremistas judeus querem um Grande Israel com  a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. E sou antissionista na medida em que sou contra o Grande Israel. Alguns judeus são antissionistas porque são, por princípio e em nome da religião, contra a existência de um Estado judaico.   

LDP : “Quando Sharon veio à França, eu lhe disse que ele deve criar um ministério da Propaganda, como Goebbels”. A declaração a um jornal israelense é do então presidente do CRIF, Roger Cukierman, em 2001. Alguns judeus dizem hoje em artigos que qualquer oposição à colonização e qualquer solidariedade com a causa palestina é uma ameaça à existência de Israel. Este tipo de conclusão de má fé faz parte da propaganda de Israel ?

Régis Morelon : Claro ! Atualmente a única solução seria a dos dois Estados. E os dois Estados não são mais possíveis devido à colonização. Os diplomatas podem continuar dizendo “queremos dois Estados”. Mais já é impossível. Atualmente, há uma propaganda israelense que é contra qualquer solução.

LDP : O exército americano está dando uma cooperação ativa ao exército israelense, segundo o Le Monde de 9 de novembro. O jornal revela « a participação de militares americanos (conselheiros militares) no comando central israelense desde a primeira fase dos bombardeios, enquanto os planos do exército estavam começando a se definir ». Descobre-se, assim, que os americanos são cúmplices ativos dos crimes de guerra.

A comunidade internacional prefere ignorar isso ? 

Régis Morelon : Sim, claro. O que vejo como diferença agora é que o governo americano continua a apoiar Israel totalmente inclusive com a presença de militares mas acho interessante que o campus americano é pró-palestino. É a primeira vez que isso acontece. Os americanos não podem mais estar certos de ter a opinião pública apoiando incondicionalmente Israel. E o resto do mundo não quer ver essa proximidade dos americanos, ninguém diz claramente que Israel transgride todas as leis internacionais. Isso é muito grave. Talvez comece a mudar, mas Israel sempre ignorou todas as resoluções da ONU. Mas cada vez mais ouço quem diga que Israel não respeita os direitos humanos. Isso é uma novidade a nível internacional.

LDP : O médico Rony Brauman, um dos fundadores e ex-presidente dos Médicos sem Fronteiras, disse sobre os  bombardeios de Gaza : “Israel está numa corrida cega suicida e isto não data de hoje”.  Brauman define as guerras de Israel contra o Hamas como “guerras assimétricas” pois não há dois exércitos que se enfrentam mas bombas jogadas por aviões de um dos exércitos mais poderosos do mundo contra combatentes de recursos limitados.

Nétanyahou leva Israel a uma corrida cega suicida ?

Régis Morelon : É uma guerra assimétrica, um foguete contra um F-16. Netanyahu não se interroga sobre o pós-guerra. Ele também não se interroga sobre a ampliação da guerra para o Líbano, ao norte, e eventualmente a Síria, depois. Só se vê um impasse completo para o pós-guerra e penso que a existência de Israel está em jogo. É realmente um suicídio.

LDP : O médico Raphael Pitti, responsável pela formação de médicos e enfermeiros em zonas de guerra, informou em entrevista que um caminhão da Cruz Vermelha fora bombardeado em Gaza, além de ambulâncias.  Ele pede, com todas as ONG humanitárias, um cessar fogo imediato. Ele afirma : “Israel acumula todos os crimes de guerra, a população palestina está sendo massacrada. Israel está perdendo sua alma. » Com outros 20 médicos, o Dr. Pitti está esperando a permissão de Israel para entrarem Gaza.  Esta catástrofe humanitária está sendo filmada e vista no mundo.

Como explicar a indiferença da comunidade internacional?

Régis Morelon :  É preciso distinguir a comunidade internacional no nível das populações e no nível dos governos. No Ocidente, as populações estão cada vez mais críticas em relação a Israel. E todo o Sul Global se coloca contra Israel e pede o cessar fogo. Existem as posições oficiais e existe o que sentem as populações dos países e há uma distância impressionante.

LDP : O historiador e jornalista Dominique Vidal me contou em entrevista : “Quando você debate com um israelense e pouco a pouco você desmonta sua argumentação para justificar a conquista e espoliação da Palestina, ele acaba lhe dizendo : ‘Sim, mas no Gêneses está escrito que Deus prometeu esta terra entre os dois rios, o Nilo e o Eufrates, a Abraão e à sua descendência’. Esquecem que a descendência é dupla. Antes de ter Isaque, Abraão foi pai de Ismael. Fica complicado demais para as pessoas que utilizam este argumento. Isto quer dizer que, em última instância, a verdadeira justificativa do projeto sionista é a Bíblia. Como se fosse um texto de história, como se fosse uma escritura de cartório que determina a propriedade, os direitos de um povo a se apropriar de uma terra. É preciso compreender que não pode haver projeto sionista sem vir enrolado num discurso religoso”, termina Vidal. 

A Bíblia pode ser usada como argumento para justificar a opressão do povo palestino e a limpeza étnica atual ?

Régis Morelon : Vi outro dia na televisão um colono que dizia : “Deus nos deu esta terra”. É um argumento que não tem nada a ver com a realidade mas é um argumento de autoridade: “Nós decidimos assim”. E termino com a bela frase de Stephen Zweig, judeu austríaco humanista : “Os homens que pretendem combater por Deus são os mais antissociais da terra porque creem que ouvem mensagens divinas e suas orelhas permanecem surdas a qualquer palavra de humanidade”.

A posição dos judeus nesse caso é exatamente a mesma que a de Daech. Sob pretexto de terem a palavra divina pensam que podem cometer todos os massacres. Não podem.


*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.

A entrevista foi publicada originalmente na revista Carta Capital desta semana, e cedida posteriormente pela autora.

Foto também cedida pela autora.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Toque novamente para sair.