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Opinião

Eleições brasileiras de 2022: As lições do primeiro turno

Eleições brasileiras de 2022: As lições do primeiro turno

Artigo por RED
06/10/2022 13:36 • Atualizado em 07/10/2022 10:17
Eleições brasileiras de 2022: As lições do primeiro turno

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

⦁ Introdução: os riscos para o país de uma eventual reeleição de Bolsonaro

O segundo turno da eleição presidencial no Brasil em 2022 irá definir os rumos do país por um longo tempo. Afinal, não vivemos um confronto entre duas candidaturas que – malgrado diferenças político-ideológicas – estão de acordo acerca dos princípios mais elementares de ordenamento cívico e social do país. Bolsonaro e seus seguidores não têm qualquer compromisso com a ordem democrático-constitucional. E não apenas porque louvam a ditadura passada e clamam, repetidamente, por um novo golpe. O Governo Bolsonaro já é, hoje, um governo que opera contra a Constituição. O Orçamento Secreto é muito mais que um escândalo de corrupção. A transformação dos recursos públicos em instrumento eleitoral e de enriquecimento privado é um caso evidente de subversão da ordem jurídica e constitucional que se realiza com apoio (e, em grande parte, em benefício) da maioria de deputados e senadores e com a conivência do sistema Judiciário em geral e do STF em particular.

O problema maior é que, se o Brasil se encontra – desde o golpe-impeachment de Dilma Rousseff, até os dias de hoje – numa situação de anormalidade institucional mal disfarçada, até agora esta condição é reconhecida (mesmo que de forma subliminar e envergonhada) por todos os agentes que articularam os golpes e por todos aqueles que detém o poder; a começar, pelo próprio Presidente e sua entourage. Vale dizer: nossa anormalidade institucional é reconhecida pelos agentes e poderes capazes de impor algum freio aos desmandos do Presidente Bolsonaro e do Congresso eleito sob a égide da fakeada e da prisão de Lula. Estes poderes são, em primeiro lugar, o Poder Judiciário em geral e ao STF em particular. Em segundo lugar, o pantagruélico “quarto poder”, vale dizer, a grande imprensa, que apoiou e sancionou a farsa da Lava-Jato, o golpe-impeachment contra Dilma e o PT, a prisão inconstitucional de Lula, a cassação de sua candidatura em 2018 e que deu guarida à farsa da fakeada, elemento central na vitória do medíocre ex-Deputado Bolsonaro nas eleições de 2018. Em terceiro lugar, nos referimos à elite financeira e industrial e às lideranças das principais organizações empresariais do país (FIESP, Febraban, CNI, etc.). Entender este ponto é fundamental.

Na medida em que Temer e Bolsonaro só foram guindados à Presidência com o beneplácito destes outros poderes, a liberdade de ação dos dois primeiros encontrava-se sob monitoramento e algum controle dos últimos. Assim, as reformas Trabalhista e Previdenciária dos governos Temer e Bolsonaro só foram realizadas porque faziam parte do projeto dos agentes que articularam os golpes 2016 e 2018. Bolsonaro pretendia ir muito além; seu objetivo era passar a boiada em tudo. Mas não conseguiu levar à frente alguns de seus projetos mais caros: da liberação total da posse de armas ao fim de todo e qualquer controle sobre o desmatamento da Amazônia, passando pela desestruturação do SUS e pela administração corrupta e patrimonialista de todas as aquisiçõesrepasses e concessões públicas. Se ainda temos Inpe, Ibama SUS, Universidades Públicas, Sistema CNPq-Capes, TCU e STF com alguma independência, isto se deve ao fato de que a legitimidade do governo Bolsonaro é frágil. O “Mito” tem pés de barro e sabe que sua eleição em 2018 se assentou numa farsa. É bem verdade que ele extrapolou do script produzido pelos golpistas que criaram Sua Excrescência. Ele não se submeteu à figura de “boneco de ventríloquo”. Mas também não conseguiu impor seu programa de desmandos. Até agora!

Este ponto é crucial para que se entenda o risco que corremos com uma eventual reeleição de Bolsonaro: o projeto de Bolsonaro não é o mesmo da elite golpista que o pôs onde está. As tensões na relação de Bolsonaro com o STF, com os expoentes do lava-jatismo (como Sergio Moro e o MBL), com parte da grande mídia (como a Globo) e com parcela expressiva de seus apoiadores originais (de Joice Hasselmann e Janaina Paschoal a Gustavo Bebiano e Carlos Alberto Santos Cruz) não são criações ficcionais. Não há só oposição, é claro. Mas tampouco há identidade. Os golpistas de 2016 e 2018 tinham dois objetivos: aniquilar com o PT e recolocar no poder gestores neoliberais e privatistas, mas que operassem dentro de certos limites de “republicanismo, decência e hierarquia”. O que se queria, era a volta do PSDB de FHC, que não operava o Estado como um instrumento de ganhos para si e para seus amigos, mas como uma estrutura de poder voltada ao atendimento das demandas da “nata da sociedade”: a oligarquia industrial e financeira quatrocentona paulista. Bolsonaro foi muito além. Trouxe o mais baixo clero para a gestão do país. E quer governar com estes e para estes. Seu projeto de gestão é simples: todo o apoio à chinelagem.

E é aí que mora o perigo: se Bolsonaro se reeleger sem que a mídia esteja reverberando “mensalões e petrolões”, sem uma Lava-Jato em curso, sem prisão ilegal de Lula, sem fakeada, sem apoio direto da grande imprensa, sem a benção e o apoio silencioso e sorridente dos Ministros do STF, então, a vitória do Capitão será plena. E ele a usará para fazer uma gestão sem freios e com o apoio dos 4 Ministros do STF que, neste caso, ele irá indicar.

O Centrão e a Bancada BBB (da Bala, do Boi e da Bíblia) e as diversas forças armadas (nem todas legais) esperam ansiosamente por esta vitória. E, junto com estes, Paulo Guedes, seus Chicago Boys e os maiores especuladores e financistas do país, que já antecipam os lucros monstruosos que advirão da nova onda privateira. Afinal, a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o BNDES e tantas outras joias da coroa podem enriquecer a muitos amigos e permitir a aquisição de bem mais do que 107 imóveis com dinheiro vivo, não é verdade? …

Isto significa dizer que, mais até do que em 2018, é a sobrevivência do país que está em jogo nestas eleições. Até mesmo parte do PSDB já se deu conta de que a criatura Bolsonaro se autonomizou de seus criadores e é um risco para o Brasil. Ao assumir a candidatura à vice-presidência na chapa de Lula, Geraldo Alckmin e seus aliados no (decadente) PSDB reconheceram este fato evidente. O apoio (algo tardio!) à chapa Lula-Alckmin por parte de Simone Tebet, Ciro Gomes, FHC, Tasso Jereissati, Joaquim Barbosa e de outras lideranças nacionais situadas no espectro do “centro” político vai no memo sentido. Mas os riscos que corremos ainda são enormes. E não só para nosso país, mas para o mundo. Afinal o Brasil não é um “peão” no xadrez político mundial. Ele conta com metade da população e da área da América do Sul, é uma das maiores economias do mundo e um dos 5 pilares dos BRICS. Num momento em que o mundo luta contra o aquecimento global e a hegemonia dos EUA e da OTAN é questionada pelas potências emergentes da Eurásia (China, Rússia e Índia à frente), a direção tomada pelo Brasil pode definir os rumos do jogo político e energético-estratégico internacional. A vitória de Bolsonaro coloca em risco a Amazônia e o equilíbrio climático mundial, divide e enfraquece a América Latina e joga água no moinho dos EUA e do Ocidente Otanista. O desafio é enorme. Mas é fundamental vencê-lo. E, para tanto, precisamos, antes de mais nada, entender o que aconteceu no primeiro turno.

⦁ Por que as pesquisas de intenção de voto erraram tanto?

O primeiro a entender é que as pesquisas eleitorais erraram muito menos do que a maior parte dos analistas tem pretendido. E isto na medida em que as pesquisas avaliam e medem a intenção de voto. Mas uma parcela expressiva dos eleitores potenciais, que tinham a intenção de votar neste ou naquele candidato, não o fizeram: a taxa abstenção no primeiro turno de 2022 foi a mais elevada desde as eleições de 1998, alcançando a cifra de 20,89%. De acordo com o TSE, mais de 32 milhões de eleitores não compareceram às urnas no dia 2 de outubro.

Como bem o reconheceu Lavareda (um dos poucos analistas a captarem o papel da abstenção no desvio entre pesquisas e votos efetivos), a abstenção não se distribui uniformemente entre os diversos estratos de eleitores. Ela tende a ser mais elevada entre os eleitores que arcam com custos mais elevados para exercer o direito a voto; sejam custos monetários, sejam custos de tempo de deslocamento. E estes custos tendem a ser maiores entre a população rural e aquela parcela da população trabalhadora urbana que habita a periferia das grandes cidades e que tem no domingo o seu único dia (quando tem!) de descanso e lazer. Igualmente bem, a abstenção tende a ser maior entre eleitores que, apesar de preferirem esta ou aquela candidatura, não estão seguros e convictos de sua opção. Vamos analisar abaixo como estas duas determinações podem ter contribuído para a discrepância entre a percentagem de votos efetivamente auferidos por Bolsonaro e as projeções dos principais institutos de pesquisa. Antes disso, porém, parece-nos importante criticar duas “explicações” que receberam grande difusão nos em veículos de imprensa e nas redes sociais tão logo o resultado do primeiro turno foi consolidado.

A primeira destas “explicações” era de que a amostragem das pesquisas seria mal feita, seja porque a atraso na realização do Censo Demográfico impede a atualização dos critérios de estratificação dos entrevistados na amostra, seja porque as pesquisas só captavam a intenção de voto nos centros urbanos, sem descer aos “grotões” do território, onde o bolsonarismo estaria enraizado. Esta crítica está baseada num equívoco. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-Contínua) fornece elementos suficientes, seguros e rigorosos para a realização da estratificação de amostras do eleitorado nacional. Evidentemente, os institutos de pesquisa podem estratificar sua amostra de forma equivocada. E podem fazê-lo por incompetência, por economia de recursos (ignorando os “grotões”), ou por interesse político em privilegiar a base eleitoral deste ou daquele candidato. Mas, se isto ocorreu, não foi por falta de dados estatísticos. E, com certeza, não se impôs a todas as pesquisas. Não obstante, a discrepância emergiu em todas elas. Logo, devemos buscar a explicação em outro lugar.

Uma segunda “explicação” que emergiu foi a de que parcela dos eleitores de Bolsonaro ocultaria seu voto real por se envergonhar de sua opção por dar um segundo mandato a um gestor incompetente e corrupto. Esta “explicação” usualmente vem associada (de forma bastante confusa) a avaliações de que, como regra geral, faltaria consciência de classe ao eleitor brasileiro médio e que parcela expressiva dos trabalhadores e estratos sociais mais pobres privilegiaria a pauta conservadora de Bolsonaro no plano da “moral e dos costumes” a seus interesses econômicos. Ora, é fácil perceber que esta “explicação” não se sustenta em pé. Não se trata de negar a importância da pauta dos costumes ou o conservadorismo de parcela expressiva da população mais pobre (em especial, os evangélicos). Contudo o bolsonarista evangélico e/ou dos “bons costumes” não tem qualquer “vergonha” de sua opção por Bolsonaro. E as pesquisas captavam muito bem o peso da pauta de costumes. Ele se expressava exatamente na ampla preferência por Bolsonaro dos eleitores evangélicos de todos os estratos de renda. Por oposição Lula era (e é!) o candidato preferencial dos eleitores católicos, ateus ou seguidores de outras religiões. Mas o problema ainda é maior. Esta explicação é autocontraditória. Ou parcela dos entrevistados tem vergonha de declarar sua intenção de votar em Bolsonaro, ou a população é desinformada politicamente, não tem consciência de classe e não alcança perceber quão corrupto é o governo Bolsonaro. Se há vergonha, há consciência. Mas, neste caso, porque votariam num candidato que lhes envergonha? Seria mais razoável pensar o contrário: que o temor da crítica de seus pares (na elite conservadora, na comunidade evangélica, etc.) lhes induzisse a declarar voto em Bolsonaro, sem, de fato, efetivar o voto na urna.

Mas o principal problema desta “explicação” é que não parece faltar consciência de classe ao eleitor brasileiro. Na verdade, todas as pesquisas eleitorais mostravam com clareza meridiana a clivagem socioeconômica do típico eleitor de Bolsonaro e de Lula. Na pesquisa Datafolha disponibilizada em 29 de setembro, a intenção de voto total em Lula era de 48% e em Bolsonaro era de 34%. Mas a diferença entre os dois candidatos se ampliava quando tomávamos apenas os eleitores com rendimentos até 2 salários mínimos (SMs). Neste caso, a intenção de voto em Lula era de 57% e em Bolsonaro de apenas 26%. Por oposição nos estratos superiores – entre 5 e 10 SMs e acima de 10 SMs – a situação se invertia: a intenção de voto em Bolsonaro (de 49% e de 44%, respectivamente) era superior à intenção de voto em Lula (33% e 40%). A clivagem de classe não poderia ser mais clara, revelando elevada consciência das diferenças de projeto dos dois candidatos e da consistência de cada um deles com os interesses estratégicos dos eleitores.

Enfim, não parece possível explicar a discrepância entre os prognósticos das pesquisas e a votação efetiva nos candidatos a partir de problemas de amostragem, conservadorismo envergonhado ou falta de consciência de classe. Não se trata de negar qualquer pertinência a estes fatores. Eles até podem ter contribuído de forma marginal. Mas eles não dão conta de explicar a distância entre os prognósticos do percentual de votos em Bolsonaro e o percentual efetivamente obtido por este candidato. O que nos traz de volta à questão posta inicialmente: até que ponto esta discrepância pode ser explicada por uma distribuição anormal e viesada da abstenção às urnas, que teria ampliado a percentagem de Bolsonaro?

Afirmamos acima que o “custo” de votar não é o mesmo para todos os eleitores. Desde logo, ele tende a ser maior para os domiciliados no meio rural. O que se desdobra numa questão importante: haveria alguma inflexão política no eleitor dos “grotões”? Em uma certa versão das “explicações” anteriores, sim, haveria. E esta inflexão seria pró-Bolsonaro. Para os defensores desta “tese”, as pesquisas de intenção de voto (por determinações de custo, ou por equívocos na estratificação) não teriam captado adequadamente o voto do interior. A hipótese é logicamente consistente, mas não parece se coaduna com fatos. Em primeiro lugar, a hipótese ignora que, se o voto de Bolsonaro está nos grotões, a taxa de abstenção dos eleitores de Bolsonaro deveria ser maior (e não menor) do que entre potenciais eleitores de Lula. Seriam os bolsonaristas que arcariam com os maiores custos de deslocamento. Mas o problema maior desta tentativa de explicação é que os dados não confirmam que o eleitor rural seja majoritariamente bolsonarista.

Até a conclusão deste artigo, o TSE ainda não havia disponibilizado informações sobre a taxa de abstenção em nível municipal. Porém, em uma pesquisa que realizamos para avaliar os determinantes da votação em Bolsonaro e em Haddad em 2018, e que teve por base informações do TSE para os 5570 municípios brasileiros, encontramos uma correlação positiva e significativa de 0,444 entre percentagem do voto em Haddad no segundo turno e a percentagem da população rural na população municipal. E uma correlação negativa e significativa de -0,288 entre a percentagem de voto em Bolsonaro no primeiro turno e percentagem da população rural no total municipal. Não há porque supor que esta correlação tenha se alterado significativamente (muito menos, que tenha se invertido!) entre 2018 e 2022. Pelo contrário, os dados já disponíveis sobre o pleito de 2022 em nível municipal sinalizam para a persistência da correlação entre ruralidade e voto na candidatura do PT e urbanidade e voto em Bolsonaro. A figura abaixo – extraída do site g1 – aponta nessa direção.

Desde logo, a figura deixa claro que a principal determinação de voto em Bolsonaro ou em Lula é de ordem regional: Norte e Nordeste foram “lulistas”, enquanto o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste foram majoritariamente bolsonaristas. Porém, as regiões lulistas são justamente aquelas que apresentam taxa de ruralidade superior à brasileira (13,78%). A percentagem da população rural no Nordeste é de 24,36% e no Norte é de 21,23%. A percentagem da população rural nas regiões que deram vitória a Bolsonaro é muito inferior: menos de 10% no Sudeste e no Centro-Oeste e pouco superior a 10% no Sul.

Além disso, a aparente preservação da correlação positiva entre ruralidade e voto em Lula não se manifesta apenas no plano macrorregional. Se observarmos os mapas de todas a Unidades da Federação disponibilizadas no site dO Globo veremos que, mesmo nos Estados do Sul e do Sudeste onde Bolsonaro obteve a maioria dos votos, emergem “manchas vermelhas” representando microrregiões onde Lula foi o candidato mais votado. E estas manchas – com raras e honrosas exceções – correspondem às regiões onde a taxa de ruralidade é superior à média. No Rio Grande do Sul as “manchas” encontram-se na Metade Sul, no Alto Uruguai e nos Campos de Cima da Serra: as três são regiões rurais. De outro lado, há uma enorme “mancha azul” no RS (onde Bolsonaro obteve a maioria dos votos) que se inicia na Região Metropolitana de Porto Alegre e vai até a Fronteira Noroeste, passando por Canoas, Gravataí, Novo Hamburgo, Caxias do Sul, Passo Fundo, Ijuí e Santa Rosa. Esta é a região mais industrializada e urbanizada do Estado. Em Santa Catarina, as manchas vermelhas são pequenas e esparsas, mas encontram-se apenas em sua porção oeste, em territórios eminentemente rurais. No Paraná a grande mancha vermelha encontra-se no centro-sul do Estado: a região mais pobre e rural desta UF. São Paulo destoa discretamente das UFs anteriores na medida em que Lula foi o candidato mais votado na Capital e em alguns municípios industriais do entorno. Porém, as demais (raras) manchas vermelhas em São Paulo encontram-se em territórios tipicamente rurais, como o Pontal do Paranapanema e o Vale do Paraíba. O mesmo quadro encontramos no RJ, onde Bolsonaro foi vitorioso inclusive na capital e Lula (para além de Niteroi) apresentou melhor desempenho nos municípios pobres e rurais do Vale do Paraíba (ao sul) e na região mais pobre do Estado, na divisa com o Espírito Santo. Minas Gerais deu vitória a Lula, mas Bolsonaro foi vitorioso em Belo Horizonte e nos municípios mais populosos e de maior renda per capita, como Uberlândia, Contagem e Uberaba. A grande mancha vermelha (lulista) encontra-se no norte do Estado, onde encontram-se os municípios menos urbanizados, menos industrializados e de menor renda per capita. O mesmo ocorre no Espírito Santo, que deu vitória a Jair Bolsonaro (inclusive na capital, Vitória), mas que apresenta uma mancha vermelha na sua porção norte, na divisa com a Bahia.

Alguém poderia esgrimir, contra a tese acima, o argumento de que as duas macrorregiões que apresentaram a menor taxa de abstenção foram, justamente, as duas regiões “lulistas” e de maior taxa de ruralidade: Norte e Nordeste. Não obstante, esta crítica é apressada e se assenta numa extrapolação indevida. Não se pode inferir a taxa de abstenção dos municípios a partir da taxa de abstenção da região no qual ele está inserido. É possível – e, insistimos, provável – que a taxa de abstenção dos municípios rurais e, em especial, da população domiciliada no campo nestes municípios, supere significativamente a média da região. E isto porque, como qualquer média, a taxa de abstenção de uma região é fortemente influenciada pelos valores extremos, vale dizer, pela taxa de abstenção nos municípios mais populosos. Se, nestes últimos, a abstenção for significativamente inferior à média nacional, a taxa de abstenção da região como um todo será inferior à taxa nacional. Mesmo que esta taxa seja elevada nos municípios rurais de população menos significativa.

Seja como for, mais de 86% da população brasileira está domiciliada nas cidades. E, se há um viés “político” nas taxas de abstenção, é para a população urbana que devemos voltar o nosso olhar. Ora, tal como foi afirmado acima, os “custos do voto” também são mais elevados para a população urbana pobre. E este custo não é primariamente monetário, mas de tempo. A conquista do passe livre universal no domingo do primeiro turno foi, sem dúvida, uma grande vitória. Mas é preciso entender que “passe livre” não elimina os custos do deslocamento do morador da periferia. Usualmente, o número de ônibus em circulação nos domingos é menor que durante a semana. Para muitos eleitores potenciais, o tempo de espera pela condução “sem ônus” pode ser longo. Em especial para aqueles moradores da periferia das grandes cidades. E de forma ainda mais acentuada para os moradores em terrenos não regularizados, que contam com um sistema de transporte ainda mais precário que o usual e cujas seções eleitorais, normalmente, encontram-se a vários quilômetros de distância. Nestas condições, o exercício do voto pode ser trabalhoso e envolver o dispêndio de algumas horas do único dia de descanso e lazer da semana. Este eleitor, necessariamente se vê diante da seguinte questão: será que o benefício do meu voto vale tamanho custo?

Qual é o benefício do voto? Contribuir para a eleição do candidato e do projeto com o qual “eu” me identifico. Mas, qual o peso do “meu” voto para a definição do resultado do pleito? Virtualmente zero. Se “eu” votar, ou não, o resultado da eleição não será alterado. Este é exatamente o “Dilema da Ação Coletiva”, tão bem analisado na Teoria dos Jogos. Quando minha ação individual é incapaz de alterar um resultado final e, ainda por cima, esta ação implica um custo relativamente elevado para mim, eu só a realizo se ela se impõe para mim como um dever moral e/ou se tenho uma grande convicção do acerto e pertinência de minha decisão política.

E aqui, parece-nos, encontra-se o busílis do problema. A preferência pela candidatura Lula entre a população de baixa renda no campo e na cidade parece-me inquestionável. Acredito que ela tenha sido apreendida de forma essencialmente correta nas pesquisas de intenção de voto. Na verdade, creio que, se houve algum desvio nas pesquisas, foi no sentido da subestimação da intenção de voto em Lula. Afinal, é mais razoável ter “vergonha” e “medo” de declarar voto no PT do que no atual Presidente. No senso comum, Lula é o candidato ladrão, defensor dos gays e adversário das igrejas evangélicas. Além de ser o candidato que 9 entre 10 patrões renegam e te “aconselham” a não votar “pelo bem da empresa e do seu emprego”.

Mas se o custo do exercício do voto é maior para o mais pobre (que, em sua maioria, é eleitor de Lula), este sujeito só o exercerá se ele também trouxer um benefício maior do que o esperado por eleitores de estrato de renda superior: é preciso ter muita confiança no projeto de Lula-Alckmin. Uma confiança que a Frente Brasil da Esperança não conseguiu consolidar com a intensidade que seria necessária. A verdade é que a campanha de Lula não conseguiu eliminar as dúvidas do “povão” sobre sua idoneidade e a idoneidade do PT, seu partido. E esta “mancha-dúvida” operou como um depressor do benefício que parte da população mais carente era capaz de atribuir ao exercício (custoso) do voto.

A confirmação desta hipótese não é trivial. Desde logo, o TSE não disponibiliza dados de abstenção por estrato de renda. Mas o TSE disponibiliza dados de abstenção por faixa etária e por nível educacional. E elas nos dão uma pista. Senão, vejamos.

A abstenção por faixa etária foi a seguinte: 1) entre 16 e 24 anos, 21,89% se absteve; 2) entre 25 e 34 anos, 23,03% se absteve; 3) entre 35 e 44 anos, 18,84% se absteve; 4) entre 45 e 60 anos, a abstenção foi apenas de 14,88%; 5) acima de 60 anos, 35,75% dos potenciais eleitores se abstiveram. Ou seja: os adultos-maduros, na faixa entre 35 e 60 anos, apresentaram uma taxa de abstenção significativamente inferior aos mais jovens (16 a 34 anos) e idoso (acima de 60). De outro lado, a abstenção por nível educacional foi: 1) eleitores analfabetos, 46,28%; 2) lê e escreve, 28,38%, 3) ensino fundamental incompleto, 23,39%; 4) fundamental completo, 24,75%; 5) médio incompleto, 22,7%; ensino médio completo, 18,88%; 6) superior incompleto, 22,08%; 7) superior completo, 19,44%; 8) não informado, 54,76%.

Ora, todos os institutos de pesquisa mostravam que havia uma correlação inversa entre o grau de instrução e a faixa etária intermediária e a intenção de voto em Lula. O que não pode surpreender a ninguém. O fato é que há uma correlação positiva, expressiva e significativa entre renda e grau de instrução. Assim como existe uma correlação positiva (ainda que menos expressiva e menos significativa) entre renda e faixa etária. Na verdade, o que os dados do TSE sinalizam é que os eleitores que apresentaram maior grau de abstenção foram os eleitores de menor renda (e vice-versa), justamente aqueles eleitores que, nas pesquisas de intenção de voto, privilegiavam a candidatura Lula. No Quadro 2 abaixo, apresentamos um exercício numérico muito simples, de caráter meramente hipotético, que, quiçá, ajude o leitor a decifrar este imbróglio.

O modelo está construído sobre as seguintes hipóteses. Imaginemos que o número total de eleitores no Brasil fosse de apenas 100 e que distribuição da intenção de votos fosse tal que metade destes votos iria para Lula, 35% para Bolsonaro e 15% para os demais candidatos. Imaginemos, agora, que 21 eleitores não tenham comparecido às urnas (lembrem-se que a abstenção efetiva no Brasil foi de 20,89%). Por fim, suponhamos que a distribuição da abstenção tenha sido marcadamente desigual entre as candidatura. Dentre os 21 ausentes, 11 intencionava votar em Lula, apenas 3 pretendiam votar em Bolsonaro e os demais 7 privilegiavam as demais candidaturas. Neste caso, Lula teria deixado de receber o voto de 22% de seus eleitores potenciais, Bolsonaro perderia 8,57% de seus eleitores, enquanto os demais deixariam de contar com 46,67% de seus votos potenciais. O resultado deste exercício que, ao fim e ao cabo, a percentagem dos votos efetivamente recebido pelos candidatos com relação aos votos efetivos seria de 49% para Lula, 41% para Bolsonaro e 10% para os demais candidatos. Importante notar que a percentagem de votos efetivos em Bolsonaro não cresceu porque ele conquistou mais eleitores. Mas cresceu porque ele foi o candidato cujos eleitores apresentaram a menor taxa de abstenção. Ele não ganhou mais. Apenas perdeu menos.

Importante frisar que, com os argumentos acima não estamos negando a possibilidade de Bolsonaro ter conquistado eleitores de última hora. Isto é possível e até provável. Nosso ponto é outro: estamos apenas tentando demonstrar que, mesmo este movimento não é condição sine qua non para o crescimento do percentual de votos em Bolsonaro. Este movimento pode ser facilmente explicado por diferenças nas taxas de abstenção.

Mas como explicar tamanhas diferenças. Ora, a razão da elevada abstenção dentre os eleitores da “Terceira Via” é elementar. Se um voto a mais em Lula ou Bolsonaro é incapaz de alterar o quadro eleitoral, ainda mais inconsequente é voto em candidaturas que não têm a menor possibilidade de passar para o segundo turno. Para os eleitores de Tebet, Ciro e Soraya, os benefícios da participação eleitoral são mínimos. Mas seus custos são estáveis.

A resiliência dos eleitores de Bolsonaro também não é difícil de compreender: nos estratos superiores de renda, de idade e de grau de instrução, os custos da participação eleitoral tendem a ser muito baixos. Usualmente, suas seções eleitorais encontram-se próximas do domicílio. E, se não for este o caso, a maior parte dispõe de meio de transporte próximo. Simultaneamente, o eleitor de Bolsonaro que se encontra nos estratos mais baixos de renda e grau de instrução tende a apresentar um grau de convicção e comprometimento (a)moral com a candidatura do Capitão que só encontra similar entre fanáticos religiosos, psicopatas, idiotas e fascistas. Na verdade, ainda que nem todos os eleitores de Bolsonaro caibam nestas categorias, uma parcela expressiva se enquadra nelas. E o restante é border line.

Por fim, para que se entenda a grande abstenção nos votos lulistas é preciso ir um pouco além dos argumentos socioeconômicos esgrimidos acima. É preciso atentar para a evolução da taxa de rejeição a Bolsonaro e a Lula nos meses recentes. Segundo a taxa de rejeição a Lula IPEC teria passado de 33% para 38% entre o início de agosto e final de setembro. Enquanto isso, a taxa de rejeição a Bolsonaro caiu de 51% para 46%.

Ora, é de conhecimento virtualmente universal que a queda na rejeição a Bolsonaro está associada aos “pacotes de bondades eleitoreiros”, do Auxílio Brasil à queda do preço dos combustíveis, passando por todos os (des)caminhos do Orçamento Secreto. Igualmente conhecido é o fato de que a rejeição à Lula cresceu em função da exponenciação dos disparos de fake-news pelas redes bolsonaristas. Mas esta é apenas a ponta do iceberg. Há dois elementos que, do meu ponto de vista, ainda não foram adequadamente compreendidos.

O primeiro elemento é o papel da queda da rejeição de Bolsonaro na depressão do “benefício do voto em Lula”. Se o atual presidente não é tão ruim quanto me parecia há algum tempo atrás, porque vou arcar com o (para muitos, elevado) custo do voto? Vale dizer: a queda da taxa de rejeição a Bolsonaro alavanca a abstenção lulista.

O segundo ponto é ainda mais importante. Não me parece que o crescimento da taxa de rejeição de Lula advenha, nem exclusivamente, nem principalmente dos movimentos do “gabinete do ódio” bolsonarista. Creio que a determinação de fundo é que a Campanha de Lula não conseguiu vencer o embate com o lava-jatismo. Na verdade, ao longo da campanha tempo voltou a crescer – mesmo dentre eleitores potencial de Lula – a crença na corrupção endêmica dos governos do PT e na consistência jurídica do Mensalão e do Petrolão. Estes são os tais eleitores do PT que ainda “estão à espera de uma autocrítica” e do reconhecimento das (pretensas) prevaricações. Para os mesmos, o voto em Lula não é um voto confiante, engajado, militante. É tão somente o voto no candidato “menos pior”, um voto para se contrapor ao Capiroto, mais do que para recuperar os bons velhos tempos das gestões “petralhas”.

A derrota de Lula e da Frente Brasil da Esperança no embate com o lava-jatismo não foi determinada primordialmente por equívocos de condução da campanha. A principal determinação desta derrota estava é exógena e tem nome e sobrenome: chama-se Ciro Gomes. O candidato do PDT estruturou toda a sua campanha em torno da crítica acerba dos governos Lula e Dilma. Uma crítica que apenas começava pelas reiteradas acusações de corrupção e avançava para a crítica de todas as políticas econômicas e sociais dos governos populares. Na construção ideológica e ficcional de São Ciro, os governos do PT não teriam enfrentado os principais problemas econômicos do país – da especulação financeira à desindustrialização – por um misto de opção política conservadora (compromisso com os banqueiros) e incompetência. Na ficção deslumbrada e cesarista de Ciro, o Presidente da República deteria os poderes necessários e suficientes para mudar o que bem entendesse; não existiria qualquer necessidade de negociar com o (e, eventualmente, se submeter ao) Congresso, nem de respeitar a opinião pública (amplamente manipulada pela mídia reacionária) e, muito menos, de se submeter às determinações e decisões de um Judiciário politizado e seletivo.

Se Ciro fosse um neófito na Política e desconhecesse a (perversa) estrutura de poder no Brasil, até se poderia justificar seu discurso mirabolante como expressão de “ignorância inocente”. Não é o caso. Ciro não tem nada de ignorante. Muito menos, de inocente. Ciro sabe que mente. Só que seus eleitores não sabem disso. Estes, acreditam que Ciro seja uma liderança de esquerda particularmente douto em todos os assuntos e um gestor de articular e executar as mudanças que o país precisa.

Mas não tergiversemos: não importa debater, aqui, o famoso “programa Ciro”. O que importa é entender que Ciro emprestou um novo selo de “idoneidade” ao discurso lava-jatista e golpista. Se as críticas feitas por Ciro fossem manifestas pelo Padre Kelson, por Felipe D’Ávila ou por Soraya Thronicke o impacto sobre a credibilidade de Lula e da Frente Brasil da Esperança seria mínimo; virtualmente nenhum. Mas elas reconquistaram audiência e confiabilidade na medida em que foram sistematicamente manifestas por uma “candidatura de esquerda”. Mais: de alguém que já foi Ministro de Lula e que, teoricamente, viu as “barberagens e a roubalheira” desde dentro.

Ciro e o PDT pagaram um preço enorme pela postura arrogante, divisionista e retrógrada do candidato, que recuperou todo o discurso que deu guarida aos golpes de 2016 e 2018. Objetivamente, Ciro se colocou – ao lado do Padre Kelmon e Felipe D’Avila – como uma figura auxiliar à candidatura Bolsonaro, reverberando (ainda que de forma matizada) todas as acusações do atual Presidente aos governos populares. O preço que PDT teve de pagar é de conhecimento público. Este partido perdeu os dois únicos governos estaduais da sigla (Amapá e Ceará), não alcançou eleger um único Senador e teve a bancada na Câmara Federal reduzida de 19 para 17 deputados. Mas a nação pagou um preço muito maior que o PDT. Ciro não impediu a vitória de Lula no primeiro turno apenas por insistir com sua candidatura, a despeito de totalmente inviável. Ciro deu um fôlego novo ao lava-jatismo e é corresponsável pela elevada votação de Bolsonaro e pela inflexão à direita do Congresso Nacional. A questão que se coloca agora é: o que fazer diante desse quadro?

Do meu ponto de vista, a campanha do segundo turno deve ter como foco central a recuperação da confiança popular em Lula enquanto adversário da corrupção. É preciso virar o dedo acusador na direção de quem o merece. É preciso demonstrar que corruptos, de fato, são os Bolsonaros com seus 107 imóveis adquiridos com base em rachadinhas e lavagem de dinheiro em lojas de chocolate. É preciso demonstrar corrupto é este governo, com seu vergonhoso Orçamento Secreto, licitação de cartas marcadas (até para vacinas) e distribuição discricionária, seletiva, politicamente orientada e privatista das verbas da Educação. Estes dois movimentos são, na verdade, um só: a defesa de Lula e da Frente Brasil da Esperança é, também, o ataque à gestão Bolsonaro. E o objetivo desta estratégia pode ser traduzido numa fórmula: inverter o viés da abstenção no segundo turno: são os eleitores de Bolsonaro que devem se perguntar se o benefício de seu voto vale o custo da participação. Os nossos eleitores é que devem estar convictos do valor de seu voto. É preciso, urgentemente, recuperar a verdade. Ou Bolsonaro transformará nosso lindo país numa sarjeta a céu aberto.

Abaixo, ainda deixo o quadro que fiz com o perfil político do novo congresso, que também traz dados interessantes para a reflexão.


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat.

Imagem em Pixabay.

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