Opinião
As “sepulturas flutuantes” da Europa
As “sepulturas flutuantes” da Europa
De FLAVIO AGUIAR*, de Berlim
Um helicóptero sobrevoa um barco cheio de gente que está afundando. Dirigindo-se aos náufragos, o piloto do helicóptero pergunta: “ei, vocês viram um submarino por aí?”. Uma charge como esta apareceu na mídia, reunindo, de modo macabro, dois acontecimentos da semana passada.
Um deles era a tragédia do submarino que implodiu enquanto buscava os destroços do Titanic no fundo do Oceano Atlântico, provocando a morte de seus cinco ocupantes.
O outro era um dos tantos naufrágios no mar Mediterrâneo de botes repletos de refugiados que, vindos do norte da África ou do Oriente Médio, buscam alcançar a Europa. Desta vez, a tragédia aconteceu perto do porto grego de Kalamata, no sul do país.
A charge contrastava a intensidade das buscas do submarino com passageiros milionários numa viagem que muitos consideraram fútil, com o que denunciava ser uma suposta negligência criminosa das marinhas e autoridades europeias para com o drama das pessoas que, aos milhares, buscam a fuga de territórios devastados por guerras ou pela pobreza.
Bom dia! Confira a charge da edição desta quinta-feira (22/6) do Correio Braziliense por Kleber Sales. pic.twitter.com/fKcYsdir9z
— Correio Braziliense (@correio) June 22, 2023
Na tragédia de Kalamata o navio pesqueiro transportava 750 pessoas quando naufragou, às 23 horas da terça-feira (13). Ela deixou um rastro de 104 sobreviventes, 78 corpos resgatados e mais de 500 desaparecidos.
Pode-se fazer uma série de críticas à charge. Brinca com a morte de pessoas. Reúne acontecimentos distantes e com protagonistas diferentes. Milhares de quilômetros separam os dois naufrágios, entre o norte do Atlântico e o mar Jônico, no Mediterrâneo. Na busca do submarino atuaram sobretudo as guardas costeiras dos Estados Unidos e do Canadá. No naufrágio do pesqueiro as supostas acusações de negligência apontavam para a guarda costeira da Grécia, que localizara o navio muito antes da tragédia e nada fizera.
Seja como for, com críticas ou não, a charge chama a atenção para um debate que vem tomando vulto entre representantes de organizações não governamentais que monitoram os refugiados do Mediterrâneo e muitas vezes os socorrem.
“Hostilidade aos não-europeus?”
Afinal, há ou não há uma atitude de crescente hostilidade por parte das autoridades e marinhas da Europa em relação a estes migrantes não-europeus? Muitas vozes deste debate apontam o contraste entre esta suposta ou temida hostilidade com os africanos, árabes e outros com a fraterna boa vontade em relação aos refugiados ucranianos que, no fim de contas, são europeus. Apontam, também, que a guerra na Ucrânia e seu fluxo de refugiados ergueram uma cortina de fumaça sobre os outros migrantes, tornando-os invisíveis até que uma desgraça aconteça, como no caso de Kalamata.
Há versões conflitantes sobre o acidente. A guarda-costeira grega diz que o navio seguia um curso normal em direção à Itália até o momento do naufrágio. Outras fontes, inclusive a BBC, dizem que o navio ficou parado durante horas antes de virar e afundar. Ainda uma terceira versão diz que perto das 23 horas, uma embarcação mercante tentou rebocá-lo com uma corda, o que teria provocado o naufrágio.
A conta de acidentes deste tipo no Mediterrâneo é assustadora. Segundo aquelas ONGs, desde 2014 mais de 21 mil pessoas morreram ou desapareceram na arriscada travessia. Ainda segundo estas mesmas fontes, as atitudes repressivas das marinhas e outras autoridades fazem com que estas viagens, sem dúvida ilegais, abandonem as rotas seguras e busquem outras mais perigosas.
Alguns dias depois do desastre perto de Kalamata, outro barco virou quando seguia da Tunísia para a Itália, com 46 migrantes a bordo. Nove foram salvos, 37 desapareceram.
Nada indica que este fluxo de desesperados venha sequer a diminuir, pelo menos no curto prazo. As guerras, a crescente desigualdade, a pobreza e a falta de perspectiva continuarão a provocar a busca destas viagens em embarcações precárias, batizadas, com justiça, de “sepulturas flutuantes”.
* Jornalista, analista político e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
Imagem em Pixabay.
Artigo publicado originalmente em rfi.
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