De BRUNO BEAKLINI*
Assim como nas últimas eleições presidenciais peruanas, o primeiro turno de votação na Guatemala tem futuro incerto. Várias “Juntas Eleitorais”, o equivalente aos TREs brasileiros (Tribunais Regionais Eleitorais) estão acatando pedido de recontagem e dupla recontagem. Como o voto é impresso, essa manobra é corriqueira, ainda mais quando as forças mais conservadoras perdem significativamente e as pesquisas eleitorais não correspondem ao resultado na urna. Em princípio, o segundo turno presidencial marcado para 20 de agosto está fixado, mas não assegurado. Como quase sempre ocorre na América Latina, tudo pode acontecer, inclusive a permanência dos números e resultados descritos abaixo. Deste modo, sugiro a leitura como um relato de história recente, considerando que o campo está aberto e pode haver virada de mesa e convulsão social no maior pais da América Central.
As eleições de primeiro turno, antes da recontagem
O maior país da América Central passa por uma constante crise política e vazio de representatividade desde os acordos de paz assinados entre a insurgência e o aparelho de Estado em 1994. As condições de vida e existência são frágeis em um país que, contraditoriamente, tem boa perspectiva de crescimento. Esses fatores e uma intensa campanha de desinformação entraram em campo no primeiro turno guatemalteco e ganham ainda mais vigor na campanha de segundo turno.
Os guatemaltecos foram às urnas no domingo 25 de junho para eleger o novo presidente, vice-presidente, 160 deputados ao Congresso, 20 ao Parlamento Centro-Americano e 340 prefeitos municipais para o triênio 2024-2028. Cerca de 9,3 milhões de cidadãos definiram seus votos para eleger as autoridades que os representarão nos próximos anos. A população do país é de mais de 16 milhões e 900 mil pessoas. O total de eleitores dentre a população apta para votar dentre os habilitados foi de 60,08%. O número de votos em branco foi 388.347 e o de nulos de 966.216.
O segundo turno das eleições presidenciais será no domingo dia 20 de agosto.
Resultados do primeiro turno
Sandra Torres Casano, a candidata da Unidade Nacional da Esperança (UNE) já concorreu a presidente em 2015 e 2019 perdendo em segundo turno em ambas vezes em que, foi derrotada para Jimmy Morales (FCN-Nación) e Alejandro Giammattei, respectivamente. Ela representa a continuidade da oligarquia, recebeu o maior número de votos válidos, sem sequer chegar aos 20% do eleitorado.
O caráter de novidade é o fato de que pode vir a ser a primeira mulher presidente do país cujo território é o coração do chamado Mundo Maia. Vale lembrar que o ex-comendiante Jimmy Morales era um aliado estratégico de Netanyahu e do Apartheid Sionista e promoveu a mudança da embaixada guatemalteca de Tel Aviv (nos Territórios Ocupados de 1948) para Al Quds (Jerusalém, cidade ocupada na Naksa, em 1967).
Bernardo Arévalo ficou em segundo lugar, supreendendo com a votação que o fez chegar no segundo turno. Candidato de perfil social-democrata, já está sofrendo uma campanha difamatória com a sua concorrente o acusando de “querer transformar a Guatemala em uma Venezuela”.
O candidato do Partido Semente (Partido Semilla), que obteve 12,2% dos votos. Em terceiro lugar e muito longe de Arévalo de León, está Manuel Conde, do partido oficial Vamos, com 7,8 por cento dos votos.
O “Movimiento Semilla” se constitui como a terceira força política do país, tanto nas eleições gerais, como no importante município da Ciudad de Guatemala assim como no Parlamento Centroamericano. Fundado em julho de 2017, começou como um grupo de análise política e tem certa influência das carreiras do Ministério Público e o permanente problema da corrupção estrutural nos países latino-americanos.
Os grandes derrotados foram os institutos de pesquisas eleitorais e os meios de comunicação que as respaldaram. Não se cumpriram as expectativas das previsões nas urnas, que indicavam que o candidato da CABAL, Edmond Mulet, ficaria em segundo lugar, e em terceiro lugar o candidato da coligação unionista Valor Zury Ríos. Obviamente podemos concluir que houve um evidente bloqueio midiático do partido de centro-esquerda e seu candidato.
O voto nulo teve alto índice no primeiro turno, revelando a descrença e o descrédito da massa do eleitorado. Foi a opção preferida dos guatemaltecos que foram às urnas, que com 17,4% superou inclusive os resultados de Sandra Torres, que obteve quase 16% dos votos.
A composição majoritária do parlamento da Guatemala
Já no Congresso da República a composição ficou assim. O partido oficial, Vamos (do atual presidente Alejandro Giammattei), será a principal força no Congresso após obter 39 deputados.
A segunda força será a Unidade Nacional de Esperança (UNE, da candidata Sandra Torres) com 28 deputados, seguida do Movimento Semente que ocupará 23 cadeiras, de Bernardo Arévalo.
Esses partidos são seguidos pelo partido Cabal com 18 deputados e Visão com Valores (Viva) com 11.
A bancada unipessoal para o período 2024-2028 será a coalizão URNG-Winaq e Cambio, já que em Chiquimula o ex-prefeito Esduin Javier, conhecido como 3Kiebres, ganhou a deputação. Importante observar que a herança política da antiga frente guerrilheira da Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG). Criada em 1982 como um acordo de quatro partidos na forma de organizações político-militares e forças gurrilheiras, levou a guerra popular até os acordos de março de 1994. A insurgência se inicia em 1960, como uma resposta ao golpe de Estado financiado e organizado pela CIA, contra o governo eleito do general social-democrata (junho de 1954) Jacobo Arbenz.
Vale observar que esta lista ainda deve ser considerada preliminar até que as autoridades eleitorais façam as nomeações oficiais. Até a diplomação é provável que algumas candidaturas sejam impugnadas, em função da validade ou não das sessões eleitorais.
O país guatemalteco, mesmo com todos os problemas e o vazio de representação no período pós-insurgência, tem boas perspectivas de crescimento econômico.
O país tem uma economia em perspectiva de crescimento
Dados econômicos da Guatemala segundo o índice de complexidade econômica da Universidade de Harvard em linhas gerais, estão previstos anos contínuos de crescimento até 2030, elevando as possibilidades de investimento no país centro-americano.
“ECI (Índice de Complexidade Econômica) da Guatemala
A Guatemala é um país de renda média alta, classificada como a 75ª economia per capita mais rica entre 133 estudadas. Seus 16,9 milhões de habitantes têm um PIB per capita de $ 4.603 ($ 8.853 PPP; 2020). O crescimento do PIB per capita foi em média de 0,7% nos últimos cinco anos, acima das médias regionais. As projeções de crescimento para 2030 do Growth Lab prevêem um crescimento na Guatemala de 3,5% ao ano na próxima década, classificando-se na metade superior dos países globalmente.”
Segundo o Banco da Guatemala, a reativação econômica deveu-se à confiança dos empresários e ao consumo da população, para iniciar as atividades de forma quase normal, no primeiro trimestre de 2021 a economia cresceu 4,5%, e no segundo , 15,1%. A estrutura do mercado de trabalho na Guatemala é 70% informal e 30% formal. Ou seja, sete em cada 10 pessoas estão empregadas no setor informal, e três, no setor formal que possuem cobertura social.
De acordo com o Banco Mundual, a crise do COVID-19 elevou a incidência da pobreza para 59% em 2020. O aumento teria sido maior se não fosse pela rápida resposta do governo na expansão da rede de segurança social para mitigar as consequências sociais e econômicas da pandemia. A pobreza deverá cair para 55,2% em 2023 e 54,2% em 2024, enquanto a desigualdade permanecerá alta.
A taxa de desnutrição de crianças menores de cinco anos na Guatemala (47%) está entre as dez mais altas do mundo. Apesar dos esforços recentes do governo para priorizar as intervenções na primeira infância, a taxa de nanismo continua particularmente alta e pode piorar em um contexto de insegurança alimentar e preços elevados dos alimentos.
Apontamentos finais
A Guatemala é a maior economia da América Central – sendo superior que a do Panamá, mesmo com os dividendos do Canal Interoceânico – e está perto dos mercados consumidores do México, Estados Unidos e Canadá. Assim, todo e qualquer projeto produtivo é muito bem recebido no país, apesar da presença de redes neopentecostais com relações diretas ao sionismo. O catolicismo na Guatemala tem uma tradição na Teologia da Libertação, muito vinculada às lutas populares e as reivindicações camponesas. Já o evangelicalismo (e em especial o neopentecostalismo) é mais regressivo, pró Ocidente e apoiador de Israel.
As agências de cooperação do Japão, de Taiwan e do Apartheid Sionista são uma constante na pobreza urbana deste país. Já a cooperação da União Europeia é mais frequente na transformação econômica de áreas rurais – antigos territórios das frentes guerrilheiras – ampliando a vocação para o agro turismo.
Percebe-se que mesmo se a social-democracia sair vitoriosa na Guatemala, o descrédito institucional e a percepção de que o país vive sob tutela dos EUA e de poderes externos vai seguir. Não há um projeto nacional após a “pacificação” entre a repressão e a URNG e para tal, o desafio vai bem além da presença de uma nova força política nos poderes fáticos guatemaltecos.
*Militante socialista libertário de origem árabe-brasileira, cientista político, jornalista e professor de relações internacionais.
Fotos: Sandra Torres Casano (esq.) e Bernardo Arévalo (dir.) – Reprodução.
Artigo publicado originalmente no site MEMO (Monitor do Oriente Médio).
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.