Opinião
Carmen, Alice e Helena: Histórias no cinema de Helena Solberg
Carmen, Alice e Helena: Histórias no cinema de Helena Solberg
De VERA HAAS*
Das vinte categorias da 64ª edição do Prêmio Jabuti neste ano de 2022, treze premiaram mulheres. Ana Carolina Teixeira Soares lançou o filme Das tripas coração em 1982, uma narrativa nada convencional com a qual conquista o Kikito de melhor diretora em Gramado. Em 1822, nascia Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula (1859), obra que vem recebendo cada vez maior destaque no conjunto de textos fundamentais da literatura brasileira. O ano de 2022 parece convidar a um olhar mais cuidadoso e renovado sobre as conquistas das mulheres brasileiras.
Em minha opinião, Helena Solberg é, essencialmente, documentarista: uma diretora que se debruça reflexivamente sobre os recursos discursivos que estruturam esse tipo de audiovisual. No entanto, conheci sua obra quando assisti ao encantador Vida de menina (2004). Não se trata de um documentário, mas de uma ficção biografia, ou cinebiografia, adaptada a partir do livro publicado sob o pseudônimo Helena Morley. O filme motivou minha busca por outras obras da mesma realizadora.
Solberg conquistou um cinema autoral com documentários em que apresenta o olhar das mulheres sobre si mesmas. A cineasta constrói a narração com a voz de entrevistadas/os, com manchetes ou legendas de jornais, com fotos de época, seja de particulares, seja da mídia, enfim, com discursos provenientes de diversas fontes e que possam compor as reflexões que apresentam o tema e o ponto de vista do documentário. Também encontramos estratégias resultantes da alternância de discursos do audiovisual, como a voz da entrevistada em off e um cenário que contrasta com o que ouvimos no áudio; ou, ainda, a dramatização – recriação – de cenas da vida de uma figura famosa entre depoimentos de entrevistados, de modo a misturar recursos comuns a relatos ficcionais àqueles frequentes em documentários, realização que caracteriza o docudrama (2001, p. 73).
Solberg coloca em xeque a presença de um ponto de vista definitivo, de uma verdade que encerre aqueles acontecimentos a outra perspectiva. Em suas produções, o/a narrador/a assume identidade de gênero e de classe social. Assistir a obras como o curta A entrevista (1966) e a trilogia iniciada com The Emporing Woman e finalizada com Simplesmente Jenni, em que a condição feminina em diferentes classes sociais é o foco da diretora; ou ao inteligente From the ashes… Nicarágua Today (Das Cinzas… Nicarágua Hoje) –, trabalho pelo qual recebe, em 1983, o prêmio National Emmy Award devido à produção de um retrato reflexivo da condição feminina através de entrevistas realizadas com uma família nicaraguense, acompanhada pela câmera; ou ainda ao Palavra (en) cantada (2008), cujo foco muda de direção a fim de refletir sobre a música popular brasileira, enfim, assistir a esse conjunto é também fazer um estudo sobre História, Cinema e Narração.
Karla Hollanda, em Mulheres atrás das câmeras – as cineastas brasileiras de 1930 a 2018 (2019), organizado por Luíza Lusvarghi e Camila Vieira da Siva, situa o curta com o qual Solberg inicia seu cinema autoral: “[…] pode-se dizer que A entrevista é fundante do cinema moderno brasileiro de autoria feminina – e não só entre os documentários” (2019, p. 69). Essa importância da película está calcada em depoimentos “ambíguos, inseguros e não assertivos” (2019, p. 69), em declarações que a diretora não realinha sob a voz de quem dirige, como se fossem possíveis respostas definitivas, mas às quais garante “o que deveria mesmo lhes ser inalienável: todo o direito do mundo ao titubeio” (2019, p.69). A hesitação ante o redemoinho da vida e as certezas categorizantes da sociedade parece muito mais honesta e próxima de uma face da verdade do que as vozes em off dos documentários tradicionais, a conduzir narrativas lineares em nome deste ou daquele discurso hegemônico. Desde o início de sua trajetória, a cineasta opta por construir audiovisuais com ponto de vista, com lugar dentro da História, com pertencimento. Do conjunto de realizações de Solberg (atualmente com 84 anos), chamam minha atenção dois filmes.
Carmen Miranda – Bananas is my bussines(1994) é um docudrama ou documentário dramatizado (CASCAIS, 2001, p.73) acolhido com entusiasmo e premiado: Prêmio de Melhor Documentário Dramático no Festival de Chicago (1995), Melhor Filme pelo Júri Popular, Prêmio Especial do Júri e Prêmio da Crítica no Festival de Brasília (1994), Melhor Documentário no Festival de Cinema Novo Latino-americano de Havana (1995) e Melhor Filme no Festival de Montevideo (1996). Vida de menina (2004), baseado no Diário de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrrel Caldeira Brandt (1880-1970), conquista o prêmio de Melhor Filme no Festival de Cinema de Gramado (2004), arrebatando ainda prêmios nas categorias Melhor Roteiro, Fotografia, Direção de Arte, Música e Júri Popular. Primeiro longa-metragem de caráter ficcional, Vida de menina repete o sucesso de Gramado e obtém o prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular no Festival do Rio de Janeiro (2009).
Mariana Tavares (2019) comenta que o docudrama procura compreender a causa da caricaturização da imagem de Carmen Miranda nos EUA. Quanto ao lugar que ocupa na história do cinema brasileiro, a pesquisadora afirma que a utilização da ficção, o extenso trabalho de pesquisa e as dezesseis entrevistas com pessoas que conheceram Carmen transformaram o filme em “um dos mais relevantes documentários da década de 1990, período da retomada do cinema nacional” (2019, p. 173). Carmen Miranda – Bananas is my bussines coloca em cena duas figuras complementares: Carmen Miranda e Helena Solberg. A diferença entre ambas? Carmen nasceu portuguesa e residiu desde muito novinha no Rio de Janeiro. Era filha de um barbeiro, moça carinhosa e atenciosa, como revelam declarações e cartas. Trabalhadora, ela gostava de cantar, dançar e fazer chapéus. A habilidade com os chapéus estendia-se ao cuidado com o próprio figurino.
Helena – nascida na classe média do Rio de Janeiro, filha de pai norueguês e de mãe brasileira –, cursa a Faculdade de Línguas Neolatinas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ocasião em que conheceu o Cinema Novo com Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, Nelson Pompéia, Celso Guimarães, entre outros. No docudrama, é a memória da jovem Helena, impedida de ir ao enterro de Carmen Miranda por determinação dos pais, o ponto de partida da narração.
Vida de menina apresenta parte da juventude de Helena Morley, menina moça espevitada, que corre por campos e sobe em árvores, escuta histórias e escreve as suas próprias. A cineasta concede a palavra à jovem mineira em estilo que Tavares (2019) observa com acerto: a narração é conduzida pela voz over, como se a menina “estivesse lendo em voz alta seus escritos” (2019, p.173). No filme em que ficção, biografia e documentário estão imbricados, a poesia narrativa cresce se considerarmos seus filmes anteriores. Cenas com muita luminosidade desvelam uma Helena Morley capaz de refletir e chegar a conclusões próprias, por vezes muito maduras e de análise contundente no que se refere à Diamantina de 1893. De descendência inglesa por parte de pai e portuguesa por parte de mãe, dona de um tipo físico que a distancia de outras meninas da localidade, a protagonista apresenta situações vividas em uma época em que o olhar afetuoso e crítico da jovem incide sobre o mundo adulto e os costumes da sociedade local com lucidez. A atitude de deixar falar a Helena de Alice Brandt funciona como expressão da voz de Helena Solberg, que, se mais uma vez escreve com a câmera uma história sobre o feminino, filma também uma história sobre meninas que crescem para produzir seus próprios discursos, sejam literários ou audiovisuais.
Em Carmen Miranda – Bananas is my bussines, a personagem título sai do Brasil para conquistar a si mesma – como brasileira – e ao Brasil. Carmen dança bem, canta bem, tem um gingado que encanta mundo a fora. As bananas, os balangandãs, o exotismo do figurino e o brilho dos olhos levam Carmen Miranda a produto de exportação do Brasil – o país vendia uma imagem. No entanto, a classe média brasileira – e os jornais – a recusavam. Carmen quer ser aceita, quer ser reconhecida pelos brasileiros e pelo Brasil, ela quer a aceitação da classe que a recusa, ela deseja um passaporte brasileiro – que nunca receberá. Em Vida de menina, o cotidiano em Diamantina molda a menina, apesar das enaltecidas linhagens de além mar: a inglesa e a portuguesa. Helena é brasileira e não é brasileira porque deve fazer como as moças inglesas. De espírito vívido, tem na avó materna a proteção de que necessita para todas as travessuras e teimosias – incluam-se, aqui, ideias e atitudes nem sempre adequadas às meninas daquela época e daquele lugar. Frequenta as aulas de etiqueta da tia Madge e corre por campos e riachos com Arinda, a amiga negra, e os irmãos, Renato e Luisinha. Helena está à frente de sua época. Ela reconhece os movimentos da sociedade a que pertence, tem consciência do lugar que ocupa por ser menina e pobre e testa os limites de sua própria ousadia em relação à comunidade em que está inserida como resistência ao menosprezo que sua singularidade lhe granjeia, provocando estranhamentos sem perder de vista o que é comum ou familiar. As histórias e reflexões que experimenta têm no diário o espaço para o amadurecimento da personalidade da menina moça e a realização do que viria a ser uma obra literária relevante. A jovem tem o vigor das meninas que recusam os papéis sociais pré-definidos e das mulheres contadoras de histórias Das mãos buliçosas de Helena, surge o retrato de uma sociedade patriarcal, machista, opressora e escravocrata, e de algumas mulheres que resistem enquanto amorosamente se apóiam.
A Helena que dirige audiovisuais reencontrou Carmen e o Brasil em um docudrama, a Helena de Alice Brandt reconquistou Diamantina e seus personagens em uma ficção biografia. E a Helena cineasta de 2004 estende as mãos à artista e à escritora, todas contadoras de histórias que falam de pertencimento – de balangandãs, diários e câmera. A narração permite constituir os fios da pertença. Os textos, o fílmico e o literário, as canções e a voz over, assumem posições e não ocultam hesitações, medos, afetos interrompidos – só assim é possível recordar e dar as mãos.
Que as Carmens, Alices e Helenas nos ajudem a dar as mãos e redescobrir o Brasil!
*Doutora e mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
CASCAIS, Fernando. Dicionário de Jornalismo – as palavras dos media. São Paulo/Lisboa: Editorial Verbo Lisboa, 2001.
GERBSE, Carlos. IN: https://www.primeirofilme.com.br/site/o-livro/enquadramentos-planos-e-angulos/ Acesso em 06.03.21
HOLLANDA, Karla. “Documentário [e afins] feitos por elas – um painel”. IN: LUSVARGHI, Luiza; SILVA, Camila Vieira da. Mulheres atrás das câmeras – as cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
LONSO, Lucia. Tipos de planos e sua importância para a narrativa visual. IN: https://www.domestika.org/pt/blog/4472-tipos-de-planos-e-sua-importancia-na-narrativa-visual# Acesso em 06.03.21.
SOLBERG, Helena. Carmen Miranda – Bananas is my business. 1994, docudrama, longa-metragem, 35mm, colorido, 92 min. IN: https://www.nowonline.com.br/filme/carmen-miranda-bananas-is-my-business/181667 (filme completo).
SOLBERG, Helena. Vida de menina. 2004, ficção, longa-metragem, 35mm, colorido, 101 min. DVD.
TAVARES, Mariana. Helena Solberg: trajetória singular de uma cineasta brasileira. IN: LUSVARGHI, Luiza; SILVA, Camila Vieira da. Mulheres atrás das câmeras – as cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
Texto publicado originalmente em Histori-se.
Imagem – reprodução livre de cena de Vida de Menina.
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