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COMOVENTES RECORDAÇÕES DO BRASIL PROFUNDO
COMOVENTES RECORDAÇÕES DO BRASIL PROFUNDO
Por NUBIA SILVEIRA*
Estou em crise de abstinência. Não de alimentos, doces, drogas lícitas ou iIícitas. Sinto falta das histórias interessantíssimas, contadas pela geóloga gaúcha Zara Gerhardt. Acabo de ler os dois livros que ela publicou pela Bestiário – Causos do Brasil Profundo – A Saga de Uma Geóloga e Mais Causos do Brasil Profundo – e queria mais. No silêncio da noite e da madrugada – momentos em que me dedico à leitura – venho intercalando as informações de um novo livro com as lembranças dos causos de Zara, a terceira mulher a se formar em Geologia no Rio Grande do Sul e a primeira, que foi trabalhar no interior do Brasil. Em 30 dos seus 45 anos de trabalho fez parte de equipes, em que era a única mulher.
Zara é uma pessoa educada, gentil, de fala suave, tranquila, segura. Nos conhecemos virtualmente como integrantes da Oficina de Escrita, ministrada pelo professor Luís Augusto Fischer. Ela e outros(as) colegas frequentam a Oficina há vários/alguns anos. No grupo há quem, como Zara, já tenha livros publicados: Ondina Fachel Leal, Miguel da Costa Franco, Maria Ângela Machado, Nelson Ribas, Ana Marson, Alfredo Fedrizzi e Jussara Nodari Lucena.
No primeiro livro, publicado em 2019, a geóloga informa que, por três décadas, trabalhou “no Brasil profundo: sertão de Goiás, caatinga do nordeste, Bahia e Amazônia”. Teve uma vida nômade, da qual guarda muitas lembranças. “As coisas que acontecem no interior deste país desafiam a imaginação do mais criativo cidadão urbano.” Os inúmeros causos que ela selecionou para, gentilmente, dividir conosco, leitores e leitoras, que nunca enfrentamos o que ela enfrentou, confirmam que a realidade é muito maior do que a ficção.
Para facilitar a vida de quem a lê, e que não tem qualquer intimidade com a pesquisa geológica, Zara organizou, em ambos os livros, um pequeno glossário. As perguntas que faço agora, não valem para geólogos(as). Apenas para nós, simples mortais. Você sabe, por exemplo, o que significa bamburrar? Não? Nem eu. Se não fosse a Zara traduzir o verbo, ficaria sem saber. É “encontrar por acaso ouro, diamantes ou outras pedras preciosas, e enriquecer”. Aqui vai o segundo teste: o que é rocha máfica? Você acha que esta rocha tem algo a ver com os mafiosos? Longe disto. É “uma rocha de cor verde escura, ou preta, formada por minerais ferro-magnesianos”.
Os causos são surpreendentes, emocionantes, assustadores, tristes, comovedores, divertidos e esclarecedores de uma cultura desconhecida pelo resto do Brasil. Na época da ditadura, quando o governo proibiu bebida alcoólica e mulheres em Serra Pelada, Zara fez uma longa viagem, por vários estados, acompanhando um consultor estrangeiro. Um dos focos da viagem era justamente pesquisar “ouro em subsuperfície”, em Serra Pelada, e tentar compreender “a geometria deste depósito”. A geóloga foi autorizada a entrar naquela mina a céu aberto, tomada por milhares de garimpeiros. Para a segurança dela, foi montada uma megaoperação. Mas isso não impediu que aquele formigueiro de homens gritasse ao ver uma mulher descer do helicóptero que os levara até lá: “Liberou!”. Eles achavam que a entrada de mulheres no garimpo havia sido liberada. Zara conta:
“ – Senti o arrepio quente do pavor! Imagine um coro de 40.000 garimpeiros, gritando:
– Li-be-rou! Li-be-rou!
O círculo de seguranças se fechou em torno de mim.
O coro cessou e foi substituído por um silêncio total, só quebrado pelos chamados das aves: alguém explicou para o pessoal que eu era geóloga da empresa – o que era facilmente identificável de perto, haja vista o equipamento que eu carregava: lupa pendurada no pescoço e cinturão com martelo, bússola e caderneta de campo. Senti que todos os olhares convergiam sobre mim, o que me deu uma enorme sensação de desconforto.”
A única mulher a furar a proibição de entrar em Serra Pelada, revela que acabou se emocionando com o tratamento recebido dos garimpeiros. “Ao me ver descendo na cava, aqueles homens rudes, imundos de terra e barro e seminus, que gritavam selvagemente há poucos minutos, se transformaram em pessoas educadas, delicadas e gentis.”
Bom causo, não é mesmo?
Aqui vai outro, só como tira-gosto: em Poço de Fora, um micropovoado, que Zara diz ter sido a sua Macondo, ela foi convidada por Marluce, uma das moradoras da vila, que trabalhava na casa- critório, em que moravam geólogos e técnicos, vindos de outros estados, a batizar sua filha, Lucimar. Feliz com o convite, e sem conhecer os costumes da terra, passou a comprar presentes para a afilhada. “De vez em quando eu levava para a menina, alguns presentes de roupinhas para uso diário, que raramente a via usando – imaginava que a comadre as guardava para ocasiões especiais.” Numa data festiva, que Zara imagina ter sido Natal, comprou uma boneca para Lucimar. A comadre insinuou que preferia um presente em dinheiro. Zara fez ouvidos moucos e viajou para as férias e o início de seu mestrado. Tempos depois, ao retornar à vila, foi visitar Marluce. “Entrei no quarto da afilhada que estava dormindo e me deparei com a boneca, ainda na embalagem de celofane sobre o roupeiro.
Muito espantada, perguntei por que a menina não brincara com a boneca.
– Mas é para brincar? – me respondeu a comadre.”
Para se deliciar com as histórias vividas por Zara, o melhor é encomendar os dois volumes na
livraria online livro.vc, porque eles estão esgotados. Esta livraria imprime as obras sob
encomenda, ao custo de R$ 42,00 cada volume. No cartão de crédito, o pagamento pode ser
feito em até seis vezes, sem juros. Vale a pena.
Ficamos à espera do terceiro volume. Zara me confirmou que ele chegará logo.
*Jornalista
Foto: Divulgação
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