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Cadê o corte nos juros?
Cadê o corte nos juros?
Por PAULO KLIASS*
Muitas vezes na política a sincronicidade de alguns acontecimentos pode ser fatal. O encadeamento recente de fatos, a partir da decisão do governo de anunciar a divulgação das medidas para resolver a suposta dificuldade na questão fiscal, terminou por escancarar os equívocos cometidos desde o começo do terceiro mandato na área econômica. Assim, de trapalhada em trapalhada, de concessão em concessão ao financismo, o governo revelou sua incapacidade em sair por cima da iniciativa política, justamente na semana em que o noticiário estava dominado pelas revelações dos crimes praticados por uma parte da elite das Forças Armadas em sua tentativa golpista em 2022 e mesmo no início de 2023.
Após muito tempo de indefinição e indecisão, Lula parece ter se resolvido a não apresentar aquilo que seus assessores da área econômica tentavam empurrar como fato consumado goela abaixo do chefe. Desde o início do ano passado, uma série de assessores e secretários das pastas da Fazenda e do Planejamento anunciavam publicamente a suposta necessidade de serem promovidas medidas para conter as despesas de forma estrutural. Há poucas semanas, Fernando Hadad e Simone Tebet passaram a verbalizar, em nome do governo, tais intenções. Ambos foram explícitos na defesa do fim dos pisos constitucionais para saúde e educação, além da eliminação da paridade entre os benefícios previdenciários em relação ao valor do salário-mínimo. Uma loucura!
À medida em que avançava o calendário, tudo indica que Lula tenha se dado conta dos riscos políticos envolvidos em tal aventura irresponsável que seus assessores lhe propunham. Assim, o formato do pacote fiscal que foi finalmente anunciado deixou de fora as mudanças constitucionais, que retirariam a segurança de conquistas que até o momento ainda não haviam sido retiradas da Constituição Federal nem mesmo pelos governos de Temer e Bolsonaro. Ocorre que a lógica de impor sacrifícios à grande maioria da população se mantém nas medidas apresentadas. A estratégia envolveu a separação do conjunto de proposições em 2 trilhas. De um lado, as medidas envolvendo as receitas e de outro lado, aquela destinadas às despesas. Tudo se justifica por uma verdadeira obsessão que acomete, ao longo dos últimos 2 anos, o Ministro da Fazenda. Além de ter convencido o Presidente da necessidade de uma lei complementar tratando do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), Haddad também impôs a meta de zerar o déficit fiscal primário.
As armadilhas de Haddad: arcabouço e zerar o déficit
E justamente por ter imposto tal armadilha de zerar o déficit ao governo a curto prazo é que ele está correndo atrás do tempo para propor medidas de corte de gastos a todo o custo. É bem verdade que Lula exigiu a inclusão de uma promessa antiga de elevar a isenção de Imposto de Renda (IR) para quem recebe até R$ 5.000. E Haddad buscou encontrar uma fórmula para compensar essa perda de arrecadação com uma intenção vaga de uma tributação de IR para quem recebesse acima de R$ 50 mil reais por mês. A intenção é boa, mas ainda não se conhecem os detalhes da medida e se haveria efetiva capacidade de promover a arrecadação desejada. De todo modo, tudo leva a crer que tais proposições só terão impacto econômico a partir de 2026, uma vez que os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal não pretendem colocar o assunto em votação ainda em dezembro.
Desta forma, as maldades passariam ter validade a partir de 1 de janeiro próximo, ao passo que as medidas que poderiam significar maior justiça tributária ficam para depois. A conhecida tática que muitos pais aplicam aos filhos – “na volta a gente compra”. De qualquer forma, o que temos para o momento são propostas que afetam os mais pobres, a exemplo da redução dos ganhos do abono salarial, o endurecimento das regras para o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e as mudanças nas regras do salário-mínimo para reduzir os ganhos reais acima da inflação.
A pergunta que não quer calar é: por que Haddad insiste em deixar de lado qualquer inciativa que signifique buscar receita ou reduzir despesas envolvendo os setores do topo de nossa pirâmide da desigualdade? Para cumprir com a meta de zerar o déficit primário, bastaria editar uma Medida Provisória eliminando a aberração da isenção que faz com os beneficiários de lucros e dividendos não sejam atingidos pela tributação de IR, assim como acontece com qualquer assalariado ou aposentado/pensionista. Tal medida foi uma generosidade oferecida por Fernando Henrique Cardoso em 1995 e nenhum governo do PT fez nada esse respeito desde 1 de janeiro de 2003.
Pacote de maldades e explosão de juros
Há vários estudos com estimativas a este respeito e todos parecem confluir para conclusões de que esta medida promoveria justiça tributária e asseguraria volume de receitas mais do que suficiente para compensar as perdas decorrentes da elevação do limite de isenção para R$ 5 mil. Outro aspecto seria voltar os holofotes para maior rubrica “gastadora” da estrutura de despesas orçamentárias. Refiro-me à conta de juros da dívida pública. E aqui retomo o início do artigo, comentando a sincronicidade das coisas da política. Isso porque no mesmo dia em que Haddad tentava convencer a sociedade a respeito da inevitabilidade de seu pacote e da justeza do mesmo, o Banco Central (BC) divulgava discretamente em suas páginas o Relatório Mensal das Estatísticas Fiscais.
E os dados são impressionantes! Durante o mês de outubro, o Brasil bateu um novo recorde de volume mensal de pagamentos de juros. Foram extraídos do Orçamento Federal um total de R$ 111 bilhões para essa rubrica financeira para serem torrados em apenas 22 dias úteis. Como diria o Presidente Lula, nunca antes há História deste País se gastou tanto em um único intervalo mensal com o direcionamento de recurso públicos para os integrantes do topo da vergonhosa pirâmide da injustiça. A bem da verdade, no recente mês de junho outro recorde havia sido estabelecido, quando foi atingido o montante de R$ 95 bi. Mas, como a metodologia adotada desde sempre (e jamais modificada, nem mesmo com Lula ou Dilma) pela área econômica mantém a lógica do ajuste fiscal exclusivamente “primário”, isso significa deixar de lado do cálculo as despesas não-primárias – entenda-se, as despesas financeiras. Para esses gastos considerados como VIP, não há teto, nem limite, nem contingenciamento.
Juros: R$ 111 bi em outubro. Recorde atrás de recorde
Ao analisar a série mais alongada das despesas com juros, chegamos ao volume impressionante de R$ 762 bi apenas para os 10 primeiros meses de 2024. A comparação com os valores do mesmo período janeiro/outubro para os anos anteriores revela que o rentismo permanece intocável e segue sendo privilegiado como sempre.
Se a intenção for comparar os valores anuais, envolvendo a totalidade de gastos financeiros realizados em 12 meses, a realidade também segue gritando bem alto. Se considerarmos o período de novembro 2023 a outubro 2024, temos um novo recorde atingido. Foram R$ 869 bi gastos com o pagamento de juros da dívida pública, um crescimento de 21% em relação ao que foram gastos ao longo dos 12 meses do ano passado. É importante registrar que nenhuma outra rubrica orçamentária teve tamanha elevação de valores dispendidos. O gráfico abaixo exibe os números já corrigidos pela inflação para os últimos 4 exercícios. São valores crescentes, em um período em que os gastos da área social e dos investimentos públicos estavam submetidos ao Teto de Gastos de Temer e ao NAF de Haddad mais recentemente.
Se a intenção for comparar os valores anuais, envolvendo a totalidade de gastos financeiros realizados em 12 meses, a realidade também segue gritando bem alto. Se considerarmos o período de novembro 2023 a outubro 2024, temos um novo recorde atingido. Foram R$ 869 bi gastos com o pagamento de juros da dívida pública, um crescimento de 21% em relação ao que foram gastos ao longo dos 12 meses do ano passado. É importante registrar que nenhuma outra rubrica orçamentária teve tamanha elevação de valores dispendidos. O gráfico abaixo exibe os números já corrigidos pela inflação para os últimos 4 exercícios. São valores crescentes, em um período em que os gastos da área social e dos investimentos públicos estavam submetidos ao Teto de Gastos de Temer e ao NAF de Haddad mais recentemente.
Ora, parece mais do que evidente que os supostos problemas fiscais do Brasil não podem ser atribuídos àquilo que os grandes meios de comunicação chamam de “gastança” destinada aos setores do andar de baixo da sociedade. Afinal, em um único mês o governo gastou apenas com o pagamento de juros mais do que o triplo do que os R$ 31 bi que Haddad pretende economizar ao longo de todo o ano de 2025. E o que é pior: o discurso da Fazenda se assemelha à narrativa das elites da Faria Lima que buscam criminalizar as políticas sociais. Afinal, chamar de “fraude” algumas irregularidades que eventualmente podem ser encontradas em casos de pagamento do BPC é um completo despropósito. Esse benefício destina-se aos mais miseráveis de nossa sociedade. Trata-se de famílias em que um único membro recebe um salário-mínimo para sustentar 4 pessoas. Caso exista uma pessoa no núcleo familiar que seja portador de deficiência ou um idoso que nunca tenha contribuído para previdência social, a família faz jus à “fortuna” de um benefício de valor equivalente a um salário-mínimo.
Austeridade para os mais pobres e facilidades para os ricos
Quem conhece minimamente a estrutura de nossas agências do INSS ou dos postos de assistência social conhece bem o drama vivido pelas famílias para levar as pessoas para fins de comprovação da deficiência, para passar por consulta de perícia médica ou mesmo para realizar a tal da prova de vida. Assim, eventuais dificuldades para cumprir com tais exigências são fácil e maldosamente qualificadas como fraude. No entanto, não se vê um esforço similar desenvolvido pelo governo para cobrar as verdadeiras fraudes bilionárias envolvidas nos conhecidos mecanismos de sonegação tributária. Estimativas do instrumento chamado de “sonegômetro”, organizado pelas entidades de servidores da Receita Federal, avaliam que o valor total da sonegação tributária em 2022 teria atingido mais de R$ 626 bi.
A prática sistemática da austeridade fiscal remonta há muito tempo. Uma primeira tentativa de sistematização no ordenamento jurídico e de imposição de punição aos agentes públicos veio com a Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000. Em seguida o Teto de Gastos de Temer e agora o NAF de Haddad. Ao longo de todo esse período tem imperado a lógica de concentrar o esforço fiscal exclusivamente sobre as contas de natureza social. Assim as próprias estatísticas divulgadas pela Secretaria do Tesouro Nacional nos informam de como foram deixadas de lado e beneficiadas as despesas financeiras. Entre janeiro de 1997 (início da série de informações de forma consolidada) e setembro de 2024 foram destinados R$ 10,1 trilhões para o pagamento de juros da dívida pública.
Lula costuma chamar a atenção para o fato de que ele considera os valores alocados no orçamento para saúde e educação como investimento e não como despesa corrente. Seria o caso de também chamar a atenção para que seja alterado esse privilégio injustificável para o tratamento da despesa financeira. Enquanto houver austeridade fiscal imperando nas regras das finanças públicas, o dispêndio com juros não pode ficar sem controle, sem teto ou sem limite. Afinal ele é o pior gasto de todos: regressivo, parasita e concentrador de renda.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
Foto de capa: Divulgação
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