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Opinião

Eleições brasileiras: o palco e o bastidor

Eleições brasileiras: o palco e o bastidor

Artigo por RED
02/11/2022 01:00 • Atualizado em 04/11/2022 10:06
Eleições brasileiras: o palco e o bastidor

De FLÁVIO AGUIAR*

Há muito o que analisar neste segundo turno da eleição presidencial. Para faze-lo é necessário furar algumas bolhas.

Uma delas é o discurso da regionalização do resultado. Boa parte das esquerdas passou a se embalar por uma cartografia vaga, cuja expressão maior é a de caracterizar o que aconteceu como um confronto entre o Nordeste/Norte vermelhos e o restante do Brasil. Não que o fato de que Lula tenha vencido em todos os estados do Nordeste e nos dois maiores do Norte, Amazonas e Pará, seja algo secundário. O problema começa quando esta leitura tende a se “naturalizar”, como se isto decorresse de alguma essência metafísica, perdendo-se de vista uma análise mais aprofundada das causas de tal situação, e de seu balizamento pelas séries históricas que a nutriram. É como se, ao analisarmos a construção de um espetáculo teatral, nos detivéssemos em ver apenas a movimentação no palco, e esquecêssemos tudo aquilo que, nos bastidores, levou ao resultado final. Dou um exemplo: não faz
muito em termos de tempo histórico (uns trinta ou quarenta anos) o hoje heróico Nordeste era ocupado pelo PFL de Marco Maciel e o PSDB de Tasso Jereissati. O que aconteceu desde então nos bastidores para que este quadro mudasse no palco? E mudou em que proporção? Na eleição para o governo de Pernambuco as esquerdas se esfacelaram e o PSDB levou.

Outras perguntas, desta vez relativas ao meu estado natal, o Rio Grande do Sul. Mais ou menos naquele mesmo período em que o PFL nadava de braçada no Nordeste, Porto Alegre era o berço do Orçamento Participativo no Brasil e do Fórum Social Mundial. Nos últimos tempos Porto Alegre foi para a direita. Acompanhando o estado em 2018 deu a vitória ao atual usurpador do Palácio do Planalto (porque eleito num pleito trucado e truncado pela Lava Jato e seus entusiastas). Agora, nos dois turnos de 2022 voltou-se para a esquerda, dando a vitória a Lula. O que aconteceu? Outra consideração: em 2018 a região da Campanha, a do pampa propriamente dito, votou em peso no fascista. Desta vez votou em peso no Lula. Idem: o que aconteceu? Um exemplo eloquente: quando em Porto Alegre a maioria dos eleitores começou a se deslocar para a direita, muitas pessoas a quem interroguei sobre o fenômeno me respondiam que “era culpa do jornal Zero Hora e da RBS, concessionária da Rede Globo”. Acontece que o PT governou a cidade durante 16 anos sempre com uma ferrenha oposição de ambas as mídias. Ou seja, esta oposição não explica tudo, é necessário ir mais fundo.

Quanto à eleição de 2022, se ficarmos diluindo o fenômeno em apreciações genéricas sobre o “Sul” e chavões como o de que “no Nordeste somos brasileiros e no Sul eles pensam que são europeus” não iremos muito longe em matéria de entender estes fenômenos. Outra pergunta, indo ao Norte: Lula venceu no Amazonas, mas perdeu em Manaus, cidade que foi das mais martirizadas pela criminosa inépcia do governo federal durante o auge da pandemia. Como assim? Como isto foi possível?

E o que aconteceu em São Paulo, com o naufrágio e a dissolução do PSDB e a emergência de um fantoche do bolsonarismo que nem sabia onde votava? Todos conhecemos o antipetismo enraizado no estado que foi berço do partido, mas só isto não explica o sucesso do fantoche; é preciso também explicar a extinção paulista do Partido da Social Democracia Brasileira que faz tempo já nada tinha de social-democrata.

Outra questão relevante: Lula ganhou em 11 capitais, incluindo, fora do Nordeste, São Paulo, Belém e Porto Alegre; Bolsonaro ganhou em 16, entre elas o Distrito Federal e incluindo Maceió, no Nordeste. Outro fenômeno a demandar
explicações mais robustas.

Uma outra bolha enigmática que pede exame é o comportamento do eleitorado no exterior. É complicado. Claro: a diáspora brasileira, que é relevante, está dispersa pelos 5 continentes regularmente habitados, e o número de cidades com postos de votação passou da centena e meia. Uma pesquisa nesta área provavelmente envolveria parcerias com universidades e institutos locais.

Outro fato: dentro do universo de eleitores brasileiros, de 156 milhões, o número destes no exterior é pequeno: em 2022, quase 700 mil. Mas estes resultados têm um certo impacto. São relevantes, a médio e longo prazo, notícias como a de que tal ou qual candidato ganhou em Londres, Paris, Lisboa, Miami, Nova Iorque, Berlim, Roma, nos Estados Unidos, em Israel, na Palestina, no Japão, Buenos Aires, e assim por diante.

Vejamos alguns dados e fatos. De 2018 para 2022 o número de eleitores inscritos no exterior aumentou em 200 mil, de quase 500 mil para quase 700 mil. Em 2018, a abstenção, no segundo turno, passou dos 298 mil. O comparecimento, portanto, ficou em pouco mais de 200 mil. Em 2022, no segundo turno, o comparecimento foi de um pouco mais de 310 mil, aumentando em mais de 100 mil eleitores. Em 2018, no segundo turno, Jair Bolsonaro ficou com 71,02% dos votos válidos, Haddad com 28,98%. Em 2022, Lula, que já fora o mais votado no primeiro turno (47% dos votos válidos), venceu no segundo, com 51,28% dos votos, um pouco mais do que o percentual
global, de 50,9%; Jair ficou com 48,72%.

Não só isto: boa parte do mundo avermelhou, pois Lula inverteu votações em cidades como Londres e Lisboa, além de obter vitórias esmagadoras em todas as cidades alemãs, quando Haddad, em 2018, vencera em três (Berlim, Hamburgo e Colônia) e Bolsonaro em duas (Frankfurt e Munique). Lula obteve uma vitória espetacular em Paris (82%), Copenhague (85%) e outras expressivas como, por exemplo, na Austrália, Nova Zelândia, Costa do Marfim, Marrocos, Argentina. Por sua vez, Jair Bolsonaro manteve uma hegemonia absoluta no Japão e expressiva na maioria dos centros de votação nos Estados Unidos.

O Data Flávio tem uma hipótese empírica e totalmente impressionista para estes resultados: aumentou muito, no mundo inteiro, a inscrição do eleitorado mais jovem e menos comprometido com esquemas financeiros. Uma amiga de Berlim complementa: nos quatro anos, entre 2018 e 2022, muita gente, mesmo não sendo petista nem  lulista, viu o horror que foi a gestão fascistóide no Brasil. Será? Pode ser.

Em resumo: a ver.


*Jornalista, professor aposentado de literatura brasileira, escritor e tradutor.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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