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Opinião

Aprendendo a ser gaúcho

Aprendendo a ser gaúcho

Artigo por RED
24/09/2022 17:00 • Atualizado em 26/09/2022 11:37
Aprendendo a ser gaúcho

De ONDINA FACHEL LEAL*

Jacinto, a quem todos chamavam Jaci, era um menino franzino; seus olhos, grandes e negros, eram duas jabuticabas que nunca murchavam. O que ele não tinha de tamanho, tinha de esperteza. Era um observador atento e cheio de imaginação. Fitava aquela pradaria que parecia uma cena fixa e imutável e sempre descobria algo novo. Curioso com o mundo até onde seu olhar alcançava: a casinha do joão-de-barro, o ritmo do trote dos diferentes cavalos, o desenho das nuvens no céu e o nome das estrelas. Me disse que tinha dez anos ou, como dizem por lá, ele “ainda não tinha colocado o primeiro anel na guampa”.

Jaci, que brincava dizendo que era primo do Saci, era sobrinho de um dos peões da estância. Sua mãe e suas irmãs moravam no pueblito do lado uruguaio, onde havia escola e ele deveria frequentá-la. No ano anterior, aparecia na estância vez que outra, mas agora estava lá, cada vez com mais frequência. Me contou que não queria mais ir à escola, que lá só tinha meninas e uns gurizotes muy chiquitos. Perguntei o que aprendia na escola, ele disse “nada”. Seu nada soou tão definitivo que não dava espaço para argumentos. Mas disse que já sabia contar e escrever os números, e até lia, mas pouco. A escola, ele justificava, “era em castelhano, não ia ser de serventia”. Queria trabalhar com seu tio, e do lado de cá, referindo-se ao lado brasileiro. Aqui, disse ele, a leitura era um pouco diferente.

Disse que na escolinha do povoado se sentava junto à janela, pois o que tinha para aprender não estava lá dentro da sala. Doña Matilda vinha de Rivera para dar aula, mas não podia vir todo o dia, nem toda a semana, vinha vez ou outra, melhor então nem a esperar mais. E quando ele ia à escola, doña Matilda ralhava, pois dizia que ele não prestava atenção e só olhava para fora. Trocou-o de lugar na sala de aula, mas não resolveu, pois daí mesmo é que não queria mais entrar na sala. Perguntei o que tinha “lá fora”, e ele disse, como quem responde a uma pergunta sem sentido algum: “Tudo!” E continuou: “O céu, os campos, cavalos, as vacarias, a sanga…” Me contou que seu tio tinha lhe arrumado uma petiça xucra, ele estava conseguindo amansá-la, “amanunciando despacito”, já estavam muito aquerenciados e, cheio de orgulho, disse que estava quase pronto para montar solito o cavalo do tio.

À medida que a presença de Jacinto foi se tornando constante na estância, eu lhe dava folhas de papel e lápis coloridos, e lhe lia alguns trechos de histórias – ele duvidava que um causo pudesse sair das letras. Depois, começou até a achar que as letras podiam ter alguma serventia. Conversámos muito enquanto os peões estavam nas lidas. Em sua breve vida, ele ainda não tinha chegado naquele tempo em que os homens mudam a voz e, por ali naqueles pagos, passam a economizar palavras como se essas fossem preciosas e não se pudesse gastá-las com aqueles que não são seus iguais. Eu, por exemplo. Me encantavam suas perguntas sobre tudo aquilo que parecia o óbvio, mas que eu também não sabia responder, embora até tentasse: por que a ema corre tanto? Por que não se faz churrasco de ema? Como o joão-de-barro nasce sabendo fazer a sua casa? Por que tem ovelhas de cara preta? Essas coisas … os pequenos, fabulosos e inexplicáveis mistérios da vida.

Onde eu via a estância, a grande propriedade de produção pecuária, Jacinto via apenas a imensidão dos campos e um horizonte a ser descoberto. Os que nascem naqueles rincões, eu diria, nascem destituídos de tudo. Jacinto, ao contrário, acredita que nasceu para ser dono do mundo, e se domar a pequena égua, que será sua, com ela − ele está certo disso − dominará aquele mundo. Já tinha uma bombacha que sua mãe lhe dera quando completara os dez anos. Ganhou uma faca de outro peão e me disse que estava pronto para as lidas e que não voltaria mais para o povo. Estava pronto para o mundo.

Era inverno, o sol tinha preguiça de aparecer e os campos estavam brancos de geada. Eu ficava ali na sala principal da casa-grande, sentada em uma velha poltrona ao lado da lareira acessa, envolta no calor e no cheiro do angico que queimava, o mate quente ao meu lado. Livros para ler, rabiscava notas em meus cadernos. Assim como Jacinto na sala de aula, meu olhar fugia pela janela. Os homens já tinham saído para as lidas e o menino tinha ficado para trás.

Jacinto tinha amarrado a égua de pequena estatura no palanque, e  ambos, a égua e o menino, estavam concentrados em uma espécie de prosa onde um encarava o outro e se trocavam ruídos e murmúrios. Se encaravam, se tocavam, se falavam. Os movimentos de ambos eram ternos e iam compondo um bailado. O menino e o animal estavam descobrindo juntos como se comunicarem. Jacinto esticava-se todo, e seus ombros eretos aprendiam a portar a própria cabeça com o queixo erguido sustentado por puro garbo. O orgulho e a altivez que os homens carregavam na postura e em seus gestos por toda a sua vida eram também um aprendizado de tenra idade. Naquele suave embate da doma, os instrumentos de trabalho eram os próprios corpos. Os corpos do menino e do animal que iam sendo conformados juntos para os trabalhos de lidas com o gado. Saber “entender o pensar do potro”, a que se referiam no
processo de doma, era uma complexa linguagem corporal, de discretos sons e sinais. Como qualquer outra língua, tinha que ser aprendida desde muito cedo. No jogo da doma do potro e do menino, ambos recém desmamados, o
bicho ia domesticando-se, e o guri ia ficando bravo.

Observando pela janela a cena do menino e do potro em sua dança lúdica era como se eu estivesse lendo páginas de meus compêndios de antropologia: é preciso reconhecer que as técnicas corporais constituem verdadeiros sistemas ligados a todo o contexto cultural e laboral, totalmente imbricados um em outro. Pensava, ou melhor, eu lia, através da janela, uma escritura, que falava sobre o primado da razão prática, capaz de produzir um habitus como uma disposição incorporada em um agente em ação, que representa a forma como a cultura do grupo e a história pessoal moldam o corpo e a mente e, como resultado, moldam a ação social. E, para além disso, eu podia ver ali acima de tudo uma cena de volteios e floreios em uma bela coreografia.

Daqui a alguns anos, assim como os homens no galpão, Jacinto também contará que nasceu “no couro de um bagual” ou que “brotou naqueles campos”. Lá naquele pueblito de onde surgiu Jacinto, uma criança do sexo masculino já nasce com o mandado que lhe é dado por seus progenitores e por aquela cultura − ele deve se tornar um gaúcho −, e é assim que conquistará sua masculinidade, assim se tornará uma pessoa. Deverá seguir sua sina, trabalhar na estância de alguém. Como Jacinto, será iniciado nas lidas campeiras acompanhando a peonada, desempenhando pequenas tarefas, terá uma socialização intensa sobre como pastorear ovelhas, manejar o gado, cuidar dos cães ovelheiros e, sobretudo, aprenderá sobre cavalos e montaria. Ele estará pronto para montar um cavalo quando seus pés alcançarem os estribos, mas antes mesmo lhe arrumam um potro manso, para ele pegar gosto, e ele o monta em pelo. Lembrei que o capataz me dissera: “um piazito, se quiser ser um gaúcho de verdade, precisa aprender de muito cedo todas as lidas, até as da palavra”. A fala masculina também é única e requer aprendizado. Existe um consenso de que a pedagogia a respeito daquele mundo campeiro tem que se dar desde muito cedo, “para pegar jeito, para pegar querência pelo ofício”, é preciso crescer com os animais, “ter entendimento da gadaria” e “eguada”, “começa aprendendo com potro desmamado” e vai indo até saber “montar feito
gaúcho”. Se não, “solito, ou no meio do mulherio, pega modos de mulher, não aprende nem a falar feito homem”.

Sem terras, gado ou cavalos, o homem nascido por aqueles rincões vai se vincular a uma estância; se aprender as lidas do campo, encontrará seu lugar. No entanto, a mulher, que a história e a geografia esqueceram por lá, nas casas e nos corredores entre os campos cercados, tornar-se-á dependente de um homem; por sua vez, entre eles se estabelece uma relação de aliança, afeição, troca de favores, algum regalo, se possível, algum dinheiro, “porque essa é a lida da vida”. E porque é “essa é a lida da vida”, as meninas que ali nascem seguirão roteiros que dizem ser ânsias femininas, e os meninos logo saberão que são especiais porque são seres viris e aquele é um mundo de homens. Assim, o mundo social vai construindo corpos como realidades sexuadas e como depositários de visão e divisão sexualizantes. Ambos, meninos e meninas, seguem destinos sociais que são tomados por aquela cultura como “da natureza das coisas”. E vai se reproduzindo um estilo de vida e uma maneira de pensar o mundo e de nele se colocar.

Jacinto, com sua presença, com outras palavras e gestos, me ensinou tudo isso. Nunca até então eu tinha compreendido, com tanta clareza, a noção de gênero e a de produção social de corpos. Aprendi com ele que a escritura do mundo pode ser lida também pela janela.

*Antropóloga, autora de Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no pampa. Tomo Editorial, 2020.

Imagem em Pixabay.

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