Opinião
As gravatas, os direitos humanos e a democracia
As gravatas, os direitos humanos e a democracia
De EUGÊNIO BORTOLON*
É triste acabar a vida como um ladrão de gravatas, fichado na polícia americana e desacreditado em toda a sua comunidade. A vida de um dos grandes defensores dos direitos humanos e da democracia nos anos de crueldade da ditadura militar brasileira (1964-85) acabou assim. Maldade da vida, da imprudência, da pressa e de alguém que sempre tinha algo a fazer pelos outros e não reservava tempo para si próprio. Henry Isaac Sobel (1944-2019), nascido em Lisboa, mãe belga e pai polonês, mas de cidadania americana, chegou no Brasil em 1970, nos piores momentos dos governos militares e, pouco a pouco, botou a cara para bater. Rabino, presidente da Congregação Israelita Paulista, logo se destacou na linha de frente das lutas em favor de um país aberto e arejado, sem ranços ditatoriais. Falava bem português, mas com aquele sotaque americano forte e facilmente reconhecível.
O seu nome estará sempre ligado ao jornalista Vladimir Herzog. Em 1975, Sobel se recusou a enterrá-lo na ala dos suicidas do cemitério israelita, por rejeitar a versão oficial acerca das circunstâncias da morte do jornalista. Sobel também se uniu a líderes de diferentes religiões no ato ecumênico em homenagem a Herzog, onde estavam presentes o católico Dom Paulo Evaristo Arns e o protestante Jaime Wright em um evento que reuniu milhares de pessoas e centenas de agentes da repressão que ali estavam para fazer anotações, observações e possíveis prisões.
A partir daí, o rabino não parou mais. Jogou-se na luta com as armas que tinha à mão – as palavras, as conversas e as ações e contando sempre com o apoio irrestrito da imprensa. Sua história se confunde com a da busca da ressureição da democracia brasileira. Estava sempre no front da guerra. Estava disponível permanentemente a contribuir com o avanço da democracia para, a partir daí, defender o respeito e a defesa dos direitos humanos. Judeu, não vacilou em defender também ferozmente o diálogo inter-religioso. Viajou pelo Brasil e pelo mundo na defesa dos seus pontos de vista, teve encontros com papas, presidentes, líderes e até com Yasser Arafat, o temível inimigo de Israel, para defender um novo futuro para o Brasil, democrata, aberto. Não vacilou. Viveu sempre no auge, sempre com extrema intensidade.
Por que escrever sobre Sobel nesta hora? Por duas razões. A primeira por ele ter um papel importante no caso Herzog, um jornalista morto pela ditadura, e por sua luta incessante pelos direitos humanos, independente de credos e origens. E, em segundo, porque achei o seu livro “Um homem, Um rabino” no cesto das liquidações de uma editora qualquer na última Feira do Livro. Pensei na hora: como pode um homem deste quilate estar no cesto das liquidações? Bem, é uma coisa comum, mas fiquei pensativo. Por uns reais, resolvi ler e reviver a sua história que tanto conhecia pelos jornais dos últimos 40 anos. Revivi seus discursos, sermões, prédicas, encontros, lutas, ações e pensamentos e resolvi homenageá-lo como um dos grandes democratas deste país, justamente neste momento em que a palavra é tão discutida, deturpada, vilipendiada.
Uma pena que as gravatas roubadas numa loja de Palm Beach, Flórida, tenham tirado Sobel do panteão dos heróis em vida e na morte. Raros até na comunidade judaica tentam preservar a sua memória, o seu imenso legado de guerreiro da democracia, a riqueza de sua trajetória, da sua ética e da sua personalidade corajosa e complexa.
Liberal, amigo de presidentes, viveu seu período mais febril na redemocratização do país. Entrava pela porta dos fundos do palácio do governo em Brasília para buscar soluções, propor ou exigir a tomada de posições sobre questões que afligiam o país. Sobel, com seu inconfundível cabelos longos e loiros, também teve coragem de quebrar tabus, como dar uma entrevista longa para a revista Playboy , pela qual sofreu severas críticas da comunidade judaica. “Como podia um rabino dar entrevista para revista de mulher pelada?” Assim como falava, sem papas na língua para a Playboy, participou de maneira destacada do projeto secreto de reunir toda a documentação da ditadura militar brasileira, que resultou na publicação, em 1985, do livro “Brasil, Nunca Mais”, onde é exposta a tortura e os torturadores com base em farta documentação.
Sobel, porém, pecou gravemente contra si próprio, conforme admite no seu livro. Diz que a mosca azul da vaidade o picou várias vezes em razão do seu sucesso na mídia. Se achava o tal. E diz que também não foi eficiente na vida familiar (mulher e filha) e não cuidou da saúde. O roubo das gravatas nos Estados Unidos foi no auge da sua doença. Antes de 23 de março de 2007 diz que começou a tomar muitos e muitos remédios de tarja preta, com prescrição médica e cuidados rigorosos, em função do seu elevado estresse. Ele não respeitou nada disso. Tomava vários e vários por dia, misturando e perdendo o sentido das coisas . Sua cabeça voava, vivia perturbado e, ao invés de ir a Caracas para participar de um congresso de rabinos sul-americanos, decidiu descansar em Palm Beach. Achava que merecia. Lá exagerou nos remédios e viajou por galáxias. Ao visitar uma loja, achou que botar umas gravatas no bolso não era nada demais. Mas era. Foi preso, perdeu prestígio, cargos e a comunidade judaica o repudiou. A mesma imprensa que o endeusava criticou ferozmente a sua conduta, sem saber detalhadamente das razões.
Em 22 de novembro de 2019 morreu em Miami de complicações generalizadas provocadas por um câncer. Ninguém é perfeito. Com prós e contras, ao menos para mim, Henry Sobel tem um lugar na história de enfrentamento da ditadura brasileira e na defesa de ideais saudáveis para um país soberano e pleno de liberdade. As gravatas ficam como um fato meramente imperfeito de uma vida vitoriosa.
*Jornalista com mais de 50 anos de trajetória. Destaque na editoria de economia.
Foto de Henry Isaac Sobel em Wikipedia.
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