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Opinião

Águas de março

Águas de março

Artigo por RED
04/03/2024 05:25 • Atualizado em 05/03/2024 21:58
Águas de março

De SOLON SALDANHA*

Março de 1972. Chove torrencialmente sobre a pequena localidade de Poço Fundo, distante cerca de 40 minutos de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Nela, um dos tantos sítios existentes passava por reformas, estando a estrada de acesso naquele período bastante prejudicada. Mas, isso não impedia que ele servisse de refúgio para Tom Jobim, que gostava inclusive de compor naquele retiro. Era o que fazia, nesta ocasião específica. Segundo ele próprio relatou no folheto que acompanhava o disco onde primeiro teve aquela música gravada, sua inspiração foi o poema O Caçador de Esmeraldas, de Olavo Bilac. Mas, é difícil de acreditar que a questão climática não tenha ainda se somado ao nascimento de Águas de Março. Afinal, se torna fácil perceber que tudo era pau, pedra e o caminho era mesmo o fim. Nem que fosse da picada.

Sua esposa era Thereza Hermanny, que confirmou que esta verdadeira obra-prima surgiu depois de um dia muito cansativo. Ela foi testemunha ocular da história. Tom trabalhava na composição de Matita Perê, que viria a sair depois, em parceria com Paulo César Pinheiro – nesta há versos um tanto parecidos, em temática: /Tudo terminava/ No caminho velho onde a lama trava. E Bilac, no poema citado, fala de um momento /Quando a terra, em sede requeimada, /Bebera longamente as águas da estação. E ele, mais adiante, faz outras referências, como a que lembra virem /…águas crespas, galgando abismos e barrancos.

Inegável que o talento todo de Bilac neste caso exalta a história de quem foi um dos bandeirantes mais cruéis, responsável pela matança de índios e dono de vasto plantel – era esse mesmo o termo usado, como se eles fossem animais – de escravos. De família abastada e ele mesmo um latifundiário, Fernão Dias Paes Leme ocupa lugar de importância no que se refere a ter desbravado parte de nosso território. E um dos postos mais vergonhosos da nossa história, no que se refere a crimes contra os povos originários e a dignidade humana. Quanto à música de Tom, essa tem uma suavidade e uma profunda ligação com a terra. Nela a água é vida cotidiana, preenchendo acontecimentos tão banais que se tornam inigualáveis em significado. É lírio nascendo do lodo (**).

Hoje estamos outra vez abrindo um mês de março. Simbolicamente, as nossas “pétalas de esperança” podem outra vez serem expostas. Como acontece em toda abertura, em todo recomeço. Mesmo que agora se tenha de tal forma trabalhado para destruir a natureza que as águas de março não marquem mais a proximidade do final de verão algum. Estão elas descontroladas, trazendo destruição pelo esforço do meio ambiente em reencontrar o equilíbrio do qual o humano o tem afastado.

Tom é a própria imagem do comedimento como postura. É tão complexo o que ele produz que consegue nos enganar, parecendo simples. Ouvir com atenção Águas de Março é mergulhar nesse mundo. A música traz sonoridade acompanhada de cores, de sensações táteis, de uma sutil percepção de odores. Ela é múltipla e nos invade por diversos sentidos. Nos descobrimos lá naquele sítio onde nunca estivemos. Ganhamos fragmentos de convívio com a vida interiorana, sem que nos afastemos um metro sequer dos grandes centros onde hoje estamos confinados. Enfim, uma promessa para nossos corações, que nos alcança também e profundamente os espíritos.


bônus do autor vem com duas gravações da mesma música que esse texto busca homenagear, juntamente com o seu autor. Na primeira temos Águas de Março nas vozes de Elis Regina e Tom Jobim, sendo ainda do ano de 1974. Na segunda, Alliye de Oliveira nos brinda com primorosa interpretação feita em francês.


*Jornalista e blogueiro. Apresentador do programa Espaço Plural – Debates e Entrevistas, da RED.

(**) O lírio d’água tem suas raízes no lodo existente em lagos e lagoas. É a flor de lótus, que se fecha durante a noite, mergulhando nas águas. Só que essa reclusão voluntária termina pouco antes do amanhecer, quando ela ressurge e se abre para a vida, outra vez na superfície.

Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.

Imagem em Pixabay.

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