Opinião
A posse da união e da responsabilidade
A posse da união e da responsabilidade
De KATIE SILENE CÁCERES ARGUELLO*
Desde 1989 sempre votei no Lula em todas as eleições para a Presidência da República. Foram muitas as derrotas. Mas em 2002 veio a tão sonhada vitória. O coração quase não cabia no peito de tanta felicidade e esperança.
Aguçando a memória, percebo que, de todas as posses de presidenciáveis, desde o início do período da redemocratização, nenhuma foi tão emocionante e tão bela como a de 2023 em que o próprio povo – ali representado em sua beleza e diversidade – entregou a faixa presidencial ao Presidente eleito: Lula! Simbolicamente, nada mais belo e mais merecido, ao Lula e ao povo! Não havia como conter as lágrimas depois de ter passado por um período tão sombrio que se arrasta desde o golpe de 2016, com a prisão injusta de Lula e a ascensão ao poder de um dos seres mais abjetos da história republicana como presidente do Brasil, em 2018.
O discurso de Lula, na sua terceira posse, foi praticamente impecável, enfatizou o quadro de destruição promovido pelo ex-presidente, mostrou as conquistas dos mandatos do PT e os retrocessos ocorridos nestes últimos anos. Falou, muito acertadamente, sobre a estupidez do teto de gastos, responsável pela destruição da saúde, da educação, da ciência e tecnologia, da assistência social etc. Ato esse considerado ousado pela mídia hegemônica e pelo mercado financeiro, que querem mais promessas de rigor fiscal e menos presença do Estado na vida social. O presidente Lula falou abertamente sobre a nossa grande chaga – a desigualdade social – e se propôs a combatê-la. Quanto aos direitos humanos, abordou quase todas as questões fundamentais, como a necessidade de combater o racismo, a desigualdade de gênero, a intolerância religiosa ou qualquer outro tipo de intolerância, bem como sobre a premência de incluir as pessoas com necessidades especiais etc.
O presidente Lula demonstrou profunda sensibilidade às questões de direitos humanos e foi possível perceber o quanto ele é empático e verdadeiro ao se emocionar enquanto discursava sobre as pessoas que passam fome em nosso país (hoje, mais de 33 milhões de brasileiros e de brasileiras). Até os mais insensíveis sentiram o impacto do discurso naquele momento. De fato, o presidente Lula conhece de perto muitas das chagas sociais que ele pretende combater: passou fome na infância, foi criado apenas pela mãe, é um membro da classe operária, teve pouco acesso à educação (embora seja extraordinariamente inteligente e tenha sido forjado na escola da vida, o que o faz suplantar a falta de educação formal), foi perseguido, humilhado e preso injustamente, tendo passado 580 dias na prisão.
Do meu ponto de vista, não poderia haver melhor representante do povo brasileiro, neste momento, do que esse homem inigualável que renasceu das cinzas inúmeras vezes durante a vida, tal qual uma fênix. Os obstáculos que Lula teve de atravessar são obstáculos pelos quais o nosso povo mais humilde tem de passar durante toda a vida, sem descanso e muitas vezes sem vitórias em nenhum campo da vida social. Às vezes, para essas pessoas, a vida é apenas um acúmulo de derrotas e de mera luta pela sobrevivência animal.
E digo isto pensando especialmente naqueles que, apesar da sensibilidade de nosso novo Presidente, não foram mencionados no discurso de posse. Aqueles cujas desgraças sofridas a sociedade em geral e a mídia hegemônica normalmente não se compadecem: a população carcerária e seus familiares, os párias sociais, os que são considerados indignos de vida, em sua maioria pobre, preta e moradora de territórios periféricos. Não importa se culpados ou inocentes, eles têm direitos que precisam ser respeitados, mas não o são. Seus direitos são constantemente vilipendiados, o próprio Supremo Tribunal Federal já declarou o “estado de coisas inconstitucionais nas prisões brasileiras” em 2015, mas quase nada foi feito para mudar essa situação. O sistema de justiça criminal é seletivo e injusto por excelência, prende os portadores de indicadores sociais negativos e imuniza a elite que detém o poder político e econômico. Onde o racismo e a desigualdade social ficam mais visíveis é exatamente na prisão. Embora nenhum presidente tenha o poder de mudar estruturalmente a forma de funcionamento do sistema de justiça criminal no capitalismo, é certo que muita coisa pode ser feita para minimizar o impacto que o cárcere provoca em nossa sociedade (somos o terceiro país que mais encarcera no mundo!) e isso infelizmente não mudou nos governos do PT, pois, apesar de todos os avanços alcançados, essa população continua esquecida.
Lula afirmou a importância da política, que não pode ser demonizada sem graves riscos à democracia. E, entre tantas outras coisas importantes em seu discurso, ele foi concluído com o lema “Democracia sempre”. Isso foi emblemático, especialmente neste momento histórico em que fanáticos políticos e fundamentalistas religiosos – alimentados pelo ódio, pela desinformação e por fake news – pedem a volta da ditadura militar em frente aos quartéis, inconformados que estão com o resultado legítimo de eleições democráticas realizadas por meio de um sistema íntegro e de lisura inquestionável que é exemplo para o mundo: nossas urnas eletrônicas! Esse quadro de alienação dos bolsonaristas evidencia o enorme desafio que (ainda!) temos pela frente como um país que nunca acertou as contas com os crimes praticados pela ditadura militar (ao contrário do que fez a nossa vizinha, a Argentina).
Para além do belíssimo discurso, as medidas que o Presidente Lula adotou logo após a posse (relativas às armas, ao meio ambiente, à reinclusão da participação social em instituições que protegem e fiscalizam ações do governo, para derrubar o sigilo de cem anos imposto pelo ex-presidente etc.) foram muito acertadas e acenam para o cumprimento das promessas de campanha. É o que esperamos deste governo: reconstrução e união (mas sem deixar de lado a responsabilidade daqueles que praticaram crimes contra o povo brasileiro). Que esse período sombrio e autoritário nunca seja esquecido!
*Professora de Criminologia da graduação e da pós-graduação em direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Criminologia e Política Criminal PPGD/UFPR/CNPq.
Imagem em Pixabay.
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