Curtas
Após 10 anos de luta, Santa Cruz do Sul terá juizado da violência contra a Mulher
Após 10 anos de luta, Santa Cruz do Sul terá juizado da violência contra a Mulher
Coletivo de Gênero do MPA teve papel importante na conquista do serviço; espaço será inaugurado no dia 31 de março
“Levou 10 anos para essa conquista! Para as mulheres as conquistas são frutos de muita insistência, luta coletiva e paciência revolucionária. Que as lutas de hoje não levem mais 10 anos para vingar”, destacam as militantes do Coletivo de Gênero do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), sobre a instalação do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDF) na cidade de Santa Cruz do Sul (RS).
O evento de inauguração acontecerá na próxima sexta-feira (31), às 14h. Ao todo, o Rio Grande do Sul conta com 14 varas especializadas em violência doméstica. Quatro delas foram aprovados recentemente, nas cidades de Santa Cruz do Sul, Gravataí, Alvorada e Viamão.
O juiz e diretor do Fórum de Santa Cruz do Sul, André Luís de Moraes Pinto, também ressalta que a instalação do juizado é resultado de muita luta e “de um sonho de muita gente, de muitas cabeças e muitas mãos”. Segundo ele, “é fruto da necessidade, da dor, do sofrimento, do desrespeito, da menos-valia, da coisificação, da morte de tantas e tantas mulheres”, que “formou um caldo de irresignação, de revolta, levando à mobilização de movimentos de reivindicação popular”.
André Luís destaca a atuação do Coletivo de Gênero do MPA e a participação do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres. lembra que por inúmeras vezes as militantes se postaram diante do fórum gritando por justiça, pedindo socorro, clamando por serem ouvidas.
“Com a instalação deste juizado teremos, seguramente, um tratamento mais humanizado, mais capacitado, mais especializado e mais ágil do que já temos, a partir da possibilidade de dedicação exclusiva de uma magistrada e de servidoras e servidores da justiça”, afirma o juiz. “Que essa nova unidade judiciária possa contribuir para a paz em casa, na ambiência doméstica e familiar, nas ruas, nos mais diversos espaços públicos, no trabalho, na escola, na política, nos tribunais, na cidade e no campo. Em todos os lugares em que esteja uma mulher e suas demandas.”
Contribuição das mulheres do MPA
Para a camponesa agroecóloga, militante do MPA e integrante Coletivo de Gênero do movimento, Rosiéle Cristiane Ludtke, a instalação do juizado é muito importante para dar às vítimas a segurança necessária para tratar dos casos da maneira correta, com profissionais que entendam do assunto. “Foi uma luta muito grande e precisa ser comemorada”, salienta.
Conforme pontua a doutora em serviço social e assistente social Letícia Chimini, antes da instalação do juizado, os casos de violência contra as mulheres eram tratados na vara comum. Militante do MPA, Letícia destaca que um dos maiores problemas se referia ao indeferimento das medidas protetivas. “Em uma luta do 8 de março mobilizamos muito fortemente sobre essa questão e isso também mudou. A medida protetiva, muitas vezes, é a proteção necessária que salva uma mulher de um feminicídio, bem como a celeridade do julgamento do algoz, do criminoso, do agressor.”
Letícia explica que o movimento passou a incidir de forma mais pontual sobre demandas específicas que poderiam somar na preservação da vida das mulheres. “Assim começou todo um trabalho de conscientização e de formação com relação aos aparelhos e instituições que deveriam defender as mulheres, frisando que até uma mulher chegar a fazer um boletim de ocorrência e pedir uma medida protetiva, muita violência já se passou”, conta.
Entre inquéritos policiais com diligências complementares e processos já em andamento para apuração de crimes de violência doméstica, o juizado partirá com cerca de 2.500 procedimentos.
Para a assistente social, a instalação do Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher traz celeridade no atendimento e no julgamento, com profissionais e técnicos capacitados e sensíveis à desigualdade de gênero e suas formas violentas. “É nesse sentido que sentimos que contribuímos. Após 15 anos de Coletivo e várias avaliações e reflexões, compreendemos que aquelas primeiras práticas de comercialização e de trocas conjuntamente das várias atividades de denúncias contra as violências de gênero foram fundamentais e serviram para o acúmulo no processo de mobilização, de organização e de tensionamento para avançarmos na estrutura que defenda a vida das mulheres, bem como, conferem a unidade as mulheres do campo e cidade”, afirma.
Resgate de luta
A pauta da violência sempre andou conjuntamente com a do alimento, com feiras e distribuição de alimentos numa parceria com a Cooperativa de Catadores e Recicladores de Santa Cruz do Sul (CONCAT), pontua Letícia.
Conforme contextualiza, o MPA compreendeu a importância de ter um espaço específico de debate para as mulheres nos mais diversos temas que se relacionam com a desigualdade de gênero. “Esses espaços transcenderam para a totalidade do movimento, a fim de promover debates, reflexões e ações que contribuam para a superação da sociedade patriarcal, do machismo e de todas as formas recorrentes da opressão e exploração sobre classe trabalhadora. O Coletivo de Mulheres, hoje Coletivo de Gênero, nasce desse contexto em 2006.”
Ela explica que os primeiros trabalhos desenvolvidos relacionaram-se com o estudo das plantas medicinais, com criação de hortos e espirais medicinais, com a reflexão crítica sobre as monoculturas com o modelo de produção atual, o endividamento e o impacto desse modelo na vida de todas e todos. A partir daí, as trocas frequentes objetivaram a auto-organização das mulheres, que ocorreu concomitante aos atos de denúncias em várias regiões do RS: Vale do Rio Pardo, Celeiro, Médio e Alto Uruguai e Vale do Taquari.
“Nos atos de mobilização e resistência ocorreram as denúncias, mas também o anúncio do projeto societário pelo qual lutamos. A pauta da violência foi trazida, de forma espontânea, por uma companheira que se sentiu acolhida para fazer um relato do que havia passado em sua vida durante anos. A partir de então, essa pauta nunca mais saiu do Coletivo de Gênero do MPA”, conta.
De acordo com ela, as primeiras reflexões foram no sentido de identificar e desnaturalizar as várias expressões da violência, passadas ou vivenciadas através de situações enfrentadas por elas e/ou por suas mães, avós, bisavós. “Utilizamos várias metodologias: rodas de conversa, seminários com vários dias de encontro, intercalamos regiões e municípios, fazendo cada atividade em uma região do interior para ter acesso ao maior número de camponesas. A metodologia do Teatro do Oprimido foi muito útil e possibilitou tratarmos de assuntos sensíveis a todas, abordando as diferentes formas de violência: violência física, psicológica, patrimonial, estupro no casamento, até a questão do endividamento no sistema de integrados.”
A etapa seguinte consistiu em identificar as redes de proteção das mulheres nos vários municípios e fortalecer as denúncias junto às delegacias. De acordo com Letícia, quanto mais se dava visibilidade aos processos de denúncias, mais obstáculos foram aparecendo: delegacias que não tinham atendimento especializado para atender as denúncias de violências; o sinal de celular que não chegava no interior, em muitos lugares ainda não chega, para que a mulheres pudessem ligar 190 ou discar 100 em tempo de salvar suas vidas ou de familiares. Além de um percentual enorme de indeferimentos dos pedidos de medidas protetivas por parte dos juízes; a falta de delegacias da mulher; a falta de Casas de Acolhimento e Passagem para mulheres vítimas de violência e para seus filhos e filhas que necessitam se afastar do agressor para não morrerem.
“Por fim, o julgamento e prisão dos agressores que entrava na seara comum dos crimes e homicídios, invisibilizando o feminicídio ou levando um tempo que as mulheres que correm risco de morte não têm. Tudo isso causa uma subnotificação das violências por medo e por deficiência de uma rede que não as protege de fato”, aponta.
A vida das mulheres em Santa Cruz do Sul
Localizado no nordeste do estado, a 155 km de Porto Alegre, com uma população estimada em 132.271 pessoas, Santa Cruz do Sul, assim como o restante do país, não foge da realidade de agravamento da violência de gênero, sobretudo da doméstica. A cidade, no ano de 2022, registrou 367 casos de agressão, 182 de lesão corporal, 25 de estupro, dois feminicídios e uma tentativa. Em 2023 já foram registrados 70 casos de agressão, 40 de lesão corporal e três estupros, de acordo com o acordo o Observatório Estadual da Secretaria Estadual de Segurança Pública do RS (SSP-RS).
“Na região de Santa Cruz ocorrem muitos feminicídios, muitos casos de violência doméstica e outros tipos de violência. As mulheres da roça também são afetadas pela falta de acesso a informações, falta de uma rede de apoio, sinal de internet e telefone para denunciar a violência”, expõe Rosiéle .
Neste sentido, complementa a camponesa, o coletivo fez muitas lutas junto com o Conselho dos Direitos da Mulher e outras entidades para passar as informações de como a denuncia pode ser feita. “O coletivo de gênero do MPA teve participação no Conselho Estadual dos Direitos da Mulher. Esses espaços de participação, esses grupos e coletivos são extremamente importantes como espaço de acolhimento às mulheres vítimas de violência e também local onde as mulheres se sentem seguras para falar e denunciar as violências que são vítimas”.
Na avaliação do magistrado André, a cultura do machismo, o chicote do patriarcado e a misoginia seguem resistindo e, assim, provocando ameaças, lesões físicas e psicológicas, e mortes de dezenas de mulheres todos os meses. “Nos últimos anos, não somente em Santa Cruz do Sul, sente-se um crescimento dessa forma de violência”, comenta, destacando a conjunção de dois fatores.
Primeiro, a convivência doméstica intensificada pelas necessárias medidas de contenção da disseminação do coronavírus. Segundo, a política armamentista e o discurso de ódio adotados pelo governo federal no período 2019-2022, que “potencializou, autorizou comportamentos e atitudes violentas no ambiente doméstico e fora dele contra mulheres, adolescentes, crianças, pessoas negras e membras das comunidades indígena, quilombola e LGBTQI+”
Para o juiz, esses fatores, “somados à possessividade e ao ciúmes das masculinidade tóxica, são a receita perfeita para violências seguidas de tragédias”.
Juizados
O 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Alegre foi instalado em abril de 2008. A unidade conta com oito servidores e seis estagiários; já o Regime de Exceção dispõe de uma assessora e duas estagiárias. Como titular do 1º Juizado está a Juíza Madgéli Frantz Machado e, no Regime de Exceção, a Juíza Márcia Kern.
Além da capital gaúcha, há juizados nas cidades de Canoas, Caxias do Sul, Pelotas, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Passo Fundo, Rio Grande e Santa Maria.
Matéria publicada originalmente pelo Brasil de Fato.
Foto: Coletivo de Gênero do MPA
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