De JURANDIR MALERBA*

Foi com emoção, mas foi! E agora temos um país em escombros para reerguer. Uma avalanche de pautas políticas, sociais, econômicas mobilizarão os especialistas – inclusive os diplomados nas ‘Uniwhatsapps’ da vida. Não foi uma construção fácil, nem será uma fácil transição. A sabotagem por parte do incumbente começou já no não reconhecimento imediato da derrota, dando ensejo aos esperneios aguardados, como bloqueios de algumas estradas. Todos sabem que não há espaço para contestação da vitória da ampla frente democrática costurada por Lula, o maior gênio da política brasileira de todos os tempos. Agora, é deixar decantar as turvas águas agitadas da transição, montar a equipe e começar a trabalhar.

Os tempos difíceis mal começaram, que não haja ilusão. As sabotagens e chantagens serão constantes. O Senado e a Câmara eleitos não poderiam ser mais conservadores e fisiológicos; usarão todas as armas, inclusive as sujas. A frente democrática, por muito ampla, terá vida curta; à menor marola, surgirão as dissidências. As Forças Armadas seguem sendo uma incógnita, mas todos conhecemos as matérias que as compõem. Os vendilhões dos templos corromperam a correlação da política com a religião, num Estado constitucionalmente laico. A democracia brasileira estará condenada sem a urgente regulamentação das mídias, tradicionais e digitais. Enfim, a pauta do novo governo, que com razão priorizará a assistência aos mais expostos ao abandono pelo governo que acabará 31 de Dezembro sem nunca ter efetivamente começado, está carregada e precisará de todo apoio e paciência para que as urgências sejam uma a uma cuidadas.

Aqui eu gostaria de ponderar dois aspectos da batalha recém vencida. Primeiramente, Lula is the man, como sentenciou Barack Obama. Um gênio da política, que devemos respeitar e confiar. Quando ele fez um dos primeiros e mais ousados movimentos de sua campanha, convidando o antigo adversário e eterno tucano Geraldo Alckmin para seu vice, lembro-me das manifestações indignadas, ruidosas, inconformadas, mesmo violentas inclusive de pessoas do “campo progressista” e militantes do próprio Partido dos Trabalhadores. A cada passo de Lula rumo ao centro, em direção à chamada “direita liberal”, buscando interlocução com antigos opositores – de Tasso Jereissati a Gilberto Kassab, de Renan Calheiros a Paulinho da Força, de Aloysio Nunes a Simone Tebet, de Sarney a FHC –, mais setores de certa “esquerda purista” vociferavam nas redes sua indignação. A lição que fica é que essa ala do partido estava errada e Lula correto na estratégia. Se nosso candidato tivesse abraçado um programa “puro sangue” PT, provavelmente não teria mais que 20% dos pontos e esta nação condenada a se tornar uma republiqueta fundamentalista autoritária. Então, respeitemos esse senhor, essa fênix da política. Aliás, nosso apoio no sentido da sustentação da democracia mesma exigirá de nós paciência e sacrifícios. Desde o golpe de 2016 as classes trabalhadoras, incluídos os servidores públicos, sofremos sucessivas e monumentais perdas, que não é preciso listar. Durante esses seis anos de opressão neoliberal devastadora, não se assistiu qualquer movimento significativo de resistência por parte de sindicatos e associações trabalhistas. Vamos ver quanto tempo levará para o novo governo provar do “fogo amigo”, antes de começarem as greves e paralizações.

Um segundo ponto fundamental é a urgência de superarmos a fatídica tradição de transições conservadoras, de transições “lentas, segurais e graduais” que marcam toda nossa história republicana, de acordo com a qual crimes cometidos por governos autoritários são varridos para baixo do tapete em nome de uma “pacificação” garantidora de “governabilidade”. No dia 30 de Outubro, ao proclamar-se a vitória da “Federação Brasil da Esperança”, em seu pronunciamento oficial o presidente da Câmara dos Deputados e líder do “centrão” Arthur Lira declarou a necessidade de “evitar revanchismos e perseguições”, que pode ser lido como um recado de que Jair Bolsonaro deve ser poupado dos crimes cometidos ao longo de quatro anos. Não se trata de revanchismo. A própria saúde da democracia brasileira demanda a rigorosa apuração de todos os crimes denunciados, alguns fartamente documentados, cometidos pelo próprio presidente e por seguidores. Cabe à sociedade civil, particularmente entidades de caráter jurídico como a OAB, a ABDJ, ou o grupo Prerrogativas, irem fundo nas ações e investigações. Nada deixar a descoberto, provocando o poder judiciário, reabrindo casos açodadamente encerrados, fazendo avançar casos em aberto, instaurando novos. Há duas centenas de pedidos de impeachment represados pelo presidente da Câmara, fartamente documentados, afora os crimes comuns, anteriores e/ou cometidos durante a vigência do mandato do presidente, seus familiares e ministros. Só a CPI da Covid é um manancial sem fim de crimes comprovados, aguardando para serem levados às barras dos tribunais. Não cabe dar um minuto de paz a esses criminosos, pois cada minuto de que dispuserem serão utilizados para golpear o governo, a democracia a liberdade dos cidadãos. “Eles não podem mais respirar”.

Não nos enganemos, a luta está apenas começando.

*Historiador, Professor Titular Livre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Imagem em Pixabay.

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