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Opinião

De farrapos e gaúchos: pode se inventar uma cultura?

De farrapos e gaúchos: pode se inventar uma cultura?

Artigo por RED
20/09/2022 08:01 • Atualizado em 22/09/2022 11:43
De farrapos e gaúchos: pode se inventar uma cultura?

De ONDINA FACHEL LEAL*

A cada ano, no mês de setembro – período dedicado às comemorações da Guerra Farroupilha − através de versões populares, folclóricas, ou mais ou menos acadêmicas, renova-se uma disputa de versões do evento de lutas que durou dez anos e que é tomado como emblemático da cultura gaúcha. Toda a pátria (aqui no sentido de berço e territorialidade que ancora uma identidade), precisa de seus heróis que se revestem de valores que acreditamos ser únicos e assim vamos nos confirmando como um nós. Nós, os gaúchos. Nós, em contraste com o resto (ou o todo) da nação. Um nós constituído de diferentes segmentos sociais, diversidades étnicas e outras tantas e múltiplas tradições culturais, que elege o ser gaúcho como denominador comum para nossa celebração identitária. Revisitamos, ano após ano, o consenso daquilo que nos faz nós – nossa dita gauchidade − e renovamos essas polêmicas a respeito do que seria falso ou verdadeiro em nossa cultura.

Reedita-se anualmente (eu diria mesmo, ritualisticamente) uma disputa de opiniões. De um lado, defensores de um suposto e genuíno tradicionalismo, “cetegista”, conservador; de outro, os críticos desse tradicionalismo institucionalizado. Esse embate, como não poderia deixar de ser, toma contornos políticos. O lado crítico acusa a tudo aquilo que pode ser identificado como tradicionalismo gaúcho − da dinâmica dos CTGs, da vestimenta, a um gênero de historiografia, à música e à literatura como “falsos”. Essa discussão assume tamanho ruído que, passo seguinte, fala-se no “mito do gaúcho”, usando o termo mito (para desespero dos antropólogos) como o sinônimo de falso. Nesse processo discursivo de crítica ao tradicionalismo (que a exiguidade do presente texto não me permite aprofundar), o gaúcho − o sujeito social, o homem de carne e osso, vaqueiro pampeano, o peão campeiro da pecuária extensiva − também parece ter negada sua existência como um tipo específico de trabalhador rural. Mais grave, tudo aquilo que é celebrado como cultura gaúcha e/ou identidade gaúcha entra nesse mesmo saco, uma ocasional lata de lixo da história e toma o rotulo de fake, para usar o termo em voga. É quando, já dizia Ruben Oliven em seus pioneiros estudos sobre o tradicionalismo gaúcho, se joga fora o bebê junto com a água do banho.

Gostaria de, muito resumidamente, trazer o conceito de cultura e lembrar que não existe cultura falsa ou verdadeira. Da mesma forma, não existe identidade cultural falsa ou verdadeira. Existe sim apropriações e usos políticos de uma e outra noção. Mas isso é outra discussão. O que não se pode é confundir uma dada cultura com usos que um ou um grupo de agentes dela faça. Em geral, a sequestram, patenteando a versão que dela fazem como a única e verdadeira, desautorizando todas as demais versões ou realidades culturais. Pensam a cultura como objeto de museu, um corpo morto a ser conservado, mumificado e então dela se apropriam, não em sua totalidade, mas de alguns elementos diacríticos (por exemplo, hierarquia, masculinidade, violência) que possam ser ressemantizados a partir de outro quadro ordenador de sentidos e com uma conjuntura política específica.

Na discussão teórica sobre a noção de cultura, a literatura antropológica tem indicado recorrentemente uma dinâmica de dois níveis: De um lado, um estruturante sistema de crenças, repertório coletivo de princípios e valores, representados por normatividades que conformam modos de pensar e de agir do mundo social. De outro lado, temos atores sociais concretos e suas práticas cotidianas, espaço de atualização e de transformação das prescrições culturais, da inventividade das muitas estratégias. Espaço este, também subordinado aos imperativos culturais. É o pólo do indivíduo, suas redes e do mundo cotidiano ao qual se submete, mas potencialmente faz escolhas ou cria, ainda que dentro de um repertório sempre estruturalmente dado. É aqui, neste polo, o do ator social capaz de construir e negociar significados, que se situa a noção de identidade cultural.

Identidade cultural, como categoria analítica, opera uma substantivação com o termo identidade e torna cultura um adjetivo. Ainda assim, o pano de fundo permanece a noção clássica de cultura como sistema de significados compartilhados que se institucionalizam na ação. Mas neste caso, recorrendo à noção de identidade cultural, temos atores sociais reorganizando suas identidades; e temos significados e estratégias políticas que são negociados e devem (ou deveriam) ser o foco de nossas análises empíricas. Identidade cultural é uma “produção” que se constitui sempre dentro e não fora de um sistema de representações. Podemos tomar esse sistema de representações de duas formas. Primeiro, como cultura compartilhada, como um quadro de referências e de significados. E, segundo, reconhecendo as diversidades conformadoras de identidades possíveis, combinando aquilo que de fato somos com aquilo que podemos ser. Teremos então uma identidade em constante transformação, mobilizada por atores políticos, grosso modo, de dois tipos, de conservação e de transformação social.]

Podemos escolher o nosso lado, mas não podemos conceder que roubem nossa identidade, pois estaríamos confundindo uma versão do que é ser gaúcho com a própria cultura e endossando uma noção de cultura estanque, em conserva.

*Antropóloga, autora de Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no pampa. Tomo Editorial, 2020.

Foto em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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