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CARTA DE EMANCIPAÇÃO NACIONAL. – UM DOCUMENTO AINDA ATUAL –

CARTA DE EMANCIPAÇÃO NACIONAL. – UM DOCUMENTO AINDA ATUAL –

Artigo por RED
04/10/2024 09:00 • Atualizado em 02/10/2024 23:21
CARTA DE EMANCIPAÇÃO NACIONAL. – UM DOCUMENTO AINDA ATUAL –

Por LINCOLN PENNA*

“A vida do povo brasileiro torna-se cada vez mais insuportável, pelas dificuldades e sofrimentos que lhes são impostos. As populações das cidades e do campo, realizadoras da riqueza nacional, não dispõem dos mais indispensáveis meios de subsistência, moradia e cultura, compatíveis com a dignidade humana.
A indústria nacional é impedida de desenvolver-se, em consequência da ação nefasta dos trustes e monopólios norte-americanos, aos quais são concedidos, cada dia, maiores privilégios. O comércio exterior, inteiramente submetido aos interesses desses trustes, está estrangulado. A produção agrícola continua sujeita aos processos atrasados e rotineiros, e a debater-se em crescentes dificuldades de escoamento. As imensas riquezas estão inaproveitadas para o progresso do país, sendo, ao contrário, levadas para o estrangeiro, em proveito exclusivo dos mesmos trustes.
Contra o nosso povo praticam-se frequentemente toda sorte de violências e arbitrariedades. A Constituição brasileira é desrespeitada, mormente em seus dispositivos que garantem os direitos dos cidadãos e as franquias democráticas. Os desmandos das autoridades são uma prática de todo instante.
As virtudes criadoras de milhões de brasileiros, tão ricas e fecundas no campo da cultura, são desencorajadas e tolhidas. Todo o valioso patrimônio nacional nas letras, nas artes, e nas ciências, está desamparado e submetido a um intenso processo de aviltamento.
A corrupção e o descalabro administrativo aprofundam-se cada vez mais, fazendo surgir por toda a parte as mais escandalosas negociatas.
O governo não pode fugir à responsabilidade por todas essas calamidades que afligem e fazem sofrer o povo, ainda mais agravadas pelos golpes sucessivos contra a soberania nacional, diretamente atingida com acordos e tratados lesivos aos interesses do país.
O crescente ânimo de luta que tem sempre caracterizado o nosso povo através de sua história, é expresso hoje pela ação única de milhões de brasileiros, confiantes nos destinos de nossa pátria que terá certamente um futuro de progresso pacífico de bem-estar e felicidade em entendimento amistoso com todas as nações.
As memoráveis campanhas patrióticas que temos vivido integram-se no poderoso movimento de emancipação nacional. Surgem todas as condições para que o povo empreenda a grande jornada emancipadora. A bandeira da mais ampla unidade está assim desfraldada.
Com base nessa unidade, todas as forças democráticas de nosso povo são concitadas, acima dos horizontes partidários e concepções particulares de cada um, para a realização do grande esforço comum, capaz de emancipar economicamente e politicamente nossa querida Pátria da crescente dependência de interesses estrangeiros a que está submetida, e capaz de conduzi-la pela estrada do progresso.
A defesa da indústria nacional e a criação da indústria pesada constituem condição básica para a conquista da independência econômica. Para isso são indispensáveis: a nacionalização das fontes de energia elétrica hoje em mãos dos monopólios estrangeiros; a radical modificação da política financeira e cambial do governo, abertamente voltada contra a industrialização, o aproveitamento intensivo de nossos recursos minerais; e uma adequada reforma agrária capaz de assegurar a criação de um amplo mercado interno, com a eliminação das condições de miséria e atraso em que vive a nossa população rural.
Impõe-se a nacionalização da distribuição do petróleo, hoje em poder da Standart Oil, bem como a vigilante defesa de nossas jazidas. Não é mais possível tolerar a continuação da pilhagem das nossas reservas de manganês, monazita e outros minérios, por parte dos trustes norte-americanos.
É dever impreterível dos patriotas a salvaguarda da soberania nacional, atingida pela ratificação do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos e tantos outros tratados antinacionais, que abrem as portas do Brasil a missões colonizadoras militares, econômicas e administrativas, visando implantar sua tutela em nosso território.
Não devemos consentir na continuação das restrições à nossa liberdade de comércio externo, impostas pelo governo norte-americano, e defendemos a ampliação do intercâmbio comercial, pelo imediato restabelecimento de relações com todos os países do mundo, inclusive com os países do Leste Europeu e da Ásia, o que permitirá o alívio de nossas dificuldades econômicas.
No âmbito interno pugnamos por amplas e efetivas medidas que ponham termo ao insuportável e constante encarecimento da vida, proporcionando aos que vivem do trabalho melhores e mais humanos níveis de remuneração e de existência.
Impõe-se do mesmo modo a defesa da cultura nacional ameaçada, o estímulo ao pleno florescimento das ciências, da literatura, das artes, e o amparo à indústria cinematográfica nacional.
A luta pelas liberdades e em defesa dos direitos fundamentais do homem, inscritos na Constituição, é parte integrante e inseparável do histórico movimento da emancipação nacional. Sem a completa emancipação do Brasil não teremos assegurada a plena liberdade.
Conclamamos finalmente todo o povo brasileiro – industriais, funcionários, intelectuais, operários, profissionais liberais, camponeses, comerciantes, militares, estudantes, donas de casa e magistrados – a manifestar o seu apoio a este patriótico movimento, nascido sob o signo da mais ampla unidade de vontades e anseios, para a conquista da emancipação nacional.”

Pela Presidência: General Edgard Buxbaum, deputado, Campos Vergal, general Felicíssimo Cardoso, general Artur Carnaúba, deputado Paulo Couto, deputado Tarcilo Vieira de |Melo (secretário geral), deputado Euzébio Rocha (tesoureiro geral), general Leônidas Cardoso (Procurador).
1955.

A longa Carta da Liga de Emancipação Nacional (LEN) difundida cerca de um ano após o suicídio de Vargas e já em pleno processo eleitoral daquele ano, guarda uma atualidade com o que se passa hoje, ressalvadas as circunstâncias e peculiaridades no que concerne à economia nacional, sobretudo as referências ao quadro internacional marcado por uma relação pela polaridade entre EUA e URSS, pilares da Guerra Fria de então.

Existe, porém, uma questão que se mantém a demandar a nossa atenção dentro das prioridades que têm crescido na medida em que não se tomam as providências necessárias para atendê-las. Refiro-me à indústria nacional e ao seu progressivo sucateamento já previsível há 70 anos, tempo imediatamente anterior ao advento do chamado neoliberalismo, ou seja, à ascensão do setor financeiro em grande parte responsável pela secundarização das atividades produtivas.

Contudo, a lógica que presidiu esse documento permanece válido, porquanto a despeito da desagregação do sistema socialista mundial amparado na URSS a nova versão da velha Guerra Fria se orienta na direção de nações que buscam lutar por suas autonomias nas relações internacionais a resistirem a pressões do grande capital presentemente transnacional, pois não mais ancorado como durante o imediato pós-guerra nos EUA.

O exame do conteúdo da Carta sugere muitas leituras, mas cabe assinalar dois significativos traços: (1) a amplitude de seu alcance a buscar reunir um conjunto variado da sociedade brasileira, destacadamente os segmentos militares, que ainda se encontravam fortemente vinculados a teses nacionalistas, muitos dos quais tiveram participação na Campanha da Petrobras; e, (2) o caráter vibrante presente nos argumentos a sustentarem esse projeto nacional-desenvolvimentista e grandemente calcado na definitiva conquista de nossa independência. São pontos que dentre outros propiciam um bom balanço para que continuemos a descortinar perspectivas mais promissoras para o nosso povo.

A LEN foi fechada no primeiro ano do governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Na edição de 14 de junho de 1956, o jornal Imprensa Popular vinculado ao então Partido Comunista do Brasil estampou em sua primeira página em letras garrafais: “Serve ao Imperialismo Americano o fechamento da Liga da Emancipação”. E no corpo dessa edição destaca os vários pronunciamentos indignados de parlamentares contrários a essa decisão que violava os dispositivos constitucionais.

Para não parecer que essa reflexão se encontra presa a um viés meramente panfletário, isto é, quando a ideologia empobrecida pelo palavreado comum se opõe a uma dada realidade centrado apenas em suas concepções, vale citar um trecho do livro do economista Celso Furtado. Trata-se de “O Mito do Desenvolvimento Econômico”, editado em 1974, já em plena hegemonia da etapa neoliberal. Senão vejamos:

O traço mais característico do capitalismo em sua fase atual está em que ele prescinde de um Estado, nacional ou multinacional, com a pretensão de estabelecer critérios de interesse geral disciplinadores do conjunto das atividades econômicas. (…) a expansão dessas economias depende, fundamentalmente das transações internacionais, e estas estão sob o controle das grandes empresas … (pp. 34-35).

A exemplificação do que ocorreu no governo de Juscelino (1956-1960), ocasião em que o nacional-desenvolvimento incrementou um crescimento econômico atrelado a investimentos externos que comandaram parte dessa política na qual o dado nacional passou a figurar em plano subsidiário à expansão, só fortalece o registro feito por Furtado.

Creio ser oportuno não apenas lembrar e fazer circular a Carta de Emancipação Nacional, fundadora de um movimento que não obteve continuidade por razões que escapam o objetivo desse artigo, mas refazê-la para que a luta pelo direito de nosso povo de usufruir condignamente o fruto de seu trabalho e das riquezas e recursos que possuímos seja alcançada. E isso só acontece com a conscientização e a mobilização organizada dos que mais padecem pelo estado ainda dependente no que diz respeito ao controle de nosso potencial, mesmo que em grau não tão subalterno como naqueles tempos de grande euforia interrompido pelo golpe de 64.

*Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).

Foto: Centro de Memória Sindical

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