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Opinião

Desenrola o fim do crédito rotativo dos cartões de crédito

Desenrola o fim do crédito rotativo dos cartões de crédito

Artigo por RED
14/06/2023 05:30 • Atualizado em 16/06/2023 12:17
Desenrola o fim do crédito rotativo dos cartões de crédito

De FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

O governo anunciou, no dia 05/06/23, o Desenrola, programa de renegociação de dívidas de pessoas físicas. Serão feitos leilões de compra dos créditos dos credores inscritos para participar do programa.

Serão adquiridas as carteiras de crédito com maior desconto em relação ao débito, até o limite do programa. Os créditos incorporados pelo programa terão garantia do Fundo de Garantias de Operações (FGO), com quase R$ 10 bilhões para cobrir os créditos negociados, no caso de pessoas com renda até dois mínimos e para dívidas até R$ 5 mil.

O plano permitirá o refinanciamento de débitos de até R$ 5 mil e será voltado a pessoas com renda até dois salários mínimos, na faixa com garantia da União. Haverá ainda uma segunda faixa, sem garantia, na qual o governo oferecerá às instituições financeiras, em troca de descontos nas dívidas, um incentivo regulatório para aumentarem a oferta de crédito. A expectativa é até 70 milhões de devedores terem acesso ao programa.

Os credores participantes do programa terão de “abonar”, automaticamente, o débito de pessoas devedoras até R$ 100. Tem 1,5 milhão de brasileiros nessa situação.

Como, segundo a PEIC-CNC, cerca de 88% dos endividados tinham dívidas em cartões de crédito, seja os com renda acima de 10 salários-mínimos (seguidos de 20% endividados para aquisição de veículo), seja os abaixo (seguidos por 19,4% de dívidas em carnês de compras em lojas comerciais), parece-me ser necessário, principalmente, desenrolar uma mudança radical no modelo de cartões de crédito no Brasil. Sobre isso, o Banco Central compõe uma grupo de trabalho com o Ministério da Fazenda e a FEBRABAN.

O grupo de trabalho discute como eliminar subsídios cruzados e oferecer mais transparência para o consumidor usuário desse produto culpado pela elevadíssima taxa de juro média ponderada do crédito com recursos livres para Pessoas Físicas. Em fevereiro de 2021, antes da retomada da elevação contínua da Selic de 2% aa até 13,75% aa, a taxa média de juros da modalidade crédito rotativo de cartões de crédito estava em 327% aa. Em abril de 2023, atingiu 448% aa!

A taxa de juro média ponderada do total concedido com recursos livres para Pessoas Físicas era 40,1% aa em fevereiro de 2021 e elevou-se para 59,7% em abril de 2023. A proporção dessa em relação àquela taxa de juro do rotativo ficou em torno de 13% no período, sugerindo uma correlação causal, ou seja, os juros do rotativo puxam a média.

Sua participação no saldo total é baixa (4% ou R$ 72,7 bilhões em R$ 1,82 trilhão), justamente por ser tipicamente usado em emergências de curto prazo, pago logo quando o devedor obtém condições financeiras. Porém, em concessões mensais, é mais elevada (13% do total ou R$ 29,7 bilhões em R$ 225,9 bilhões), acompanhando o total dos cartões de crédito: de 27% em estoque para 84% em fluxo mensal de concessões.

A explicação para a taxa de juro tão elevada é a correlação causal entre a inadimplência no crédito rotativo dos cartões de crédito, disparadamente, a maior entre todas as modalidades de crédito para Pessoas Físicas. Era 25,4% em abril de 2021 e foi para 51,7% do total em abril de 2023: um em cada dois devedores não paga esse crédito – e o adimplente cobre a perda provocada pelo inadimplente. Daí o juro assombroso

Para comparar com a média total, a inadimplência acompanhou: de 4% no início do período citado para 6,2% no fim. Demonstra a necessidade de “colocar o dedo na ferida” e alterar – se possível, eliminar – a modalidade do crédito rotativo em cartões de crédito.

No Boxe 3 do Relatório de Economia Bancária 2022, lançado no início de junho de 2023, o Banco Central traça um perfil de utilização de cartões de crédito no Brasil. Investiga o comportamento das Pessoas Físicas usuárias de cartão de crédito em função do número e do tipo de instituições emissoras e de instituições de pagamento com as quais os usuários dos cartões de crédito mantêm relacionamento comercial.

A motivação é avaliar se usuários utilizadores de um número maior de cartões de crédito com diferentes emissores, ou possuidores de cartões com determinado grupo de emissores, possuem maior uso de linhas de crédito onerosas. Com a entrada de novos players no segmento de cartões pós-pago, e o consequente aumento da competição, o número de usuários desse instrumento de pagamento cresceu muito nos últimos anos.

Em junho de 2022, a quantidade de cartões de crédito (190,8 milhões) representava quase o dobro da população economicamente ativa no Brasil (107,4 milhões), segundo dados de 2021 do IBGE e estatísticas do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). Estava também acima do número de adultos (75% da população total): 161 milhões.

Para uma boa avaliação sociológica, são necessários alguns dados econômicos. Em 2021, na população economicamente ativa (104 milhões), somente 89,5 milhões estavam ocupados, ou seja, 14,6 milhões ficaram desocupados no fim de um ano quando a Autoridade Monetária retomou a elevação da taxa de juro básica em março. Empregados formalmente eram 54,6 milhões, considerando 32,6 milhões com carteira de trabalho assinada no setor privado e 3,3 milhões no setor público, 7,9 milhões de funcionários públicos (estatutários e militares) e o restante sem declaração.

Eram 24 milhões trabalhadores por conta própria, 3,9 milhões empregadores, 1,9 milhão de trabalhadores auxiliares em famílias, 5,1 milhões trabalhadores domésticos, entre eles 3,8 sem carteira de trabalho assinada. Mas não eram só esses os potenciais devedores em cartões de crédito: existiam 32,5 milhões de aposentados pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sendo 70% urbanos. O valor médio recebido por esses era R$ 1.901,09 e pelos rurais R$ 1.149,42, mesmo com o piso previdenciário fixado em um salário-mínimo de R$ 1.212,00. Cerca de 70% recebiam até o salário-mínimo e 97% até quatro salários-mínimos, sendo os demais até seis.

Essa grande fração da população brasileira é pobre com valor médio urbano de US$ 380 mensais. Segundo o SIS-IBGE, o rendimento médio domiciliar per capita de 2021 foi de R$ 1.353 para o total da população brasileira, sendo o menor valor desde o início da série em 2012 (em valores constantes de 2021). A maioria dos brasileiros é gente pobre, ainda mais empobrecida pelo desgoverno anterior da aliança neofascismo-neoliberalismo…

O maior acesso a cartões de crédito, embora positivo do ponto de vista da inclusão financeira, tem o potencial de aumentar o nível de endividamento das famílias. Quando o cliente deixa de pagar o valor total da fatura do cartão, o valor não pago se torna uma modalidade de empréstimo, chamada rotativo do cartão de crédito. Como visto, essa é uma das operações de crédito com maiores taxas de inadimplência e custo no mercado.

A modalidade “à vista ou parcelado lojista” possui como característica a utilização do cartão de crédito como meio de pagamento. Já as outras modalidades, por poder ou não incidir juros no saldo devedor – se refere ao valor da compra, seja ela parcelada ou não, ainda não pago pelo cliente –, têm característica de crédito concedido ao cliente.

Este é o problema do original modelo de cartões de crédito adotado na economia brasileira. É o único lugar onde é possível um meio de pagamento a prazo com a atração de “até 40 dias de graça” como o prazo máximo até o pagamento da próxima fatura.

Por exemplo, o custo do dinheiro diário, equivalente a uma taxa mensal de 1% a.m. ou 12,68% a.a., é 0,0332%. Caso fosse cobrada, faria os consumidores evitarem o impulso emocional consumista e não fazerem uso dos cartões de crédito com a sedução dos lojistas vendedores “é o mesmo valor à vista ou em 10 vezes sem juros”. Ora, não existe “almoço de graça”, “nem louco rasga dinheiro”, quanto mais os credores…

Existe um conluio entre bancos e redes comerciais compradoras a prazo… e não vendedoras à vista! Nesse acordo, os bancos adiantam com o desconto de uma comissão os títulos de dívida dos fornecedores e ganham recebíveis para a extorsão dos incautos consumidores com descontrole de suas finanças pessoais e entrada no crédito rotativo.

O Banco Central identificou 84,7 milhões de clientes com saldo devedor em junho de 2022. Foi um crescimento de 30,9% em relação a 64,7 milhões em junho de 2019.

Quando os usuários aumentam o número de vínculos, isto é, relacionamentos com instituições financeiras diferentes, observa-se o crescimento dos seus limites e saldos, sobretudo até três vínculos. Logo, os usuários ao utilizarem cartões de mais de uma instituição (bancos digitais e fintechs) aumentam sua capacidade de gastos com os limites adicionais, elevando, consequentemente, o saldo devedor consolidado.

O acesso a um maior número de cartões de emissores diferentes tende a aumentar o saldo em modalidades sujeitas à cobrança de juros, entre os quais se destaca o crédito rotativo, cujas taxas de juros são elevadas. O endividamento oneroso no cartão é muito maior no segmento de bancos privados pequenos e médios e financeiras. Fuja deles!

Quanto aos “bancões”, em 2021, o Itaú concedia 34% do crédito às Pessoas Físicas via cartões de crédito e o Bradesco 19%. Por esse meio, o Itaú obtinha 35% da sua Receita por Prestação de Serviços, o Bradesco 37%, o Santander 29%, o Banco do Brasil 8% e a Caixa somente 4%. Já fizeram Provisões para Créditos de Liquidação Duvidosa, o que vier da venda da carteira de inadimplentes pelo Desenrola será (mais) lucro!


*Doutor e Mestre em Ciências Econômicas. Professor na Universidade Estadual de Campinas e ex vice-presidente da Caixa Econômica Federal.

Imagem em Pixabay.

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