Opinião
Antes do amanhecer a escuridão aumenta
Antes do amanhecer a escuridão aumenta
De SOLON SALDANHA*
Ouvi inúmeras vezes a afirmação de que o horário no qual as noites são mais escuras é aquele bem próximo do amanhecer. Não sei se isso é verdade. Também não saberia a quem perguntar ou se existe algum instrumento, um “escurômetro”, que possa aferir isso. Mas, vou partir do pressuposto que sim, que isso de fato ocorra, para fundamentar uma análise não muito lógica sobre o resultado do primeiro turno das eleições e para projetar algo para o segundo.
Como tudo na vida, a perspectiva pela qual se olha ou aborda todas as coisas, provoca mudanças significativas no resultado. Aquela coisa do copo meio cheio ou meio vazio. Em termos de disputa pela presidência da República, a que mais chama a atenção e centraliza as discussões, Lula chegou muito perto de confirmar o que algumas pesquisas eleitorais apontavam como plausível, ganhando direto. Não deu. Faltaram poucos votos, percentualmente falando. Algo muito perto de 1,5% – não estou sendo exato porque comecei a escrever antes que a apuração estivesse concluída (quase 99%) – e, assim, o segundo turno está confirmado.
Claro que com isso foi dada uma boa chance ao azar, se bem que jamais até hoje o vencedor dessa primeira volta foi derrotado na segunda. O que não deverá acontecer agora, uma vez que descontar os cerca de 6,14 milhões de votos não será tarefa nada fácil nem mesmo para Bolsonaro e suas “magias”. Haja oração em templo pentecostal; haja fake news sendo produzidas e difundidas pelo Gabinete do Ódio; haja distribuição de benesses com dinheiro público. Isso é mais de um milhão e meio por semana. Mais de 219 mil votos por dia. O que explica a expressão de desalento do mi(n)to, em entrevistas dadas quando do encerramento da cobertura televisiva.
Fato positivo foi que a votação se deu de forma ordeira. Os fanáticos da extrema-direita pareciam estar de focinheira. Poucos que ousaram sair armados de casa no domingo, foram detidos pela polícia. O que não significa muita coisa, porque agora terão mais quatro semanas para se organizar e promover desordens – isso soa como contraditório, na expressão, mas não é na lógica doentia de quem nega a segurança das urnas eletrônicas, sem prova alguma, sem quaisquer evidências em décadas de uso e tem a violência como um dos princípios norteadores. Até porque esta derrota de agora ainda não é definitiva e eles vão se agarrar no fio de esperança e na sobrevida que ganharam. Não irão, evidentemente, entregar o osso sem luta.
Mas, me deixem voltar para a escuridão que aumentou. A gente vê a relação de parlamentares que foram eleitos e se assusta. O próximo Congresso terá uma composição ainda mais sinistra, conservadora e obscura. Chegaram lá, por exemplo, um ex-Ministro da Saúde que combateu a saúde pública e tentou de todas as formas desestimular a vacinação dos brasileiros em plena pandemia; uma ex-Ministra da Agricultura que apoia o uso indiscriminado de veneno nas plantações, contaminando o solo e comprometendo o futuro; uma ex-Ministra dos Direitos Humanos que se lixa para as pessoas e tem alucinações “goiabeirescas”; um ex-Ministro do Meio Ambiente que esteve envolvido em desmatamento ilegal e contrabando de madeira; e um ex-Ministro da Ciência e Tecnologia que arrasou com a pesquisa e a ciência nacionais.
Se vamos citar nomes diretamente, foram eleitas pessoas do baixíssimo nível de Sérgio Moro, sua digníssima “conja” Rosângela e o parceiro de falcatruas na Lava Jato, Deltan Dallagnol; o astronauta que nunca ousou desmentir ser a terra plana, Marcos Pontes; o vice-presidente Hamilton Mourão, que mora no Rio de Janeiro, flamenguista doente e de fala chiada, chegando ao Senado via Rio Grande do Sul; os indiretamente citados antes, Eduardo Pazuello, Tereza Cristina, Damares Alves e Ricardo Salles. Na lista ainda podem ser incluídos a nulidade do Mário Frias e reconduzidos, como Arthur Lira, Osmar Terra, Magno Malta e Zero-Três. Eu poderia incluir vários outros ainda, mas a contaminação do texto já ultrapassou limites toleráveis.
A escuridão, que já é grande, tende a aumentar. Entretanto, toda noite, por mais tenebrosa, termina sendo vencida pelo raiar do sol. Ontem mesmo minha filha mais uma vez me ensinou como viver. Ela fez um rol com os nomes que se orgulha de ver terem sido eleitos. Pessoas que, com a sua presença, irão qualificar as bancadas, mantendo acesa a esperança. Ou seja, a Bibiana preferiu ver o amanhecer ao invés de se preocupar com a escassez de luz. Ela mora em São Paulo há algum tempo, então listou eleitos de lá, mas sabemos ambos que existe uma boa colheita em muitos Estados.
Guilherme Boulos é professor, filósofo, psicanalista, escritor e ativista; Erika Hilton, que fora a vereadora mais votada na capital paulista em 2020, se tornou a primeira mulher trans eleita deputada federal por aquele Estado – ontem também conseguiu isso a mineira Duda Salabert; a historiadora, professora e ambientalista Marina Silva voltou à evidência, assim como a inquebrantável assistente social Luíza Erundina; a feminista Sâmia Bomfim manteve sua cadeira; e a enfermeira e líder indígena Sônia Guajajara também chegou lá com pioneirismo – com ela também entrou Célia Xakriabá, das Minas Gerais. Coloquei aqui os nomes citados por ordem decrescente dos votos recebidos como sendo o único critério. Terão muito trabalho, mas nunca lhes faltou garra. Basta que se olhe suas trajetórias para que isso seja confirmado.
Voltemos agora ao resultado da votação para presidente. Primeiro, os institutos de pesquisa acertaram os números alcançados por Lula. Mas subestimaram os de Bolsonaro, que foi além do esperado por eles. A razão mais provável pode ser decorrência do fenômeno conhecido como “voto envergonhado”. Enquanto a imensa maioria da esquerda manteve evidente o orgulho em votar no ex-presidente, o atual tem uma parcela significativa de seguidores que parecem constrangidos em admitir isso. Talvez porque no fundo admitam não existir explicação para a própria escolha. Sabem que o escolhido é machista, despreocupado com pobres, negros, índios e mulheres, misógino e pouco trabalha, mas não mudam seu voto. Talvez porque se identifiquem com uma ou mais dessas opiniões e características. Assim, esses negam, quando consultados, mas confirmam nas urnas. As eletrônicas aquelas que a extrema-direita finge serem inconfiáveis. Esse número, que não se pode aferir com exatidão, se soma ao dos fanáticos, que se constituem por fascistas e pentecostais, basicamente.
É inegável que Luiz Inácio Lula da Silva segue sendo o favorito. O que não lhe assegura vitória, como já citei antes, mas ter a matemática ao lado é sempre melhor. Convém lembrar que nas duas vezes anteriores nas quais foi eleito presidente isso também foi alcançado apenas no segundo turno. No primeiro ele recebeu 46,4% dos votos em 2002 e 48,6% em 2006. Desempenhos semelhantes ao de agora (48,43% faltando contagem insignificante). Porém, mais difícil do que confirmar outra vez a vitória será governar. O contingente adversário, paradoxalmente, se agigantou na insignificância dos seus nomes. E no gigantismo da sua evidente falta de escrúpulos. A cabeça da serpente será cortada dia 30, mas isso será insuficiente. Mesmo o tumor sendo agora extirpado, a doença tem metástase seriamente espalhada pelo tecido social. A extrema-direita está como nunca profunda, arraigada e sem qualquer pudor. O tratamento vai ser demorado e doloroso.
*Jornalista e blogueiro.
Foto de Lula nos braços do povo, retirada do site do Partido dos Trabalhadores (PT).
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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