Opinião
Dever ser e corte constitucional
Dever ser e corte constitucional
De PAULO TORELLY*
A Constituição do Brasil tem força normativa e regula as relações econômicas, políticas e sociais? O Estado de Direito é ficção ou realidade? O Brasil precisa de uma Corte Constitucional? Perguntas que faço após a ampla maioria da sociedade civil anunciar, no último dia 11 de agosto, a partir da Faculdade de Direito da USP, um necessário manifesto em defesa do Estado de Direito e há alguns dias de o povo brasileiro escolher um novo governo para o Brasil.
Dentre tantas inquietações ainda agrego outras perguntas nestes tempos em que no plano do ser tudo parece sempre poder piorar. A era do espetáculo superou definitivamente a realidade dos fatos? A humanidade – e nela o povo brasileiro – é capaz de aprender com o passado? Indignação seletiva com a corrupção é sentimento republicano? Governo e bem comum não devem andar juntos?
Para entrar no tema posto no título, e que remete para muitas reflexões diante da distinção kantiana entre ser (fato) e dever ser (norma), é necessário dar alguns passos atrás. A ideia de direito pressupõe decisões com base em critérios jurídicos que antecedem fatos e condutas sob julgamento, marca da metodologia jurídica lastreada na centralidade da subsunção na aplicação da lei e do direito. Mas a dicotomia entre princípios e valores universais (dever ser) e realidades e interesses particulares (ser) sempre foi alvo da teoria crítica, pois a realidade é sabiamente mais complexa do que qualquer fórmula ou modelo. O problema toma vulto quando o sentimento colonial e o arrivismo de quem quer se dar bem ou no mínimo “ficar bem na foto” encontram terreno fértil para “operadores do direito” – descrição adequada pra quem faz o que quer com o direito – que não mais se importam em “jogar a criança fora junto com a água suja.”
A literatura jurídica tudo permite? Afinal, será que jurista, no Brasil, é apenas quem vive de juros, vendendo pareceres pra “livrar a cara” de racistas e grileiros de terras indígenas? Lembro da prosa de Fernando Pessoa e de um clássico da publicística, Georg Jellinek. Foi em sua prosa que o poeta disse: “O homem supõe que é um animal racional. Pode ser que o seja e pode ser que não o seja; a psicologia científica contesta a importância e a preponderância da razão na vida individual.” Diante de instintos, hábitos, sentimentos e emoções que nos guiam, Fernando Pessoa observa que para a psicologia “a razão não serve senão de interpretar para a vontade esses impulsos sub-racionais,” mas “a própria circunstância de o homem se considerar um ente essencialmente racional faz com que, ainda que de um modo indireto, a razão assuma, na vida dele, uma importância verdadeira.” Pelo que conclui: “um dos empregos abstratos da razão é o de formar preceitos, máximas, ou normas intelectuais, para a condução, geral ou particular, da vida.” (PESSOA, 1995, p. 648). Assim, tendo presente que o texto legal e a norma jurídica não podem abstrair a realidade, o que Jellinek já apontou em 1900 ao referir, na primeira edição de sua Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre), que “el Estado, sin duda alguna, está llamado a mantener una relación con los interesses solidarios humanos” (JELLINEK, 2005, Cap. 8, n. 6, p. 345), a tarefa de afastar o arbítrio e a irracionalidade em defesa da solidariedade social (Constituição, art. 3º, inciso I) não pode ser delegada para declarados desafetos da obra de Ulysses Guimarães e seus pares.
No ponto extremo dos limites entre os planos do ser e do dever ser encontramos a tensão entre as razões de Estado e a autodeterminação moral de cada pessoa em face do dever político de obedecer às leis, ainda que injustas. Tema presente na tragédia de Sócrates (470-399 a.C.), quando o filósofo grego, mesmo podendo fugir diante de falsas acusações, aceitou voluntariamente a pena de morte, com o que na prática denunciou a injustiça dos juízes que o condenaram sem fundamento. A questão, portanto, é se em um Estado Democrático de Direito, com supostas garantias constitucionais, se faz necessária a desobediência civil e a resistência contra o arbítrio e a violência oficiais e até mesmo se “razões de Estado” podem ter algum protagonismo ou relevância. A resposta deveria ser negativa, mas a desobediência civil surgiu justamente para assegurar a efetividade do Estado de Direito.
No lamentável – e hoje comprovadamente ilegal e arbitrário – episódio da prisão do ex-presidente Lula o Brasil testemunhou em tempo real um presidente de Tribunal Regional Federal invocar a função administrativa que ocupava para dar ordens para a Polícia Federal descumprir uma decisão judicial que lhe desagradava. Mas muito mais ocorreu nos insondáveis escaninhos da hermenêutica à brasileira antes de o STF – alinhando-se tardiamente com a ONU – admitir o óbvio e anular um processo conduzido por um manifesto adversário político, que apenas formalmente se apresentava como juiz. A derradeira questão é: como assegurar a força normativa da Constituição quando o Poder Judiciário, primeira e maior instituição de garantia em um Estado de Direito, ordinariamente desconhece a distinção entre os planos do ser e do dever ser?
A escola da exegese, ainda sob o calor da Revolução Francesa, pretendeu reduzir o direito aos limites da gramática e logo revelou os seus próprios limites, mas a interpretação gramatical ainda é o necessário ponto de partida para a interpretação dos textos legais no esforço de identificar as normas que integram o ordenamento jurídico. Uma realidade que aponta para a urgência de um debate consistente e vigoroso na sociedade sobre a necessidade de uma Corte Constitucional no Brasil. Um Tribunal da Lei, que apenas em abstrato julgue a validade das leis editadas pelo legislador democrático (Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores). Este é o caminho que a Europa continental adotou após derrotar o fascismo no pós-guerra, com o que preservou a autoridade e a legitimidade dos parlamentos para editar direito novo mediante a primeira e maior fonte do direito nas democracias representativas, ou seja, a edição de atos legislativos primários: A LEI!
Exatamente neste sentido andou o Poder Constituinte alemão, pois cumpriu a tarefa de institucionalmente suplantar o nazismo com um texto que desde 1949 rege democraticamente a vida política, social e cultural na Alemanha com uma Corte Constitucional que não integra o Poder Judiciário e foi didático na redação da Lei Fundamental:
Art. 20 (Princípios constitucionais – Direito de resistência)
(1) A República Federal da Alemanha é um Estado Federal, democrático e social.
(2) Todo o poder estatal dimana do povo. É exercido pelo povo por meio de eleições e votações e
através de órgãos especiais dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
(3) O Poder Legislativo está vinculado à ordem constitucional; os Poderes Executivo e
Judiciário obedecem à lei e ao direito.
(4) Não havendo outra alternativa, todos os alemães têm o direito de resistência contra quem tentar
subverter essa ordem.
(Constituição da República Federal da Alemanha) – destacamos
A instituição de uma Corte Constitucional no Brasil pode ser concretizada por Emenda Constitucional com um amplo debate com a sociedade e não impossibilita a continuidade da evolução – e a própria inovação – do direito pela jurisprudência, mas constitui medida urgente diante da inefetividade e mesmo do aberto descumprimento do texto constitucional e de suas normas. Trata-se da atualidade da lição de Mauro Cappelletti em seu Juízes legisladores?, pois mesmo que “legislador e juiz sejam, conscientemente, criadores do direito, fazendo-se assim reconhecer abertamente pelos cidadãos, o modo de formação legislativa do direito é (e deve ser) reconhecidamente como fundamentalmente diverso daquele da formação jurisdicional” (CAPPELLETTI, 1993, p. 130). O juiz deve conhecer e aplicar o ordenamento jurídico na solução de litígios em um ato de cognição do direito, pois em uma democracia apenas ao legislador é dada a manifesta e explícita edição de atos de vontade na reforma e na instituição de direito novo, enquanto que cabe ao administrador público democraticamente eleito governar e definir políticas públicas.
Passados mais de 30 anos da sua promulgação, é urgente tirar do papel e colocar na plenitude da vida o texto constitucional democrático e social de 1988!
*Advogado, Doutor pela Faculdade de Direito da USP e associado do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
Imagem em Pixabay.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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