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A saga dos Paiva

A saga dos Paiva

Cultura por RED
09/09/2024 15:30 • Atualizado em 09/09/2024 16:48
A saga dos Paiva

Por NUBIA SILVEIRA*

Em Ainda Estou Aqui (Alfaguara, 2015), Marcelo Rubens Paiva fala sobre o desaparecimento do pai, o deputado Rubens Paiva, após ser preso pela ditadura, em 1971. E sobre a despedida em vida de sua mãe, a advogada e ativista Eunice Paiva, vítima da doença de Alzheimer (faleceu aos 86 anos, em 13 de dezembro de 2018). Marcelo, quando da publicação do livro, revelou que se assustou com o rumo tomado pelos protestos de 2013. Eles começaram reclamando do preço das passagens do transporte coletivo e culminaram pedindo a volta da ditadura. O susto foi tamanho que resolveu, então, escrever sobre o período vivido pelos brasileiros de 1964 a 1985, mostrar o que é uma ditadura e contar a saga vivida por sua família.

O livro virou filme premiado, na semana passada, no Festival de Veneza, como o melhor roteiro da mostra. Ao receber o Prêmio Osella, os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lourega dedicaram a premiação à família de Rubens Paiva. “Nós gostaríamos de dedicar este prêmio à Eunice e a toda família Paiva, que nos deixaram entrar em suas vidas e na sua casa e nos permitiram contar a sua história. Não só a história da família, mas a história do Brasil também.”

Ainda Estou Aqui – Divulgação

Walter Salles, amigo de Marcelo, diretor de Ainda Estou Aqui, recriou fielmente a casa em que os Paiva viviam, no Rio de Janeiro, quando o deputado Rubens Paiva foi preso pela ditadura. O autor do livro contou, em sua coluna, no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, que temia visitar o local das filmagens. Quando foi, emocionou-se. Reencontrou a casa em que morou até os oito anos, quando seu pai desapareceu e a vida familiar mudou totalmente.

Marcelo Rubens Paiva, ao lançar o livro, afirmou que as revelações da Comissão Nacional da Verdade incentivaram-no a escrever sobre a morte e as torturas sofridas pelo pai. Criada em 18 de novembro de 2011, no governo de Dilma Rousseff, a Comissão Nacional e as estaduais da Verdade investigaram as violações de direitos humanos, ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Marcelo tinha apenas cinco anos, quando o deputado federal pelo PTB foi levado de casa, no Rio de Janeiro, por agentes da ditadura para nunca mais ser visto. Eunice e a filha mais velha também foram presas e interrogadas sobre as ações do parlamentar, consideradas subversivas.

O medo, a dúvida e o ressentimento por ter crescido sem pai e com a mãe menos dedicada aos filhos e mais à defesa dos presos políticos, à luta pela anistia e ao fim da ditadura dão ao texto um tom de acerto de contas. “Não sei o que passava pela cabeça do meu pai”, diz. “Estava na cara que deveríamos ter partido para o exílio.” O filho se pergunta: “Por que ele arrastou tanto a nossa partida? Arrogância? Confiança? Dever ideológico?” A mensagem passada é a de que a família não desculpa o pai por não ter seguido o exemplo do amigo Fernando Gasparian, que se autoexilou. “Meu pai perdeu o timing. Onipotência e teimosia, que minha mãe nunca perdoou.”

As emoções do autor mexem com as nossas. Nos mostra como um governo ditatorial age, destruindo seus adversários, vistos como inimigos internos. Para mim, no entanto, o que mais me tocou foi o relato do sofrimento de Eunice com o Alzheimer. O título do livro é a frase que ela sempre dizia, nos instantes em que a memória voltava. No momento de sua interdição, definida pelos filhos em conjunto com a mãe, antes que a doença se agravasse, o tabelião lhe perguntou se sabia o que estava fazendo. Ela respondeu que sim. Era a morte civil de uma advogada competente e reconhecida nacionalmente.

Apesar de esquecer, com rapidez, se havia comido ou não, Eunice sempre reconheceu o neto, de um ano e pouco, filho de Marcelo. A cena que mais me marcou foi a de Eunice, já no último estágio da doença, assistindo ao noticiário, com o neto ao lado. Ela chama a atenção do filho:
“- Olha, olha, olha!

“Na TV, um noticiário sobre Rubens Paiva. Neste 2014, apareciam todos os dias notícias sobre o caso Rubens Paiva. Todos os dias, novidades. Ela sentadinha inerte na cadeira de rodas. Aparecem fotos dele de arquivo na tela. Era a foto do seu ex-marido, era o nome dele, falavam dele, desvendavam segredos sobre a morte dele:
“- Olha, olha, olha!

“Ela olhava. Com lágrimas. Ouviu a notícia. Começou a dizer baixinho:
“- Tadinho, tadinho, tadinho…”

*Nubia Silveira é jornalista.

Capa: Foto da capa do livro Ainda Estou Aqui – Divulgação

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