Opinião
A uberização das pesquisas eleitorais
A uberização das pesquisas eleitorais
De FERNANDO HORTA*
Vivemos uma época das precarizações. A perspectiva da concentração desenfreada de renda coloca a relação trabalho vs. capital numa situação tremendamente desfavorável ao trabalho. Em realidade, os indicadores de concentração de renda em 2022 estão piores do que estavam no final do século XIX e que, como se sabe, são uma das causas apontadas para o ciclo de guerras desencadeadas a partir de 1914. A população, muitas vezes sem perceber a economia como um ciclo (entre consumo e gasto) acaba acreditando que precarizar o trabalho dos outros lhe é benéfico. Me recordo da felicidade da classe média com o surgimento da Uber e suas famosas “balinhas e água” no carro de aluguel. De 2009 para cá já está claro o risco de abuso sexual que as mulheres correm, a falta de controle de segurança sobre os veículos utilizados e mesmo da carga de trabalho a que os motoristas são expostos para conseguirem minimamente sobreviver.
Esse caminho de precarização dos trabalhos parecia fazer feliz uma classe média que sempre se viu diferente dos “trabalhadores braçais”. Os “White collars” acreditavam que o trabalho intelectual estava livre desta precarização. A precarização hoje, contudo, atinge médicos e advogados, por exemplo. As consultas feitas por “aplicativos” estão na mira dos órgãos de classe de algumas profissões, e mesmo professores perceberam o risco desse fenômeno com a possibilidade de “aulas à distância” ou “pré-gravadas” e “em plataformas”. Enquanto a precarização se revestia apenas de “terceirização” e atingia os trabalhos mais baratos, as vidas prejudicadas pareciam não importar às elites políticas, e mais dessas políticas foram sendo implementadas.
Em 2022, contudo, este fenômeno atingiu um dos centros pulsantes da política: as eleições.
A discussão sobre a pertinência ou não da divulgação de pesquisas de intenção de votos é antiga, assim como é antigo também o estudo da influência destas pesquisas no comportamento do eleitorado. O “voto útil” é um produto totalmente derivado das pesquisas eleitorais, por exemplo, mas não o único. No caso do Brasil de Bolsonaro, a violência parece ser também variável dependente do resultado apontado pelas pesquisas. A informação ali contida é, portanto, extremamente importante não apenas por motivos eleitorais, mas também sociais, políticos e econômicos.
Uma rápida olhada no site do TSE em que todas as pesquisas precisam ser depositadas e o problema aparece. Apenas em 2022, e apenas para presidente, temos 747 pesquisas de intenção de votos cadastradas. Os valores cobrados variam de sete mil reais a mais de meio milhão de reais. E a amostra – para presidente – varia de 350 pessoas até mais de 21 mil entrevistados por pesquisa.
Nos meus tempos de bolsista de iniciação científica na UFRGS nós aprendíamos na prática o que era aplicar uma pesquisa. O trabalho que dava para aprender a técnica correta evitando indução. O cuidado que se tinha com direcionamento de perguntas, com os vieses de seleção de participantes, com as taxas de retorno dos questionários e também o problema que dava a interpretação dos dados. Nas pós-graduações aprendemos as armadilhas dos tratamentos estatísticos, o cuidado com a heurística e toda sorte de questionamento epistemológico que norteava o dado colhido.
Analisando as metodologias e os dados nos relatórios das pesquisas a situação fica ainda mais preocupante. Desde “meta-estudos” (com agregação temerária de dados de outras pesquisas) até deformações nas amostras difíceis de explicar são encontrados. Isso quando os relatórios estão disponíveis, porque uma parcela significativa das pesquisas não é acompanhada dos documentos mínimos de distribuição da amostra e dos critérios utilizados, por exemplo.
Uma pesquisa em especial, dizia trazer dados de mais de 21 mil entrevistados, mas a pesquisa, de fato, tinha colhido pouco mais de 3500 questionários. O “resto” eram “dados agregados” de outras pesquisas já realizadas, e que sequer haviam sido feitas pelo mesmo instituto. A panaceia de dados e tratamentos estatísticos é realmente impressionante e preocupante.
O valor de um real por questionário era o normal pago pelas pós-graduações para pesquisas com recorte regional, no final dos anos 90 e início dos anos 2000. Aplicando-se apenas a inflação, o valor atual pelo questionário estaria em torno de 10 reais. Uma pesquisa com 3500 entrevistados, com as taxas de retorno e os questionários que não passam nos critérios qualidade devem ter custado algo em torno de 40 a 45 mil reais para ser feita. Isso sem outros custos de produção e aplicação, e sem falar nos custos de projeto, tratamento, controle e apresentação dos dados.
É preciso pensar na qualidade dos dados que estão sendo apresentados para a sociedade brasileira. Especialmente em momentos sensíveis para a democracia, é preciso que a própria sociedade exija uma postura mais crítica por parte do TSE. Não é possível deixar ao “livre mercado” a regulação dos fluxos e legitimidade da informação eleitoral que será dispersada, consumida e utilizada como arma discursiva antes da eleição.
Se a precarização dos “carros de aluguel” aumentou o risco da violência contra a mulher, a uberização das pesquisas tem um efeito ainda mais deletério. Não apenas os abusadores também parecem descontrolados, mas a informação por eles deformada vai implicar na exclusão de determinadas pautas a que o Estado deveria cuidar e legislar. Por fim, o “mercado” percebeu que é bem mais barato agir um passo antes da discussão legislativa sobre determinados temas. Não basta mais apenas construir bancadas “da bala” ou “do boi”. Pode-se agora precarizar a própria informação eleitoral que ganha contornos quase-negacionistas a serviço de quem melhor pagar. E o risco à sociedade é potencializado.
*Historiador (UFRGS), mestre e doutor em Relações Internacionais (UnB).
Imagem em Pixabay.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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