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As vozes da distopia
As vozes da distopia
De CELSO JAPIASSU *
Os partidos neonazifascistas apresentam-se hoje com votações acima de 15 por cento em 19 países da Europa e só não possuem representantes nos parlamentos da Lituânia, Malta e Irlanda.
Cada vez mais a atuar como aliada preferencial da direita tradicional, dita democrática, a extrema direita articula-se em frentes, elabora planos internacionais e confia no que acredita ser inevitável: a conquista do poder em todos os países. É o vislumbre de um mundo sombrio, distópico e miserável.
Às vésperas das eleições para o Parlamento Europeu, que se realizam no próximo 12 de junho, os representantes da extrema direita internacional reuniram-se a 19 de maio em Madri. Discutiram a união contra o socialismo e a imigração, com destaque para Javier Milei, que chamou a esposa do primeiro-ministro espanhol de corrupta, provocando uma crise entre os governos da Espanha e da Argentina. O líder do partido português Chega, André Ventura, afirmou sua convicção de se tornar o próximo primeiro-ministro de Portugal.
Palco privilegiado dos grandes acontecimentos que traçaram os destinos da Humanidade, a Europa viu e sofreu guerras infindáveis, ódio entre seus povos, doença, miséria e todas as danações de que a nossa espécie é capaz. Foi também o espaço humano onde floresceram a arte e as melhores criações do espírito humano. Na crença de ser possível o entendimento entre nações nascidas e criadas em conflito, este castigado continente inaugurou com a União Europeia uma experiência política em busca de finalmente garantir paz e cooperação em seu território.
Mas as contradições humanas, como sempre, estão ativas e continuam a conspirar contra uma convivência harmônica e produtiva. A guerra da Ucrânia é fruto das concepções geopolíticas de dois governos de direita açulados pelos Estados Unidos e pela União Europeia.
O projeto da União Europeia, por muitos definido como grande avanço no processo civilizatório, é por outros acusado de não passar de um projeto geopolítico de dominação do continente por um consórcio formado pela Alemanha em sociedade com a França.
A maior ameaça à existência de uma Europa unida está presente no seu próprio interior e toma corpo nas teses e na ação da extrema direita, que tem cada vez mais fortalecido a sua presença no Parlamento Europeu, feito crescer seus partidos e conquistado o poder em alguns países enquanto se prepara para vencer as eleições em outros. O exacerbado nacionalismo da direita é eurocético. O assalto ao poder, que antes se dava através de revoluções, hoje ocorre em golpes dentro de um rito de aparência democrática. Os meios oferecidos pela tecnologia são capazes de conquistar os corações e o voto da classe média. A classe operária, desmanteladas as suas associações e sindicatos, deixou de fazer revoluções.
Direita unida
A extrema-direita com fortes características neofascistas governa a Hungria e a Polônia enquanto se fortalece na Itália, onde chegou ao poder, na França, Suécia e também na Alemanha, onde o neonazista AfD está em segundo lugar nas preferências de voto. Na Espanha, a direita do PP acaba de ser bem-sucedida nas eleições e o Vox, criado em 2013, apesar do fracasso em algumas eleições, continua seu movimento de unificação dos movimentos conservadores reacionários. Portugal viu surgir o Chega, seu primeiro partido claramente populista de extrema direita.
O encontro entre esses partidos tem como objetivo a formação de uma aliança entre eles que fortaleça a sua influência no Parlamento Europeu e dê suporte à conquista dos governos nacionais onde a extrema direita tem visto crescer o número dos seus seguidores. Há algum tempo foi realizada uma outra reunião em Budapeste entre os líderes neofascistas da Itália, Matteo Salvini, da Polônia, Mateusz Morawiecki, e da Hungria, Viktor Orbán. Segundo um comunicado emitido depois daquela reunião, a pauta do encontro tratou da proteção das raízes da Europa contra o “multiculturalismo sem alma”, decorrente da imigração e a defesa da família tradicional.
Essa frente única da extrema-direita pretende reunir recursos e aumentar sua influência e importância no cenário da Europa. Unidos, estes movimentos serão capazes de representar o segundo maior grupo político no Parlamento Europeu, mais numeroso do que os tradicionais sociais-democratas.
Não é a primeira vez que a extrema direita europeia ensaia uma aliança transnacional. Em 2017 o AfD (Alternative für Deutschland), neonazista alemão, promoveu uma convenção à qual estiveram presentes a francesa Marine Le Pen, o italiano Matteo Salvini e o holandês Geert Wilders. Em 2019 Salvini, liderando o neofascismo italiano, reuniu-se com Orbán, viajou até à Polônia e organizou um comício em Milão ao qual estiveram presentes outros onze líderes neofascistas. Ampliando para fora da Europa a sua articulação, Salvini cultivou estreitas relações com os também neofascistas Jair Bolsonaro do Brasil e o primeiro-ministro da Índia, Narenda Modri. Nessas articulações contou com o suporte do sinistro Steve Bannon, sua influência e seus contatos internacionais.
Uma dificuldade que surgiu nessa ensaiada aliança reside nas diferentes posições desses movimentos em relação à Rússia. O polonês Lei e Justiça posiciona-se firmemente contrário à Rússia e seu governo enquanto cultiva relações estreitas com os países ocidentais, especialmente com os Estados Unidos. O italiano Liga, o francês Rassemblement National e o alemão AfD por sua vez opuseram-se às sanções americanas contra a Rússia e seus representantes já visitaram várias vezes a Crimeia anexada por Moscou. Delegações do AfD tiveram algumas reuniões com representantes do governo russo. Marine Le Pen encontrou-se pessoalmente com Vladimir Putin.
Militares e política
Um ponunciamento militar de feições subdesenvolvidas surpreendeu a França no dia 13 de maio de 2021. Como se copiassem um modelo das confusas repúblicas centro-americanas, mil e duzentos militares aposentados e muitos da ativa, entre eles 24 generais, ameaçaram o governo com uma intervenção se o presidente Emmanuel Macron não desenvolvesse ações para erradicar os perigos de desintegração e declínio do país. O manifesto militar, publicado na revista de extrema direita Valleurs Actuelles, culpou a imigração e as “hordas do subúrbio”, além da islamização da Europa, pelas ameaças à integridade da França.
Marine Le Pen proclamou apoio à manifestação militar e falou dos perigos de uma guerra civil. A Ministra das Forças Armadas, Florence Parly, defendeu a punição dos militares que teriam desrespeitado o dever da reserva e qualificou o ato como uma irresponsabilidade. Sobre a declaração de Le Pen, disse que “querer politizar os militares é um insulto a sua missão”. O jornal liberal L’Opinion resumiu em sua manchete: Armée et extrême droite: militaires en retraite rêvent d’insurrection – Exército e extrema direita: militares da reserva sonham com uma insurreição.
A carta dos militares endereçada ao presidente Macron, e que recebeu o apoio de Marine Le Pen, diz textualmente:
“Estamos prontos para apoiar políticas que levem em consideração a salvaguarda da nação. Por outro lado, se nada for feito, a frouxidão continuará a se espalhar inexoravelmente na sociedade, acabando por causar uma explosão e a intervenção de nossos companheiros ativos em uma missão perigosa para proteger nossos valores civilizacionais. Contaremos milhares de mortos que estão sob sua responsabilidade.”Os militares que assinaram o manifesto na França enfrentaram algumas consequências. O Estado Maior das Forças Armadas anunciou punições contra os militares da reserva que assinaram o documento pregando a insurreição. O Chefe do Estado-Maior pediu que os militares por trás da carta pública deixassem as Forças Armadas, e a ministra da Defesa acusou os manifestos militares de “grosseira maquinação política”.
*É autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).
Foto: Parlamento Europeu
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