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Discurso, transparência e mediocridade: Lacan e o zelador mentiroso
Discurso, transparência e mediocridade: Lacan e o zelador mentiroso
Por SANDRA BITENCOURT GENRO*
Aa pessoas sofrem. A sua existência lhes interroga permanentemente. É preciso dar rumo aos desejos e solucionar paradoxos. Mas há sempre algo de enigmático nas relações humanas e na linguagem da qual essas relações se valem. É uma característica especificamente humana o habitar uma linguagem polissêmica, ou seja, da qual podem emanar vários sentidos. Não há possibilidade de dialogar com total transparência, sem qualquer filtro ou censura, em forma e conteúdo. É impraticável não omitir rigorosamente nada. Qualquer relação humana submetida a essa forma de falar simplesmente explodiria, não apenas com relação ao outro, mas com relação a si próprio, às contradições de cada um e aos desejos inconfessáveis, incongruentes que cada um carrega. Imaginem um regime social em que o inconsciente violento é acessado permanentemente. Em que se pode manifestar tudo, sem limites. Talvez nenhuma outra área tenha sido tão afetada pelas mudanças tecnológicas e comportamentais como a comunicação. Essa sensação de caos e loucura nos leva a nos aproximar da psicanálise, campo que pratica um tipo de escuta impossível em qualquer outro ambiente.
A psicanálise, segundo Lacan, é uma experiência de fala e operação no registro simbólico, que também inclui o silêncio. Ela nos socorre para tentar compreender os desejos, as condutas, os sentidos e posicionamentos que tanta estranheza causam. Não faltam exemplos de coisas bizarras que espantam e que hoje compõe o repertório do debate público. E que arrecadam cliques ou, pior dos horrores, juntam votos. Lacan distinguiu três registros da realidade humana e da prática analítica: o imaginário, o simbólico e o real. A linguagem pertence à ordem simbólica e é a que permite as trocas humanas, como o pacto, a traição, a política, a vida familiar, a academia, o trabalho remunerado etc. Para o psicanalista francês do início do século passado, a verdade é o significado mestre do seu ensino, mas ela não tem nada a ver com a exatidão. A verdade não é dizer o que é, não é a adequação da palavra e da coisa, a verdade depende do discurso, nos diz Lacan.
E, portanto, estamos nesta quadra da história numa experiência coletiva de manipulação da verdade, com discursos medonhos, comportamentos bárbaros e violência permanente. Tudo se admite, adquire sentidos que alimentam os apetites pornográficos do capital e dos grupos sociais sem honra e sem vergonha da ostentação. Mesmo as guerras, as chacinas de crianças, o extermínio de povos e etnias adquirem justificativa. Há um discurso e há verdades fabricadas para isso. Dane-se a exatidão dos fatos e o descarte de valores básicos.
Como também apontou Lacan, é muito curioso que não se saiba que a palavra serve igualmente para a verdade e para a mentira. E é muito possível que sirvam para a mentira com mais frequência do que para a verdade. Mas as mentiras vão sendo moldadas justamente com a falta de exatidão.
Vamos a alguns exemplos recentes aqui na nossa província. Que não padece de uma guerra, mas nem por isso não conte escombros e não colecione manipulações.
No primeiro dia do ano de 2025, Porto Alegre viu tomar posse um dos principais responsáveis pela extensão da destruição que os fenômenos climáticos causaram na cidade. Essa posse se deu sem luz e sob alagamento. Quase uma ironia simbólica para a data, não fosse o fato que com qualquer chuva, em qualquer dia, as ruas enchem e falta luz. Uma nova realidade, que conforme fomos catequisados, não devemos cobrar responsáveis, nem olhar para trás. O valente prefeito, zelador servil das corporações donas da cidade, fez o que? Discursou em defesa do direito a atacar a democracia, coisa que chamou de liberdade. Qual foi a manchete do outrora principal jornal da região? Digo outrora por que agora dá preferência a pequenos textos opinativos e de autoajuda, com um espaço reduzido para notícias e jornalismo. Bem, qual a manchete? “É um prefeito mais casca dura”. A defesa da ditadura ou do direito a defendê-la foi notícia nacional. Francamente a tal controvérsia até me parece manobra retórica para ocultar de fato o que deveria causar choque: a cidade segue alagando, às escuras, e há uma deliberada ação para erodir as capacidades estatais e assim vender (ou doar) o exemplar sistema público de água e esgotos para a iniciativa privada. O jornal reagiu com editorial contundente, dois dias depois. Clamando respostas mais rápidas da administração, disse que a posse foi no mínimo constrangedora para o novo mandato e que não é mais admissível a velha enxurrada de desculpas. Uma semana depois, na versão digital, por ocasião do Globo de Ouro conquistado pela atriz Fernanda Torres com o filme Ainda estou aqui, novo editorial em que sem mencionar a fala do prefeito diz “o reconhecimento é oportuno num momento em que muitos brasileiros, por ignorância ou radicalismo político, continuam flertando com o autoritarismo sob a falsa premissa de que “naquela época era melhor. Não era”. Já é um começo. Devemos saudar quando a palavra busca a verdade e se baseia em maior exatidão. Confesso que muitas vezes padeço da tentação de eliminar filtros e dizer exatamente o que penso de um prefeito que pratica o negacionismo sanitário e climático. Mas compreendo que é recomendável frear impulsos, suspender o bizarro, evitar palavrões e democraticamente dizer apenas que é criminoso o discurso antidemocrático e inaceitável o abandono da cidade.
*Sandra Bitencourt Genro é Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.
Foto de capa: IA
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