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Opinião

A Ordem Social e a Contribuição da Constituição Federal de 1988 para a Evolução da Sociedade Brasileira

A Ordem Social e a Contribuição da Constituição Federal de 1988 para a Evolução da Sociedade Brasileira

Artigo por RED
11/10/2022 07:15 • Atualizado em 12/10/2022 19:51
A Ordem Social e a Contribuição da Constituição Federal de 1988 para a Evolução da Sociedade  Brasileira

De RODRIGO STUMPF GONZÁLEZ*

Neste momento em que a Constituição Federal completa mais um aniversário de sua promulgação temos motivos para comemorar, mas também indicações para refletir sobre seu significado e as diferenças entre o texto legal e os valores dominantes em nossa sociedade.

Provavelmente o capítulo que mostra de forma mais clara tanto a importância das definições feitas pelo Constituinte de 1988 para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária e, ao mesmo tempo, as limitações de um texto legal para perdurar no tempo e ajustar-se às necessidades da sociedade é o Título VIII – Da Ordem Social, que compreende do artigo 193 ao 232 e praticamente encerra o texto constitucional em termos temáticos, uma vez que o segue o curto título das Disposições Gerais e o Ato das Disposições Transitórias.

Esta já é a terceira Constituição mais longeva da história brasileira, ultrapassada em tempo de vigência apenas pelas constituições do Império, de 1824 e da República Velha, de 1891. Entretanto, se pensarmos em períodos de normalidade democrática e pleno exercício da democracia, esta já é a mais duradoura experiência em nosso país sob o mesmo texto constitucional.

Por outro lado, as transformações sociais vêm ocorrendo de maneira muito mais rápida nas últimas décadas do que no século XIX e primórdios do Século XX. A mudança no modo de produção de bens e mercadorias e a evolução das tecnologias de comunicação modificaram radicalmente as relações entre capital e trabalho e entre os indivíduos. Redes sociais, termo que no passado significava o conjunto de relações de contato direto entre pessoas, hoje designa aplicativos de relacionamento que ao mesmo tempo em que ampliam o contato, também o despersonalizam, com a presença de robôs dotados de maior ou menor inteligência artificial fazendo parte da comunicação. Assim, é gigante o desafio de manter a relevância de um conjunto de dispositivos que há mais de 30 anos atrás se propôs a dispor sobre fundamentos legais para a organização da sociedade.

Sofreu algumas alterações por emendas constitucionais ao longo dos anos, mas muito menos que os referentes à Organização do Estado e à Ordem Econômica e Financeira, mais sujeitos às mudanças das maiorias parlamentares e aos interesses dominantes em cada governo. Ao contrário, sobreviveu às investidas durante os períodos de predomínio da ideologia neoliberal sem que fossem suprimidas conquistas no campo da saúde e da assistência social.

Esta é a parte da Constituição que provavelmente tem maior influência do Constitucionalismo Europeu da segunda metade do Século XX. Outras partes da Constituição possuem maior relação de proximidade com textos das constituições brasileiras anteriores, ou com dispositivos incorporadores pelas constituições liberais do século XIX. Este título inova em relação aos textos constitucionais pretéritos, incorporando elementos presentes nas Constituições de Portugal e Espanha e princípios do pensamento constitucional das últimas décadas, em especial o alemão.

Os juristas gostam da expressão “Estado Democrático de Direito”. Este título permite considerar o Brasil um “Estado Social-Democrático de Direito”, se não na prática, ao menos na sua proposição estrutural. É aqui que a Constituição brasileira se aproxima do Estado de Bem-Estar como construído na Europa do Pós-Guerra durante os governos dos partidos social-democratas.

O conceito de Seguridade Social, baseado no tripé Saúde, Previdência e Assistência Social, reconhece a proteção dos cidadãos como direito de todos e dever do Estado. Ainda que convivendo com problemas históricos de financiamento, o SUS e o SUAS são realidades.

Graças a eles, a tragédia que foi a resposta brasileira contra a pandemia de Covid-19 e o retorno dos fantasmas da fome e da pobreza, fez com que não tivesse ocorrido consequências ainda piores. A estrutura federativa e a capilaridade dos serviços municipais e estaduais de saúde e de assistência social permitem a intervenção em favor da população mesmo quando exista um governo federal omisso e negacionista.

Colocar a Previdência como uma responsabilidade do Estado impediu que no período de prestígio do arroubo neoliberal fosse implantado um sistema de contribuições individuais para fundos privados, como o chileno. Mesmo com as diversas mudanças ocorridas ao largo dos últimos anos, com prejuízo para os contribuintes mais pobres e manutenção de privilégios para categorias específicas, como militares e magistrados, a existência de um sistema nacional público de previdência garantido na Constituição ainda é uma conquista para ser comemorada e mantida.

Não desejando colocar em um patamar inferior de importância dispositivos referentes à Cultura, ao Desporto, a Ciência e Tecnologia ou a Comunicação, porém é reconhecido de forma quase universal que o desenvolvimento de uma nação começa pelo seu investimento em educação. O reconhecimento da responsabilidade do Estado pelo acesso universal à educação pública e gratuita como foi princípio geral foi sendo aprimorado, com a redação atual que garante este direito dos quatro aos dezessete anos dado pela Emenda Constitucional 59, de 2009.

O constituinte de 1987/88 parece ter sido visionário ao incluir no Art. 207 a autonomia universitária. Se naqueles anos após à redemocratização a ameaça a este princípio não parecia presente, tal garantia tem se tornado fundamental nos anos recentes.

Inovou e foi presciente também o legislador ao colocar o Meio Ambiente entre os dispositivos. Ainda que frequentemente sejam descumpridos os princípios constitucionais sob o olhar complacente de governantes descomprometidos com o futuro, a carta constitucional está presente para mostrar o rumo devido.

Na parte final do título temos aspectos que, por um lado, foram inovadores para a época e cuja contribuição deve ser reconhecida para a evolução da sociedade brasileira, por outro lado demonstram os efeitos da sua data de produção.

O reconhecimento dos direitos das populações indígenas, entre eles o de suas terras é parte importante da reparação dos danos do passado colonial e das políticas de assimilação do período republicano. Porém, tratando-se do reconhecimento do passado escravista e da reparação histórica dos danos causados aos afrodescendentes, o legislador constituinte foi tímido, dispondo apenas sobre a proteção da expressão cultural e a demarcação dos quilombos.

A ausência de um dispositivo específico que fundamente a necessidade desta reparação permite a contestação de muitas das políticas propostas para enfrentar estas desigualdades, como as quotas étnicas, permitindo a articulação pelos setores conservadores do argumento de sua inconstitucionalidade. E não tendo sido incorporados à época de ventos mais progressistas, dificilmente o será por emenda constitucional quando o Congresso Nacional passa a ser dominado por grupos ultraconservadores.

No capítulo sobre a Família a Criança, o Adolescente e o Idoso temos alguns dos aspectos mais conflitantes entre o que era desejável e progressista na época em que a Constituição foi promulgada e o que se defende como avanço hoje.

No que se trata das disposições referentes às crianças e aos adolescentes, o Art. 227 foi em 1988 e continua sendo uma referência para o mundo. Incorporando a doutrina da proteção integral, proposta pela Organização das Nações Unidas, adiantou-se mesmo a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, promulgada em 1990. Foi revisado para ampliar a idade de ingresso ao trabalho de 14 para 16 anos, acompanhando a adoção pelo país das Convenções da OIT. Fora este elemento, pouco haveria a rediscutir em sua redação. O Art. 228, ao constitucionalizar a idade mínima de imputabilidade penal em 18 anos, já prevista no Código Penal de 1940 se tornou a barreira contra o punitivismo e as soluções do reformismo penal de ocasião, que vê sempre no aumento de penas e na redução dos direitos dos acusados os caminhos para uma solução simplista para o problema da violência.

Quando analisamos os dispositivos sobre o conceito de família, temos uma concepção que envelheceu e foi superada. Não se deve ignorar, no entanto, que representava o avanço possível para a época, o reconhecimento das famílias monoparentais, a igualdade entre homens e mulheres na relação familiar e a união estável como unidade familiar. É preciso recordar que falamos de um tempo em que a jurisprudência ainda tratava o fim dos relacionamentos afetivos estáveis com regras do direito societário, como dissolução de sociedades de fato e ainda se calculava como indenização por serviços prestados a divisão de bens com a parceira, tratada nos textos legais como “concubina”. Os avanços proporcionados no reconhecimento da população LGBTQIA+ têm sido feitos pelos tribunais e dificilmente serão incorporados no curto prazos no texto constitucional.

A disposição sobre os idosos na lei fundamental foi importante, mas ainda tem um tom paternalista, que vê os mais velhos como um peso a ser carregado pela sociedade. Tal visão foi superada por textos legais posteriores, como o Estatuto do Idoso e a redação do texto constitucional poderia reconhecer o seu papel como cidadãos ativos.

A Constituição Federal deve ser vista como um texto vivo, uma base sobre a qual construir os avanços e não um ponto de chegada. Os direitos previstos são uma base sobre a qual construir e ao mesmo tempo, uma fortaleza para a defesa das conquistas nos momentos de ataque, como vivemos hoje. Como na letra de La Muralla de Quilapayún:

¡Tun, tun!
—¿Quién es?
—El sable del coronel…
—¡Cierra la muralla!
—¡Tun, tun!
—¿Quién es?
—La paloma con el laurel…
—¡Abre la muralla!


*Cientista Político e Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Essa é uma série especial dedicada à Constituição Federal, que no dia 05 de outubro comemora 34 anos de sua promulgação. Ao longo deste mês, publicaremos artigos de opinião apresentando conceitos, perspectivas históricas, visões e críticas sobre a Constituição Federal Brasileira.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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