Curtas
Empresas de armas e segurança miram governo e polícias para lucrar com “guerra urbana”
Empresas de armas e segurança miram governo e polícias para lucrar com “guerra urbana”
Reportagem da Pública acompanhou a primeira edição da LAAD, a maior feira de armamento e defesa da América Latina
Uma telinha de televisão mostra palestinos num bairro pobre e de chão batido correndo atrás de um veículo militar contra o qual jogam pedras e coquetéis-molotovs. Frente às pedras, a máquina de quatro rodas segue incólume pela estrada. “Lá é tenso mesmo”, comentam dois agentes de segurança pública que assistem ao vídeo com imagens do conflito de Gaza. Ao lado deles, o mesmo veículo está exposto no estande da empresa brasileira Quartzo Defense, durante a LAAD 2023, a maior feira de armamento e defesa da América Latina, que ocorreu entre os dias 11 e 14 de abril, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. A cerimônia de abertura do evento teve discurso do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho. O governador do Rio, Cláudio Castro, também participou da abertura.
“Estamos trazendo pro Brasil o mesmo carro usado pelas forças israelenses”, explica orgulhoso André Pereira Meire, 55 anos, diretor de tecnologia da empresa. A imagem, garante ele, ilustra perfeitamente a qualidade do David HX-8, “material mais do que testado em conflito urbano”, afirma. O objetivo deles é fornecer novos carros para as polícias e as Forças Armadas (FAs) realizarem operações em favelas com “mais segurança”.
Um oficial do Exército que observava o veículo explicou à Agência Pública que, numa operação em favelas, esse é o tipo de carro que entra logo após o “caveirão abrir as ruas”. Interessado na qualidade do David HX-8, ele ponderou que talvez o Rio de Janeiro venha a substituir os atuais Iveco Linces pelo concorrente israelense.
Novas munições letais e não letais, veículos blindados para invasão de favelas, tecnologias de reconhecimento facial para as polícias. Tal como a Quartzo Defense de André Meire, muitas das empresas que estavam no evento buscavam conquistar forças de segurança pública com produtos focados no mesmo objetivo: conflito ou guerra urbana, como chamam.
A empresa de blindagens que fez lucro — e conexões — no governo Bolsonaro
Num dos pavilhões do Riocentro, a Combat Armor Defense do Brasil apresentava um veículo blindado para concorrer no mercado brasileiro: o V-Raptor. Com produção 100% brasileira e espaço para seis ocupantes, o protótipo busca se diferenciar por pesar 4,5 toneladas, enquanto os concorrentes ficam na casa dos dois dígitos.
A empresa, fundada há apenas quatro anos, teve um crescimento exponencial — e controverso — durante o governo de Jair Bolsonaro. Reportagens da Pública revelaram que o capital social da Combat saltou de R$ 1 milhão para mais de R$ 13 milhões em menos de dois anos, crescimento impulsionado por acordos milionários com o poder público, incluindo R$ 36,5 milhões em contratos com a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Após fechar os contratos, a Pública mostrou que Silvinei Vasques, então superintendente da PRF do Rio de Janeiro, teria pedido emprego na Combat acompanhado do ex-secretário executivo do Ministério da Justiça Antonio Lorenzo — o número 2 de Anderson Torres durante o governo de Jair Bolsonaro.
Marcelo Silva, diretor comercial da empresa, afirma que o carro foi feito depois de estudos e tem por objetivo ajudar não somente as polícias do Brasil, mas de toda a América Latina, no “combate ao crime organizado”. Tal como outros colegas expositores da feira bélica, Marcelo acredita que, nos últimos quatro anos, o crime só aumentou no Brasil, “vocês [a mídia] mostram muito isso”.
A ideia de que o Brasil segue mais violento, contudo, não conflui com as análises de pesquisadores da área. Coordenador do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos, na Universidade Federal Fluminense (UFF), o sociólogo Daniel Hirata explica que violência urbana é um conceito difuso e de quase impossível medição por si só. Podem-se observar, contudo, indicadores sociais de violência, e estes vêm diminuindo. No caso dos homicídios, por exemplo, a taxa brasileira caiu de 31,6 por 100 mil habitantes em 2017 para 22,3 em 2021, segundo dados disponíveis do Fórum de Segurança Pública.
“É uma tendência nacional, por exemplo, no caso dos homicídios que vêm caindo desde 2017. Outros tipos de crimes contra o patrimônio, como por exemplo roubo de carga, também têm diminuído. Por outro lado, o que percebemos — e que é preocupante — é que a letalidade policial tem aumentado já desde 2014. Nos últimos três anos, tem alcançado patamares, para a região metropolitana do Rio de Janeiro, de 35% do total dos homicídios. Então, é importante que isso seja destacado para que a gente não encare de forma natural o uso de equipamento bélico cada vez mais letal imaginando que isso possa ter alguma eficácia no enfrentamento da criminalidade”, adverte Hirata.
Balas que podem matar mais em favelas
Próximo aos carros que disputam o futuro das polícias, o estande da brasileira CBC, uma das maiores empresas mundiais em fabricação de munições de médio e baixo calibre, expunha duas novas formas de munição pensadas para conflitos em locais apertados, ou, como reiterou depois o expositor Vitor Hugo: para conflitos em favelas.
A 7,62 mm expansiva, desenvolvida, segundo o expositor, para diminuir os “efeitos colaterais em conflitos urbanos”, funciona da seguinte forma: a bala sai do fuzil e, ao encontrar o corpo, para nele mesmo, sem atravessar e atingir ninguém que esteja atrás. Todavia, isso vem a um custo. Como o nome indica, a bala se expande dentro do corpo, causando mais danos internos. Isso pode levar a uma morte mais rápida, com menos chances de sobrevivência ao atingido.
Uma pesquisa recente realizada por múltiplos departamentos de pesquisa da Ucrânia avaliou os ferimentos de balas expansivas em soldados ucranianos e chegou à conclusão de que ela tende a gerar ferimentos em múltiplos órgãos. Esse tipo de munição, segundo a Enciclopédia de Leis de Armas, já chegou a ser proibida por leis europeias e, hoje em dia, seu uso por instituições de segurança pública em ações contra civis é mal visto pela comunidade internacional. A empresa de munições reforçou também o lançamento do ano passado, a linha Proshock, que tem por objetivo atravessar paredes e/ou alvos sem perder a rota original.
A reportagem questionou a assessoria da CBC sobre o efeito mais letal das balas, que não respondeu até a publicação da reportagem.
Vale destacar que esse desenvolvimento tecnológico veio após intensa expansão de lucros da empresa. A CBC, junto de sua irmã Taurus, foi uma das maiores beneficiárias dos anos Bolsonaro. A empresa saiu de um faturamento de R$ 814 milhões em 2018 para R$ 1,4 bilhão em 2021, segundo levantamento do Statista.
E as confluências entre governo e indústria nem sequer são discretas. Em um release da Taurus/CBC disponível em sites especializados no mercado bélico, as empresas comemoram as consequências das então novas políticas de aquisição de armas: “De 2019 a 2021, o registro de armas de fogo pela Polícia Federal mais do que triplicou em relação aos três anos anteriores (2016 a 2018). No período foi registrada uma média anual de 153 mil armas novas, aumento de 225% em relação ao triênio anterior, quando a média anual foi de 47.141. Como os números de dezembro ainda não foram divulgados, o percentual de crescimento poderá ser ainda mais elevado. Apenas em 2021, entre janeiro e novembro, foram 188 mil registros de armas novas”, descrevem.
Armamento “smart” e drones para manifestações
No campo das armas menos letais, ou, como é chamado no Brasil, as “não letais”, a Condor apresentou novos produtos que deverão servir para repressão a manifestações. Gigante nacional e uma das maiores do mundo nesse mercado, a empresa, que já foi exposta por vender produtos para governos ditatoriais e denunciada por mortes que teriam sido causadas por gás lacrimogêneo, não revela seus números em faturamento e nem mesmo em aplicações diretas com pesquisas e desenvolvimento de produtos.
Todavia, na LAAD 2023 a novidade que trouxeram à mesa custou quase cinco anos de desenvolvimento: trata-se do Condor Drop, um drone criado exclusivamente para jogar granadas de dispersão em situações em que a polícia queira maior controle de massas. Com espaço para 24 pastilhas explosivas, o drone, que tem 25 kg, dura 20 minutos no ar e teria surgido após inúmeras instituições pedirem diretamente à empresa que entrasse no ramo dessas miniaeronaves. Recém-implementado em Angola, a papelada para a venda do Condor Drop no Brasil acaba de ser finalizada, e a expectativa é que seja usado em manifestações em até um ano.
Além disso, o expositor Lucas Carci orgulhosamente anunciou as primeiras granadas biodegradáveis do mercado, com tecnologia Smart: “Seguimos os protocolos mais modernos de indústria sustentável”, disse. Assim como para outros lançamentos, a Condor justifica os novos produtos para salvar mais vidas e proteger melhor os policiais “em situações estressantes”.
As soluções mirabolantes de tecnologias apresentadas em feiras como a LAAD 2023 tendem a decepcionar mesmo para os objetivos propostos de defesa da integridade dos agentes de segurança pública, afirma Bruno Cardoso, sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A tecnologia aparece sempre nos discursos como algo que viria trazer uma solução rápida para problemas ou desafios que marcam estruturalmente a segurança pública no Brasil, e na verdade a maior parte é incapaz de realizar o que promete. Além disso, quase sempre as armas têm três destinos possíveis: a) serem subutilizadas por falta de capacitação dos operadores; b) serem boicotadas, quando dão muito trabalho ou controlam muito os agentes de segurança; ou c) serem subvertidas, quando são utilizadas de modo imprevisto, e muitas vezes ilegal, gerando efeitos opostos ou pelo menos bem diferentes do que na proposta inicial. Nesse caso, normalmente acabam favorecendo a corrupção e a violência policial”, afirma.
Mercado de reconhecimento facial é dominado por estrangeiros
Na corrida pelos contratos com os órgãos de segurança, outro destaque são as empresas de tecnologia de reconhecimento facial e monitoramento. No Brasil, a nacional Hexagon busca espaço num mercado ainda dominado por estrangeiras, tendo aplicado suas câmeras com reconhecimento apenas em Salvador, segundo informações da própria empresa.
Mas as gigantes nessa área vêm de fora, como é o caso da Motorola Solutions, que, segundo eles, além de vender sua tecnologia para as polícias de São Paulo, Minas Gerais e Paraná e empresas de transporte como o Metrô-Rio, oferta bodycams policiais que vêm com uma tecnologia de adaptação da imagem original, em alta qualidade, para uma mais próxima ao olho humano. Ao fim do dia, caso seja requisitada análise, a câmera oferece as duas imagens para avaliação pericial. A ideia é “não cometer injustiças com policiais”, uma vez que, segundo o expositor, não seria justo comparar a visão que o oficial teria tido em uma situação problemática e com baixa luminosidade com a imagem gerada por um equipamento de altíssima qualidade.
A relação discreta ou sigilosa entre uma empresa contratada pelo Estado e ele próprio parece caminhar para uma noção mais tênue entre o privado e o público, como adverte o sociólogo Bruno Cardoso: “As empresas não apenas fazem negócio com o Estado, mas se fundem cada vez mais com ele, já que desenvolvem, fazem lobby e operam tecnologias que são mecanismos fundamentais de atuação dos agentes estatais de segurança, ou sistemas que fazem funcionar instituições inteiras. Com isso, o mercado das tecnologias de segurança vai ditando as políticas de segurança nos mais diversos contextos locais, quase sempre dando soluções genéricas para problemas sempre complexos e específicos, criando oportunidades de negócios em megaeventos, distúrbios políticos ou mesmo após ataques contra escolas”, avalia.
Por Matheus Moura
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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