Opinião
Angelus Novus do fascismo brasileiro
Angelus Novus do fascismo brasileiro
De LUIZ EDUARDO SOARES*
Entre tantas imagens perturbadoras em que naufragaram as últimas ilusões de que se aplicam à política os princípios de realidade e racionalidade, destaca-se o homem abraçado ao para-brisa do caminhão veloz, que segue seu caminho. As primeiras interpretações que circularam fazem todo sentido: o bolsonarista que participava da obstrução de estradas, em defesa de intervenção militar para impedir a posse de Lula, oferecia ao mundo o patético espetáculo de sua impotência, procurando deter o caminhão, cujo movimento ininterrupto representaria a marcha inexorável da história e do progresso. Leitura interessante e, em parte, bastante fiel ao que se vê, mas talvez excessivamente dependente de um imaginário tão irrealista quanto o delírio golpista do triste personagem. Tão irrealista quanto e, ousaria dizer, mais íntimo de seu regime de afetos e valores (como sua contrapartida) do que talvez inicialmente se supusesse.
Eis o que quero dizer: o homem que se agarrou ao caminhão para detê-lo provavelmente acredita (ou poderia perfeitamente acreditar) que a história é um caminho unívoco e inevitável que segue sempre adiante, com ímpeto superior à força individual. Talvez ele não dispute a fé no progresso e muito menos creia em sua capacidade de frear os avatares mecânicos do futuro. Sua performance talvez apenas sinalize, inconscientemente, que é preciso manter os olhos fixos no passado, quando se avança, porque o futuro desejável é o retorno à origem perdida, a restauração da unidade fraturada, a celebração da unidade matricial com o Espírito. Telos, nesses termos, seria a projeção de arché, a corrida ao futuro corresponderia à aproximação crescente com o nascimento de tudo, à reedição da mais remota ancestralidade, à fusão com a divindade, à negação da morte e do pecado.
Enquanto a versão popular do determinismo materialista supõe que a história esteja condenada ao progresso – e nenhum agente individual interceptará o motor da evolução-, a fábula regressiva, que atrai tantas releituras do fascismo, embora recuse a modernidade (a laicidade política, estética, ética e epistêmica), também adere à crença na história como movimento, precipitado por forças que transcendem os indivíduos. O pequeno homem pendurado na boleia, exemplar bizarro do fascismo tropical, talvez não esteja tentando parar o motor da história, mas proclamar, desesperadamente, que é para a origem em fuga que se deve olhar, que dela é que provém a direção justa, ela é que devemos perseguir: indo adiante com os olhos postos na raiz. Raiz, esse topos mitológico que refigura o princípio para ditar princípios.
Permitam-me a citação óbvia de Benjamin:
” Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.” (Walter Benjamin, “Obras Escolhidas”, tradução: Sérgio Paulo Rouanet, 1994 – 7.ed. Editora Brasiliense. p.226.)
Essa bela e célebre passagem nos oferece um terceiro ponto de vista, que se afasta simultaneamente do evolucionismo mecanicista e de seu espelho reacionário, o obscurantismo regressivo. Benjamin ilumina a sombra ruinosa que acompanha o processo histórico. Contempla sem ilusões e condescendência os destroços que se acumulam, rechaçando também a melancólica tentação romântica da nostalgia. Sua afinidade com Marx permanecerá apenas como a aposta que resta numa hipótese improvável, mas vital, sublimando a redenção prometida pela teleologia hegeliana (judaico-cristã).
Por que essa temática – apropriações populares da filosofia da história- é relevante? Porque tendem a se elevar as tensões em torno de situações limite, as quais, por sua vez, tendem a interpelar com mais intensidade afetos, valores, crenças e modos de comunicação. Interpelados com radicalidade, mobilizarão cosmologias matriciais, que articulam -e são articuladas por- perspectivas sobre a história, solo comum das vias comuns.
Identifico como situações limite o cataclismo climático, a hiperpolitização e a simultânea e contraditória despolitização da economia, no capitalismo transnacional contemporâneo, e o redimensionamento da geopolítica, no quadro da crise de hegemonia estadunidense.
Na medida em que o capitalismo neoliberal perde o pudor e revela sua alma fascista, reduz-se o campo de opções cosmológicas e de linguagens ideológicas para os interesses, assim como funcionalidades provisórias atraentes. Os atores críticos tendem a se afastar dos modelos ideológicos regidos pelo capital e do universo de crenças e valores que lhe são afins. Por outro lado, as adesões conservadoras tenderão à radicalidade, clamando paradoxalmente por revoluções restauradoras, as quais provavelmente encontrarão em mitologias arcaizantes as versões da origem mais aptas a servir de guia para o futuro idealizado.
Paralelamente, as sociedades terão de lidar com o imenso desafio objetivo: a economia se hiperpolitiza – é preciso decidir quem se salva, pois o crescimento incessante do consumo não será mais viável, por motivos ambientais, isto é, materiais-, por isso cada vez menos o destino da própria economia poderá ser entregue ao mercado, qualquer que seja sua acepção; por outro lado, a economia se despolitiza, em âmbito nacional, porque as decisões chave pertencerão cada vez menos às instituições políticas soberanas e democráticas: serão capturadas e monopolizadas pelos grandes conglomerados corporativos, protagonistas do capital transnacional ‘financeirizado’. Essas definições políticas globais chegarão às sociedades como fatos indiscutíveis e naturais -cabendo à resistência anticapitalista trazer à luz o jogo em curso. Como a arena dos principais processos decisórios sobre quem ganha e quem perde, na economia, será -em boa parte, já é transnacional, e como os limites ambientais estarão sempre sujeitos a cálculos conflitantes e interessados de agentes assimetricamente distribuídos na geografia e nas redes econômicas, a última instância se deslocará para a geopolítica, ou seja, a força. Em outras palavras, caminhamos para mais política, menos economia, e, no âmbito político, mais geopolítica do que democracia e participação, mais militarização ‘tecnologizada’ (ou tecnologização militarizada) e menos legitimidade.
Na esfera intersubjetiva (indissociável dos fluxos de comunicação virtual) e nas lutas políticas domésticas, dois fenômenos inescapáveis terão de ser metabolizados nas constelações nativas: o antropoceno é o fator universalizante por excelência, quaisquer que sejam as inserções diferenciadas na cadeia de responsabilidade pelo cataclismo climático; e a geopolítica não será mais o desdobramento suplementar da política doméstica, mas seu pressuposto. A problemática da força se imporá à reflexão (mais do que já o fez), deslocando-se para o centro da disputa ideológico-política.
Moral da história: daqui para a frente, independentemente do papel que Bolsonaro venha a desempenhar, o fascismo brasileiro, que sempre existiu, saiu definitivamente do armário e o conflito teológico-estético, cosmológico-ideológico (a que não são alheias as lutas antirracistas e feministas, entre outras), não poderá continuar a ser tratado como um simples apêndice das questões políticas centrais, apêndice que importa apenas aos especialistas e se reduz ao bestiário de frivolidades folclóricas de mentes perturbadas.
*Antropólogo, cientista político e escritor. Considerado como um dos mais importantes especialistas em segurança pública do Brasil. Foi secretário nacional de segurança pública e coordenador de segurança, justiça e cidadania do Estado do RJ.
Imagem – reprodução da internet.
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