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Opinião

Como as escolhas políticas podem ser orientadas pelas emoções

Como as escolhas políticas podem ser orientadas pelas emoções

Artigo por RED
27/10/2023 05:35 • Atualizado em 29/10/2023 01:56
Como as escolhas políticas podem ser orientadas pelas emoções

De LUCIANO MIRANDA*

O presente artigo aborda de modo introdutório o tema das emoções – aqui apresentadas de modo indistinto ao dos sentimentos, embora a distinção exista – como orientadoras das escolhas políticas, tendo como foco o emprego da psicometria no campo da comunicação política. Neste sentido, de início o contexto em que se desenvolve a comunicação política corresponde a estratégia de argumentação para o convencimento, a fim de que o eleitor decida entre opções políticas diversas. No entanto, esse campo vem sendo transformado, em especial no que se relaciona à construção do convencimento. 

É claro que convencimento corresponde à intenção política, seja nas eleições que elegem nossos representantes e chefes de governo, seja na participação ou adesão em movimentos ou campanhas, como acontece na construção de uma greve geral ou de mobilização para levarmos nossos filhos aos postos de saúde a fim de serem vacinados. A vinculação a essas eleições, movimentos ou campanhas implica tomadas de decisão, isto é, escolhas, que são políticas. Precisamos fazer escolhas todos os dias. Algumas escolhas são mais simples, porque têm um menor impacto nas nossas vidas a médio e longo prazos. 

Por exemplo, quando decidimos a roupa que vamos vestir, o calçado que vamos usar para proteger nossos pés, a comida que vamos servir no café da manhã, e assim por diante. Outras escolhas são mais complexas, porque têm maior impacto nas nossas histórias individuais, vindo efetivamente a influenciar nossos percursos de vida como ocorre ao escolhermos uma profissão, ou ao decidirmos casar e ter filhos, ou ainda ao elegermos quem vai nos governar pelos próximos quatro anos. 

Então essas escolhas tornam-se viáveis por meio da comunicação que veicula informações que de alguma forma nos fazem sentido. Isto é, na tradição da comunicação política, essas escolhas são baseadas em fatos que são submetidos a procedimentos ora muito rápidos, quase automáticos, ora sobretudo mais detidos, lentos: de observação, lembrança, comparação e análise. Portanto todos eles se submetem a nossos julgamentos racionais. Submetem-se ao crivo da razão. No entanto, as tomadas de decisão não são puramente racionais. 

Para o bem e para o mal, na hora das escolhas a razão também depende das emoções. Sim, existe uma relação de reciprocidade entre razão e emoção como bem demonstrou, entre outros, o neurocientista português Antonio Damásio. Portanto ao avaliarmos as escolhas políticas precisamos também prestar atenção às emoções. Possuímos emoções positivas e negativas. De um modo geral, as positivas nos fazem avançar, e as negativas nos fazem evitar situações. 

Temos emoções positivas por meio, por exemplo, da alegria, do bem-estar, do amor e do prazer. Elas nos fazem sentir mais satisfação, e, estando mais satisfeitos, todas as questões que surgem parecem contar com diferentes soluções possíveis. Por outro lado, temos emoções negativas, como o medo. Elas são úteis para a nossa sobrevivência. Mas se preponderam as emoções negativas, mais tendemos a recordar as experiências ruins e a considerar pouco provável a probabilidade de ocorrências positivas. 

De fato, vivemos essas emoções, isto é, elas são sentidas. Noutras palavras, as nossas escolhas são influenciadas pela emoção que sentimos ou acreditamos sentir. Dessa forma, é mais fácil encontrarmos alternativas a desafios, se acreditarmos que vamos nos sentir bem com a escolha. Por outro lado, se acreditarmos que vamos nos sentir mal com determinada escolha, passamos a sentir emoções negativas e a ter menos facilidade para buscar opções de escolha. 

Todavia esse balanço entre emoção e razão está lidando com um grave desequilíbrio. Protagonistas de peso, na comunicação política, estão induzindo respostas emocionais para as escolhas políticas em detrimento das respostas que enfatizam critérios racionais. Por um lado, esse desequilíbrio que induz às emoções é favorecido pelo fato de que, diante das situações, as emoções respondem mais rapidamente do que as razões.

Como bem se constata na apresentação de argumentos, que dependem de fatos encadeados de modo lógico, as razões precisam mais tempo para darem conta a respostas satisfatórias; já as emoções atuam valendo-se de menos tempo. São mais rápidas, atuam com velocidade. Nesse sentido, essas características da natureza humana encontram correspondência nas tecnologias de informação e comunicação, em especial na internet. 

Nessa grande rede, o fluxo de informações é contínuo e veloz, contribuindo para respostas que atuam com velocidade ao mesmo tempo que deixam de contar com a lembrança dos fatos que possibilitam comparações ou ponderações racionais, isto é, essas respostas se dão tendo perdas de memória. Esse fenômeno da perda da memória dos fatos por causa da velocidade de difusão das informações é chamado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu de amnésia estrutural. 

Mais uma vez, a mobilização das emoções em detrimento das razões ganha terreno. Embora não haja consenso em torno do tema, é comum se considerar cinco emoções básicas como manifestações propriamente humanas: alegria, tristeza, medo, desgosto e raiva. Um dos procedimentos que manipulam essas emoções básicas em proveito de escolhas políticas é a psicometria. A psicometria não é nova. Ela é empregada há muito tempo pela psicologia para medir ou mensurar conjuntos de comportamentos humanos, mediante métodos estatísticos. 

O que existe de relativamente novo é a aplicação da psicometria para modelagem das escolhas políticas. Essa abordagem se consolida no contexto do capitalismo informacional e, de acordo com a filósofa estadunidense Shoshana Zuboff, em especial, do capitalismo de vigilância. O capitalismo de vigilância aprofunda o capitalismo informacional, na medida em que coleta por meio de dispositivos tecnológicos, como os smartphones e os notebooks, volumes massivos de dados. Esses dados são fruto de uma permanente espionagem das nossas preferências e gostos, capacitando os gestores dessas informações para antecipar, prever ou predizer nossas escolhas. 

Surge então uma economia da predição cuja ferramenta é a psicometria. O processamento contínuo de volumes massivos desses dados caracteriza o contexto da

big data. A big data aplicada à política coleta características comportamentais dos indivíduos classificados a partir de seus perfis psicométricos. Dessa forma, em vez da coleta de informações baseada em dados sócio-demográficos – como sexo, raça, idade, profissão, renda, local de residência – que definia públicos-alvo a serem atingidos pela comunicação política, obtemos, por meio da definição de perfis psicométricos, respostas mais precisas, em nível individual, que orientam campanhas de micro targeting. Isto é, de atuação em nível personalizado. 

Então passa a ocorrer a indução das escolhas políticas desses indivíduos, mobilizando sobretudo suas emoções. Isso porque as emoções são o combustível da comunicação comportamental, que é mais eficaz do que a comunicação informacional orientada a atitudes. A respeito disso, tornou-se consagrado o exemplo de Alexander Nix, antigo presidente da Cambridge Analytica, enfatizando que é mais eficaz a colocação de uma placa que diga que numa praia há tubarões do que dizer que a praia é uma propriedade privada. 

Por certo os dados sócio-demográficos continuam importantes, mas mais eficazes tornam-se os psicográficos que delineiam os traços de personalidade dos indivíduos, porque a personalidade orienta o comportamento, e o comportamento influencia como os indivíduos votam, isto é, realizam suas escolhas políticas. A definição desses perfis psicométricos é possível por meio de um método denominado OCEAN, difundido pela Cambridge Analytica, empresa de consultoria política envolvida num escândalo em que foi responsável pela utilização de informações de mais de 50 milhões de usuários do Facebook sem o consentimento deles para fazer propaganda política em benefício da candidatura de Donald Trump. 

Hoje se tem indícios de que a campanha de Jair Bolsonaro teria utilizado método semelhante, não tendo como foco o Facebook, mas o WhatsApp. A característica fundamental dessas campanhas é a viralização de desinformação e notícias falsas, que atuam sobre as emoções dos indivíduos em especial os seus medos. Para tanto, a importância da testagem dos traços de personalidade mediante o método OCEAN. OCEAN é um acrônimo, no inglês, para OPENNESS (pessoas abertas a novas experiências), CONSCIENTIOUSNESS (pessoas conscientes que preferem planejamento e ordem), EXTRAVERSION (pessoas que gostam de despender tempo com outras

pessoas, extrovertidas), AGREEABLENESS (pessoas com empatia que se preocupam com as necessidades de outras pessoas mesmo antes das suas), NEUROTICISM (pessoas instáveis emocionalmente, neuróticas). 

Então esses perfis de personalidade básicos se inter-relacionam propiciando uma infinitude de possibilidades, em que uns preponderam mais que outros, servindo para a manipulação dos comportamentos. Por meio desse método, a Cambridge Analytica se tornou capaz de traçar o perfil psicométrico de cada eleitor dos Estados Unidos individualmente. Isto é, para cada um dos perfis psicométricos é possível persuadir os eleitores, individualmente, por meio de formatação diferenciada de conteúdos cujo resultado buscado é o mesmo, seja eleger um presidente, seja eleger uma ideia. 

Por exemplo, pode-se persuadir os indivíduos sobre a importância da liberalização do porte de armas mediante campanhas personalizadas para cada um deles, ou seja, uma que é mais eficaz para alguém instável emocionalmente, outra para uma pessoa mais empática, e assim por diante. Assim, as pessoas deixam de receber os mesmos anúncios. Cada uma delas recebe um anúncio específico para as suas características comportamentais. 

As empresas que manipulam os comportamentos consideram que os seres humanos são orientados por duas crenças emocionais fundamentais: esperanças e medos. Às vezes não sabemos exatamente o que é o medo até interagirmos com uma imagem que o evoca. Portanto, a psicometria é empregada para capturar as emoções e preocupações mais profundas e manipular as escolhas políticas. As eleições com isso deixam de ser trabalhadas com base em fatos. Tornam-se espaço de mobilização das emoções. 

Em termos práticos, esses procedimentos têm contribuído para tornar vitoriosas campanhas, na melhor das hipóteses, conservadoras, e de regra, reacionárias, regressivas, fascistas e negacionistas. No limite, a própria razão de ser da comunicação política é colocada em xeque, pois deixam de existir possibilidades à pluralidade de ideias sobre a qual se atua ao convencimento para as melhores escolhas. 

Mediante a lógica psicométrica, morre de vez o ideal do filósofo alemão Jürgen Habermas de um espaço público de livre conversação e debate de ideias com pretensões de validade visando às tomadas de decisão. Ao contrário, o que se obtém é o reforço de crenças e o estímulo aos medos mais atávicos em proveito de campanhas que, ao fim e ao cabo, aprofundam a degradação da democracia representativa. Em suma, passamos a viver num mundo em que os fatos objetivos são menos influentes para formar a opinião pública do que o apelo às emoções ou crenças pessoais. O quadro é preocupante, mas por ora, enfim, encerro por aqui. Já que foram mencionadas as esperanças, saibamos buscar instrumentos para lidar com essa realidade em proveito de valores elevados orientados à efetiva e empática autonomia humana que constrói democracia substantiva e justiça social.


*Professor no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Imagem em Pixabay.

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