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CAPACETAÇO CONTRA FACADA: como a insegurança jurídica pode levar à violência

CAPACETAÇO CONTRA FACADA: como a insegurança jurídica pode levar à violência

Artigo por RED
24/07/2024 16:23 • Atualizado em 25/07/2024 19:31
CAPACETAÇO CONTRA FACADA: como a insegurança jurídica pode levar à violência

Por LUIZ ALBERTO DE VARGAS*

Os jornais dos últimos dias relatam dramático conflito entre três membros de uma família e um motoboy que resultou em ferimentos graves por arma branca no motociclista que, perseguido e atacado por supostas ofensas, defendeu-se aos ataques à faca esgrimindo o próprio capacete da moto, que, assim manejado, transformou-se também em arma branca.

Por certo, especialistas em direito penal, sociólogos e psicólogos terão muito a dizer, mas reservo-me um espaço pequeno para tratar da questão por um ângulo inusitado: o de quanto a insegurança jurídica a respeito do vínculo de trabalho do motoboy pode ter contribuído para o lamentável episódio.

Por certo, se poderia também encarar o problema da insegurança jurídica por outro lado, o da (i) responsabilidade da empresa com quem a família contratou o serviço de entrega (tema de direito do consumidor) ou, mesmo, colocar o tema em uma perspectiva ainda mais ampla, como pode ser o das incertezas em mundo cada vez mais imprevisível e o que teria isso a ver com as conhecidas ideias de Baumann sobre o chamado “mundo líquido’.

Sendo da área do direito do trabalho, conformo-me a ver a vida da minha janela e, aqui, de partida, tenho de constatar que a vida dos trabalhadores motoclistas não tem sido das mais fáceis ultimamente. Jornadas de trabalho desumanas sem pagamento de horas extras, remuneração por tarefa condicionada ao pagamento pelo cliente, exigências de entrega em tempo exíguo sob pena de não-pagamento da comissão, não-cobertura dos riscos de acidente no trânsito, não assinatura da CTPS e não-reconhecimento dos direitos celetistas e previdenciários. Sem falar, é claro, do pagamento de uma exígua “taxa de entrega” que, calculada de forma contabilmente rigorosa, sequer cobre os custos do aluguel e da manutenção da motocicleta alugada. Mais: a própria imagem do entregador motociclista já está sendo irremediavelmente comprometida por um seriado cômico de televisão que, semanalmente, a pretexto de “homenagear” os motoboys, apresenta-os como ociosos que passam os dias nas calçadas, criando confusões de todo tipo. Talvez esse trabalhador esteja desmotivado, extenuado, sobrecarregado e, por falta de treinamento, não tenha mesmo desenvolvido a paciência e cortesia que, em geral, se espera de todos que trabalham no ramo do comércio.

Claro que nada disso justifica que um motoboy ofenda quem quer que seja, muito menos o cliente que teria se recusado a pagar a mercadoria já entregue. Em mundo civilizado (menos líquido), dívidas contraídas com as empresas são pelas mesmas cobradas na justiça e não exigidas aos berros na frente da casa do devedor pelo empregado.  Também num mundo de maior “segurança jurídica”, ofendidos verbalmente não tomam a justiça nas próprias mãos e perseguem o ofensor de faca na mão. Em outros tempos, tudo se resolveria com um telefonema para a empresa, queixando-se da conduta do empregado.

Ah! Pois é!  Ele não era empregado e a empresa sustenta não ter qualquer responsabilidade pelas condutas eventualmente lesivas aos seus clientes por seus “colaboradores”.

Triste mundo em que, ao invés de procurar a Justiça, as pessoas buscam, cada vez mais, “meios alternativos para solução dos conflitos”, no caso concreto a golpes de facada e capacetaço.

*Luiz Alberto de Vargas é Desembargador do Trabalho e membro da Associação de Juízes e Juízes para a Democracia

Foto da capa: Motoboys durante manifestação no Rio de Janeiro – Reprodução/Redes Sociais

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