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Divergências sobre causas da estiagem no RS travam soluções de longo prazo para o problema

Divergências sobre causas da estiagem no RS travam soluções de longo prazo para o problema

Meio Ambiente por RED
11/04/2023 18:30 • Atualizado em 11/04/2023 14:46
Divergências sobre causas da estiagem no RS travam soluções de longo prazo para o problema

Ambientalistas de um lado, setores do agronegócio de outro evidenciam as diferenças de propostas para enfrentar a seca que castiga o estado

A estiagem que castiga o Rio Grande do Sul nos últimos três anos é um problema que não se restringe ao produtor rural e afeta toda a sociedade gaúcha. Afinal, os prejuízos do campo são logo percebidos nas gôndolas dos supermercados. Quanto a isto há acordo entre os diferentes atores econômicos e políticos envolvidos no debate que avalia os impactos da seca e tenta encontrar respostas para melhor lidar com o tema no futuro – porque sim, todos também reconhecem que a estiagem no RS se tornou um problema cíclico, ligado ao contexto da crise climática do planeta.

Outro consenso se refere à necessidade de haver políticas públicas de Estado estruturantes para enfrentar o problema no médio e longo prazos. As ações emergenciais anunciadas pelo governo estadual e federal são importantes para o socorro imediato dos agricultores que tiveram perdas nas safras, mas não resolvem os desafios futuros.

Um terceiro consenso se relaciona com a urgência da criação de projetos de reserva de água e de irrigação, de modo a permitir que os produtores rurais não desperdicem a água no período das chuvas e tenham técnicas mais eficazes de irrigar as lavouras e manter os animais.

O consenso começa a se perder quando a discussão avança para as causas da seca. É neste ponto que as divergências se tornam evidentes e, como consequência, as propostas de solução também. No centro do debate está a proteção dos ambientes naturais responsáveis pela produção de água no RS, embora nenhum dos atores envolvidos se arrisque a discursar em público contra a defesa do meio ambiente.

Um grupo enfatiza não fazer sentido discutir projeto de irrigação sem antes garantir a existência de água; outro grupo pouco trata do assunto. A divergência chega ao ponto máximo quando o tema é a relação dos cerca 150 mil hectares de campos nativos do Pampa anualmente convertidos em lavoura, principalmente de soja, e a relação disto com a estiagem, a falta d’água, a emissão de carbono na atmosfera, o aquecimento global, enfim, a crise do clima na Terra.

Coordenador-geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) do RS, Douglas Cenci cita como exemplo sas divergências a audiência pública de encerramento da Comissão Externa da Assembleia Legislativa criada para avaliar os impactos da estiagem e propor alternativas para o futuro, realizada no último dia 27 de março. Em determinando momento, um integrante do MST foi ao microfone fazer um forte discurso contra a expansão descontrolada das lavouras em detrimento da proteção ambiental. Em seguida, o representante da Farsul também se dirigiu ao púlpito para levantar a voz e refutar a sugestão ao afirmar que o agronegócio gaúcho produz “dentro da lógica de carbono zero” e é “exemplo para o mundo”. Para quem assistia a reunião, pareciam falar de mundos diferentes.

Cenci avalia que cada grupo olha o problema da estiagem a partir do seu contexto. Para os representantes do agronegócio, ele avalia, o foco está na legislação ambiental que limita o armazenamento de água em Áreas de Preservação Permanente (APP). O setor quer novas regras mais flexíveis para destinar as água dos rios e nascentes para a irrigação das lavouras. A irrigação, ele concorda, é fundamental, mas avalia ser preciso ir com calma, o famoso “nem 8, nem 80”.

“A gente também não pode acabar com os rios para garantir a produção, porque aí não se tem preocupação ambiental pelo todo e isso não é sustentável”, pondera. Por outro lado, ele comenta que os mesmos representantes do agronegócio não se preocupam com as questões emergenciais que afetam os pequenos produtores. A razão, diz ele, deve-se ao fato dos grandes produtores terem mais “estofo” para suportar prejuízos, além de conseguirem renegociar dívidas com mais facilidade. “As pautas são diferentes por conta da realidade de cada um”, explica.

No que se refere às demandas dos agricultores familiares, o diretor da Fetraf/RS avalia que a viabilização das medidas sugeridas depende basicamente de compreensão política dos governantes. Para ele, tanto os governos quanto a sociedade ainda precisam tratar o tema com mais seriedade.

“A sensação é que a gente faz um monte de discussão e está sempre no começo. A gente está sempre gritando que precisa fazer alguma coisa, mas isso nunca se torna realidade. O governo não tem tido disposição de fazer um debate mais sério sobre o tema”, desabafa. “O agronegócio não quer discutir o conserto dos problemas ambientais porque isso significa abrir mão de uma parte da produção.”

Cenci pondera que a estiagem é um problema amplo e que precisa envolver diversos setores da sociedade para encontrar os melhores caminhos de como enfrentar o que o futuro reserva. Para dar a dimensão do desafio, destaca que o desmatamento da Amazônia impacta na falta de chuvas no Rio Grande do Sul.

Embora ciente de que não há resposta fácil para o problema da seca, diz que os movimentos feitos até o momento são apenas políticos, para dar satisfação a questões momentâneas. Como exemplo, lembra que o governo estadual criou, em 2022, o Fórum Permanente de Combate à Estiagem e o grupo teve, no período de um ano, somente duas reuniões.

A crítica alcança também o novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O diretor da Fetraf conta ter sido sugerido ao governo federal que criasse um espaço de debate com os estados da região Sul. A sugestão até foi aceita, mas apenas envolvendo os governos estaduais, deixando de fora as entidade de agricultores.

“Não serve nenhuma e nem outra forma de construir um processo. Talvez os governos ainda não tenham se dado conta do que significam os impactos das mudanças climáticas na vida não só dos agricultores, mas da sociedade como um todo”, avalia.

Douglas não tem dúvida de que a construção do que precisa ser feito para enfrentar o problema da seca deve ser coletiva e permanente. Do ponto de vista do agricultor, ele destaca três aspectos, sendo o primeira a necessidade de criação de mecanismos que incentivem e valorizem o produtor rural a preservar o meio ambiente. “Hoje, quem preserva não é valorizado. O que se ganha com isso? Muitas vezes é sinônimo de atraso ter uma área de preservação.”

O segundo ponto é o financiamento e a implementação de tecnologias que permitam que o agricultor consiga conviver com a seca. O diretor da Fetraf se refere ao armazenamento de água, tecnologias de produção e de cobertura de solo. O objetivo é trazer para o sul do Brasil técnicas que já fazem o Nordeste conviver com a seca.

O último aspecto é a criação de seguro agrícola para culturas que atualmente estão desprotegidas, como as hortaliças. “Todo mundo quer ter um alimento de qualidade e com preço justo, mas quando o agricultor não consegue produzir, o consumidor paga a conta, aumenta o preço. Então a gente entende que no momento de dificuldade, o governo, que é a sociedade representada, precisa auxiliar esses agricultores. Precisa ter uma política estruturada que socorra os agricultores”, defende.

Combinar o agronegócio com preservação ambiental tem sido motivo de disputa em meio a forte estiagem. Foto: Carina Venzo Cavalheiro

Secretária estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), Marjorie Kauffmann avalia haver um problema de comunicação no debate da reserva de água e do que significa intervir ou não em Áreas de Preservação Permanente (APP). Como exemplo, cita as barragens de hidrelétricas, alvos constantes de críticas. Ela garante haver recuperação dos impactos em áreas de APP causados por barragens de hidrelétrica construídas em rios para diferentes finalidades.

“Quando a gente fala que fazer barramentos ou represamentos para a reservação de água vai prejudicar a Área de Preservação Permanente, há um desconhecimento do que acontece na prática. Então não vejo conflito, até porque sabemos que uma das reclamações são para os licenciamentos dessas atividades e toda vez que a gente busca o licenciamento dessa atividade, a gente sabe que o impacto é previsto dentro do licenciamento e dentro do equilíbrio ambiental. Esses riscos já são avaliados”, sustenta, garantindo que, do seu ponto de vista, não há conflito e que o licenciamento garante o resguardo ambiental.

Marjorie diz que a “questão ideológica” atrapalha quem se posiciona contra os projetos de barragens, o que dificulta ver os benefícios à população da água ser reservada para um período crítico. Ao mesmo tempo em que defende o modo como as barragens são construídas no RS, a secretária diz reconhecer que o tema não é simples e tão pouco a solução é construir “um monte” de açudes e barramentos.

A secretária defende que a irregularidade na distribuição hídrica no Rio Grande do Sul faz com que seja preciso se adaptar e formular políticas estruturantes para reservar no momento em que há abundância de água para depois, quando faltar, a seca provocar impacto menor.

“O Rio Grande do Sul é um estado que tem uma diversidade muito grande de possibilidades hídricas. Temos algumas regiões com rios em que talvez grandes barragens podem ser a solução, mas temos regiões que não têm rios e então vamos ter que trabalhar para acessar via poços artesianos para o abastecimento”, afirma.

O colega de governo e secretário da Agricultura, Giovani Feltes, segue linha de pensamento semelhante e adota o discurso contra a “radicalização” da defesa do meio ambiente, assim como da “radicalizacão” na exploração do uso da terra pela agricultura.

“Temos legislação moderna aqui no Brasil. Hoje o pessoal do agro é absolutamente consciente da importância da preservação do meio ambiente para continuar a produzir alimentos”, diz.

Eventuais casos de agressão ao meio ambiente, pondera o secretário, não devem ser usados para “demonizar” todo o agronegócio, setor fundamental para a economia do estado. “Não tenho dúvida de que com bom senso e razoabilidade, você pode manter as duas coisas”, acredita, defendendo que a conscientização seja acompanhada da produção agrícola “maior e melhor”.

“Logo adiante vai se perceber que a agricultura e a pecuária no Brasil, sendo feita com equilíbrio e cuidado, vão produzir mais e melhor, com grande acúmulo de conhecimento e sem ferir o meio ambiente”, analisa o secretário da Agricultura.

A questão, todavia, é que a conversão dos campos nativos do Pampa em lavoura, calculada pelo MapBiomas em média de 150 mil hectares por ano, não se enquadra exatamente em “casos isolados” e tampouco deixa de ferir o meio ambiente. O tema é nitroglicerina pura no RS.

Feltes diz confiar que os produtores buscam o caminho da preservação para ter maior produtividade. A rotação das culturas, ele explica, é um exemplo, assim como o plantio direto, novos maquinários e estudos tecnológicos liderados no Brasil e no RS pela Emater e pela Embrapa. “Não tenho a menor dúvida de que ainda tem muito a avançar no manejo da terra e utilização dos recursos hídricos. A tecnologia ainda vai evoluir muito. Nós vamos continuar a ampliar nossa produtividade”, projeta.

Sem entrar em detalhes, Feltes cita a necessidade de mudança da legislação federal relacionada à “reservação” de água, “com responsabilidade e equilíbrio do meio ambiente”, assim como condições facilitadas para acesso a mananciais hídricos. O tema, posto de modo solto, causa arrepios nos ambientalistas.

“É preciso criar mecanismos com responsabilidade para que a gente possa ter maior acesso a mananciais hídricos, para que a gente tenha mais poços em localidades que, muitas vezes, falta até água para consumo humano”, justifica.

Apesar do otimismo, a convicção do secretário não é compartilhada por outros atores envolvidos no tema da estiagem e da crise climática. Em meados de março, pesquisadores e ambientalistas que compõem o grupo “Coalisão pelo Pampa” entregaram ao presidenta da Comissão da Estiagem da Assembleia Legislativa, deputado Zé Nunes (PT), um documento com sugestões de medidas a serem adotadas para enfrentar a crise climática e as secas futuras.

O documento afirma que o governo de Eduardo Leite (PSDB) e representantes do agronegócio não apresentam propostas que enfrentem o problema da falta de chuvas, algo diretamente atrelado à destruição dos biomas, poluição e emissão de carbono.

“A única alternativa apontada por estes setores para a falta d’água é a chamada ‘reservação’, termo inexistente até então, mas criado pelo agronegócio para explicar a possibilidade tanto de reservar água das chuvas anuais para uso no verão, quanto para a construção de barragens e consequente destruição de banhados, nascentes e áreas de preservação permanente (APP) no barramento de córregos. Esta suposta solução tende a agravar o problema a curto e médio prazo, pois os vultosos empreendimentos de irrigação serão feitos rapidamente pelos produtores rurais mais capitalizados e, no balanço hídrico das bacias, a reserva de uns será a falta agravada para outros”, diz trecho do relatório.

O ponto de vista dos ambientalistas encontra respaldo no discurso do deputado Zé Nunes. Segundo ele, antes de falar de estiagem e seca, é preciso falar da água. “A água é o recurso natural mais valioso da terra. Sem água não há vida. Sem a água não existe produção agrícola. Um dos temas levantados no debate do enfrentamento às estiagens é a reservação de água para irrigação e outros usos, um assunto relevante. Entretanto, para fazer reservação é necessário existir água. Desta forma, o primeiro desafio a ser enfrentado é o da conservação e da produção de água. Isso passa pela conservação de mananciais e nascentes, das matas ciliares e da revitalização das bacias hidrográficas”, explicou.

A secretária estadual do Meio Ambiente reforça haver no órgão um plano de revitalização das bacias hidrográficas. Diz que o plano busca restabelecer a integridade dos recursos hídricos por meio da recuperação das matas ciliares aos rios e das matas que circundam as nascentes. Atualmente, ela explica, o plano está ativo nas bacias hidrográficas dos rios Gravataí e Sinos, e a intenção é avançar para as outras bacias hidrográficas do estado.

Marjorie faz referência ao trabalho de regularização de poços artesianos, com o objetivo de ter o manejo adequado da disponibilidade hídrica. Ela acreditar ser primordial que todos os poços artesianos estejam dentro da regularidade para que o governo possa melhorar a gestão e autorizar ou não as outorgas da água.

“A gente conseguiu evoluir e aprender com os problemas que tivemos com a última estiagem, mas de uma maneira muito ‘pé no chão’, muito técnica, e estamos nos propondo a escrever um plano que não vai ser só desse governo, mas vai ser um plano de Estado”, afirma.

Seu desejo é de que o governo que estiver no poder daqui 10 anos, tenha o mapeamento com a priorização das obras que precisam ser feitas para minimizar os efeitos da irregularidade da água disponível. “A questão da adaptação é primordial à sobrevivência. Cabe a nós encontrarmos maneiras de usar os recursos naturais de forma coerente, responsável e promovermos ações de adaptação que não vão ferir a continuidade das gerações.”

Novamente, o otimismo de um representante do governo não convence muito os defensores do meio ambiente. Representante da Rede Sul de Restauração Ecológica na Coalisão pelo Pampa, Rodrigo Dutra alerta que o governo estadual anuncia um programa de recuperação de nascentes envolvendo áreas de centenas de hectares, enquanto o Programa de Regularização Ambiental (PRA), que está parado, envolve milhões de hectares. “É outra magnitude pra enfrentar o problema.”

Dutra define como paliativas as propostas de apenas reservar água, algo que, em última instância, pode até piorar o problema da falta d’água, considerando que a construção de barragem destrói áreas e privilegia quem tem dinheiro. “Quem não tem (dinheiro) vai ficar chupando dedo.”

O zootecnista sustenta que a principal lacuna no debate sobre as medidas para minimizar os impactos das futuras estiagens é não se discutir a implementação do PRA, responsável por toda a regularização do passivo ambiental no RS, incluindo áreas de nascentes, córregos, aquíferos e banhados.

“Fazem 11 anos que a lei previu o Cadastro Ambiental Rural, previu o PRA, e o Rio Grande do Sul nem mexeu com esse assunto. E isso é proteger as áreas que vão manifestar a produção de água. Não está se discutindo nada de produção de água”, critica.

O Pampa continua sendo o bioma brasileiro que mais perde sua área com cobertura natural. Foto: Arquivo Pessoal/Valerio Pillar

A expansão desordenada das lavouras sobre o Pampa, principalmente da soja, onde o MapBiomas estima que cerca de 150 mil hectares de campos nativos são convertidos todos os anos para esta e outras culturas agrícolas, é a principal divergência no debate do que fazer para enfrentar a estiagem em solo gaúcho.

Ambientalistas afirmam que a destruição destes campos leva à emissão de toneladas de carbono na atmosfera todos os anos, contribuindo para o aquecimento global e as mudanças do clima, cuja consequência, no RS, é a própria seca.

Por isso, na lista de seis medidas a serem adotadas para enfrentar o problema elaborada pelos membros da Coalisão pelo Pampa, o tópico nº 1 é a implementação urgente do Programa de Regularização Ambiental (PRA) em todo o estado, com início imediato de projetos de recuperação das Áreas de Preservação Permanente (APPs). Mesmo 10 anos depois da promulgação da Lei de Proteção à Vegetação Nativa (Lei 12.651/2012), o PRA não avança no RS e nenhum hectare de campo ou floresta foi recuperado. O assunto dá muito pano para a manga e envolve uma intrincada disputa jurídica.

Dados de 2021 mostram que a agricultura é o tipo de uso do solo predominante no Pampa, ocupando 38,3% do seu território. A soja tem sido o principal cultivo a ocupar as áreas originalmente constituídas de vegetação nativa campestre. Entre 2000 e 2015, a área plantada com soja no Pampa cresceu 188,5%. As florestas nativas cobrem 13,2% do bioma e a silvicultura 2,4%, sobretudo com eucalipto e pinus, enquanto que os corpos d’água representam 9,6%.

Em 2012, a Lei de Proteção da Vegetação Nativa estabeleceu que 20% de cada propriedade rural deve ser preservada como “reserva legal”. Três anos depois, em 2015, a lei foi regulamentada no RS por decreto do governo estadual, à época comandado por José Ivo Sartori (MDB). Ali começou uma disputa judicial ainda não resolvida e cujo impasse, segundo a secretária estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, tem trancado as principais ações de preservação e conservação do Pampa.

Entidades ambientalistas ingressaram na Justiça contra trechos do decreto e, em 2016, obtiveram liminar favorável. A principal disputa envolve a permissão que o decreto estadual havia dado para que os proprietários de imóveis rurais declarassem como “área rural consolidada por supressão de vegetação nativa” aquelas áreas usadas para atividades pastoris (criação de gado, por exemplo). Tal permissão faria com que muitas propriedades rurais ficassem desobrigadas de cumprir a exigência de 20% de reserva legal.

Na liminar, a juíza acatou os argumentos dos ambientalistas de que a atividade pastoril não descaracteriza o Pampa e, portanto, não pode ser declarada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) como área rural consolidada, ficando então passível de constituir os 20% de reserva legal. Sete anos depois da liminar, ambientalistas acusam a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) de não exigir o percentual mínimo de reserva legal estabelecido na lei e também de não implementar o Programa de Recuperação Ambiental (PRA) nos imóveis rurais sem os 20% de reserva legal.

Em sua defesa, a Sema argumenta que não pode agir enquanto a Justiça não tomar uma decisão definitiva. Ao lembrar a recente aprovação, em 2020, do novo Código Estadual do Meio Ambiente, que incorporou conceitos do decreto de 2015, o diretor da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), Diego Melo Pereira, em entrevista concedida ao Sul21 há dois anos, ponderou que a liminar pode, inclusive, ter perdido seu objeto.

“Essa ação (na Justiça) cria efeitos sobre um decreto. E agora temos a lei estadual que absorveu esses conceitos. Então hoje, com a lei de 2020 publicada, ela torna sem efeito aquilo que determinou a ação civil pública, o efeito dessa ação perde objeto. Mas isso vai ter que ser discutido, há que se ter uma determinação judicial pra isso. Só que a liminar está em vigor”, afirma o diretor de Biodiversidade.

Professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador-geral do InGá, Paulo Brack diz que o RS é um dos últimos estados do País a implementar as medidas previstas em lei. Para ele, falta interesse político em implementar a legislação.

“O agronegócio no Rio Grande do Sul é muito forte e em nível nacional também. É claro que esse silenciamento sobre a Reserva Legal, o Programa de Regularização Ambiental e de qualquer política em prol do Pampa, ocorre por conta dos setores econômicos imediatistas que não querem abrir mão dos seus interesses. E o governo do Estado responde a essa lógica, por isso não vem sendo implementado, infelizmente”, lamenta.

Na mesma entrevista de 2021, o diretor de Biodiversidade da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) explicou que a legislação federal estabelece que os estados devem implementar seus programa de recuperação ambiental com as regras que compõem as peculiaridades territoriais. Como o bioma Pampa no Brasil só existe no RS, ele acredita que deveria ter legislação própria. De qualquer forma, a lei federal estipulou um prazo, que já se encerrou.

“Só que ela diz que os estados que não implementaram passam a seguir as determinações da lei federal. Isso significa dizer que nós temos, sim, um Programa de Regularização Ambiental implementado. E qual é? O previsto na legislação federal. Todas as regras e disposições estão claras. Só que é importante nós termos as nossas peculiaridades territoriais”, pondera.

Pereira explica que, desde 2017, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente tem um grupo de trabalho para elaborar a minuta do programa de regularização ambiental conforme as características do Pampa, um material que, ele afirma, está praticamente pronto. O nó da situação, segundo o diretor, é a ação que corre na Justiça questionando trechos do decreto estadual de 2015.

“Temos um grupo técnico que desenvolveu a minuta do programa de regularização ambiental. E por que a gente não pode colocar ele na rua? A resposta sempre é a mesma, da análise do PRA (Programa de Regularização Ambiental). Se as questões judicias mudarem as suas determinações, a regra muda. Então como vamos colocar um programa de regularização ambiental na rua pra ser implementado, sem saber a consequência jurídica do processo? É criar regras, difundir regras, fomentar regras que não vão ser implementadas. Então temos isso consolidado, praticamente tudo pronto, são realmente as amarras judicias que estão aí envolvidas que nos impedem”, afirmou na ocasião.

Do ponto de vista do governo estadual, o imbróglio judicial está travando não apenas a implementação do Programa de Regularização Ambiental (PRA), como também a exigência de 20% de reserva legal nas propriedades rurais.

Dois anos depois, agora em 2023, Marjorie diz que ambos os temas fazem parte do Cadastro Ambiental Rural (CAR), cuja análise também está em discussão. “O PRA é diretamente ligado a validação do CAR. Então enquanto a gente não avança no CAR, não conseguimos avançar no PRA, embora a gente já tenha desenhado internamente inclusive o fluxo do PRA. É uma busca que nós temos de conseguir construir um regramento que não seja novamente judicializado, para que a gente possa dar fluidez na pauta do Pampa, que é tão importante para nós através dos instrumentos de uso sustentável que estamos desenhando”, explica.

Ao fim e ao cabo, na prática, todos os atores envolvidos no debate da estiagem reconhecem a necessidade de cuidar da água e do quanto a preservação do Pampa é vital no futuro do Rio Grande do Sul.

“Os prejuízos são enormes para as comunidades, para os municípios e para o Estado, para o PIB, para a atividade econômica e para a vida dos gaúchos”, lamenta o deputado estadual Zé Nunes.

Os consensos para destravar as disputas jurídicas que amarram a preservação do bioma típico do RS é que ainda não existem e, enquanto isso, se aguarda a nova seca que fatalmente virá.


Matéria do Sul21.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

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