Opinião
A “PRIVATARIA” ATACA O OURO AZUL – O ataque ao interesse popular nos processos de privatização do abastecimento de água
A “PRIVATARIA” ATACA O OURO AZUL – O ataque ao interesse popular nos processos de privatização do abastecimento de água
Por WALTER MORALES ARAGÃO*
“As pessoas estão sofrendo e estão morrendo. Os
nossos ecossistemas estão morrendo. Nós estamos
vivenciando o começo de uma extinção em massa.
E tudo o que vocês fazem é falar de dinheiro e de
contos de fada sobre um crescimento econômico
eterno. Como vocês se atrevem? Não os
perdoaremos.” Greta Thunberg.
A “privataria” é um termo polemista e crítico desenvolvido nos anos 90 para criticar as entregas quase gratuitas de bens públicos – sobretudo empresas estatais – aos capitalistas brasileiros e estrangeiros pelos governos tucanos, na esfera federal, e em São Paulo, na estadual. Destacou-se também naquele afã o Rio Grande do Sul do governo de Antônio Britto. E hoje os políticos mais defensores dos interesses capitalistas apresentam, outra vez, uma redobrada fúria privatista que é pública e notória.
Veja-se, para contextualizar, que o sistema capitalista mundial está imerso em crises: guerras na Europa, falências bancárias nos EUA, limitações climáticas à sua crença no crescimento econômico infinito, etc. E não se pode
esquecer que a finalidade principal do Estado no capitalismo é, sobretudo, defender o capitalismo, conforme demonstraram Offe¹, Poulantzas² e outros estudiosos. Ocorre, dada a estrutura sistêmica, que as contradições da
dominação de classes obrigam os dominantes a simularem, de igual modo como foi no passado, que algum interesse geral está sendo atendido nas privatizações. E que não seria o caso – apesar das evidências – de mais um sacrifício de bens públicos à fome insaciável de lucros dos capitalistas. O cenário da situação econômica e política explica em grande parte, portanto, o desespero dos políticos antipopulares em entregar mais áreas de serviços públicos à extração de lucros. E dentre elas destaca-se o abastecimento urbano de água potável, uma das finalidades mais importantes do verdadeiro ouro azul³ do século XXI, os recursos hídricos, isto é, os mananciais de água doce.
Assim, argumenta-se, por exemplo, que se busca maiores investimentos. Quando é sabido no meio especializado, político e empresarial, que tanto o DMAE de Porto Alegre, quanto as companhias estaduais CORSAN, gaúcha, e SABESP, paulista, tem recursos, capacidade de financiamento e capacidade técnica para atingir completamente as metas setoriais existentes em prazo hábil. E apenas não o fizeram ainda devido às decisões governamentais dos governos de direita, no sentido deliberado de facilitar as privatizações através da precarização. Vereadores de oposição na Câmara de Porto Alegre denunciaram recentemente que o DMAE possui mais de trezentos milhões de
reais em caixa e não os investe por determinação do governo Melo. A CORSAN também, em seu balanço, mostrou lucro de mais de seiscentos milhões de reais em 2022, conforme fontes da Assembleia Legislativa. E assim também a SABESP, que é o maior serviço individual de abastecimento de água do mundo, com ações negociadas na Bolsa de Nova Iorque e franco acesso a créditos. Não há, portanto, nenhuma carência de recursos para justificar essas privatizações.
Outra falácia apresentada pelos privatistas – quando estes aceitam (muito raramente) participar dos debates públicos a respeito do tema – é a da perspectiva de redução dos preços públicos cobrados pelos serviços. É um fato
praticamente não observado, internacional e nacionalmente, nas localidades que já sofreram privatizações em seus sistemas de abastecimento de água.
Um indicativo desta promessa ilusória é o mecanismo, inserido nos contratos de permissão à privatização enviados pelo governo Leite aos municípios concedentes, de que em curto prazo terminará a tarifa unificada com subsídio cruzado. Esta é um rateio condominial das despesas entre os diferentes municípios que viabiliza os investimentos naquelas regiões que têm maiores dificuldades naturais de acesso à água. Sem o que, portanto, teriam um preço local maior do que a média. Esta permissão à futura cobrança pelo custo regional justificará o aumento das tarifas certamente, por exemplo, em regiões com mananciais mais poluídos, como a Região Metropolitana de Porto Alegre, ou com restrições naturais no acesso à água, como a Serra e a Campanha.
E uma terceira dimensão da importância de manterem-se públicos os serviços urbanos de abastecimento de água e saneamento básico – coleta e disposição adequada de resíduos sólidos; coleta, tratamento e disposição final de esgotos; e drenagem pluvial – é a da vigilância ambiental, não abordada pelos privatistas. Ao captarem a água bruta dos mananciais para utilizá-la como matéria-prima para a produção da água potável, os serviços de abastecimento submetem-na regularmente a testes rigorosos de qualidade. Isto para, através do tratamento, ajustá-la aos padrões de potabilidade do Ministério da Saúde. O que, além de um controle de qualidade industrial, funciona como uma vigilância ambiental permanente. Casos de privatização do serviço, tal qual a da Argentina nos anos 90, levaram em pouco tempo, por pressão das empresas privatizadas, a um rebaixamento dos parâmetros de qualidade pelas entidades reguladoras. A periodicidade dos testes laboratoriais foi muito alargada naquela experiência platina. O que, por óbvio, aumentou o lucro das operadoras e piorou a qualidade do produto distribuído à população.
Uma vez privatizados os serviços, como ficará a disponibilidade de tais informações? Aqui mesmo no Rio Grande do Sul ocorreram diversos casos de acidentes ambientais detectados e/ou confirmados a partir da captação de água bruta superficial por estações de bombeamento (EBABs) ou poços artesianos conectados à redes urbanas e com controles regulares, físico-químicos e bacteriológicos. Recorde-se os casos, no início dos anos 2000, do derramamento de efluente não tratado no rio Taquari, por um curtume em Arroio do Meio, e do vazamento dos tanques de um posto de gasolina que atingiu o lençol de água subterrânea no município de Condor.
Existe também, nitidamente, a questão comercial. Em tempos de crise climática e aumento de ataques ao meio ambiente pelo capitalismo extrativista, a água de qualidade vai tornando-se um bem escasso. As empresas privadas tentarão diminuir a venda da água tratada, com campanhas educativas contra o desperdício, ou buscarão aumentá-la? Afinal, a busca pelo aumento da lucratividade das operações é, por definição, um princípio fundamental do
capitalismo.
Por último, mas não menos importante, tem-se que o acesso à água potável em quantidade adequada é um direito humano reconhecido pela ONU desde 2010. O mercado atenderá esta normativa?
São pontos importantes no questionamento à pressa dos governos Leite, Melo e Tarcísio em privatizar os serviços de saneamento. E motivos fortes para que a cidadania se mobilize e evite mais um ataque da “privataria” a interesses vitais da maioria da sociedade brasileira.
* Professor de Filosofia e Doutor em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS. É participante do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito.
1 OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984. Biblioteca Tempo Universitário, série Estudos Alemães, no 79, 386p.
2 POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1985. Biblioteca de Ciências Sociais, v. 19, 307p.
3 BARLOW, Maude & CLARKE, Tom. Ouro Azul – como as grandes corporações estão se apoderando da água doce do nosso planeta. M. Books do Brasil Editora Ltda, São Paulo, 2003, 331p.
Imagem em Pixabay.
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