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Opinião

A luta interrompida pela concretização dos direitos constitucionais no Brasil

A luta interrompida pela concretização dos direitos constitucionais no Brasil

Artigo por RED
06/10/2022 12:14 • Atualizado em 07/10/2022 10:18
A luta interrompida pela concretização dos direitos constitucionais no Brasil

De GISELE CITTADINO*

Ulysses Guimarães, ao descrever a Constituição brasileira como Constituição Cidadã, acreditava que, desta vez, a lista exaustiva de direitos constitucionais, um rol de instrumentos processuais aptos a serem utilizados na busca da concretização de tais direitos e um sistema de justiça repleto de garantias e ampliação de suas esferas de atuação seriam suficientes para assegurar a cidadania plena aos brasileiros depois de mais de 20 anos de ditadura civil-militar.

Passadas três décadas da promulgação da Constituição Cidadã, com a expansão de um sistema de justiça voltado para seus interesses corporativos e a atuação de uma maioria parlamentar sem compromissos com a implementação dos direitos das camadas vulneráveis, restou ao Poder Executivo, e apenas durante o período de 2002 a 2016 – governos do Partido dos Trabalhadores – a extraordinária tarefa de tentar dar significado ao sonho de Ulysses Guimarães, incorporando à sociedade brasileira parte considerável da população historicamente ignorada pelo Estado. Ao interpretar de modo inteiramente equivocado o instituto do mandado de injunção, o Poder Judiciário, por intermédio do Supremo Tribunal Federal, deixou claro, ainda nos anos 90, que seu papel não seria o de concretizar direitos constitucionais diante da paralisia dos governantes, parecendo, naquele momento, optar por uma postura de autocontenção. A maioria parlamentar que dominou a Assembleia Nacional Constituinte, autodesignada Centrão, manteve o controle sobre o Poder Legislativo nos anos seguintes, e a sociedade brasileira, da reconstitucionalização até 2002, continuou, como no passado, marcada por profundas divisões sociais. Com exceção da ampliação do acesso à justiça, especialmente em função dos estatutos do consumidor, da criança e do adolescente e do idoso, as camadas vulneráveis permaneciam sem direitos assegurados, e sem políticas públicas voltadas para a garantia de uma posição cidadã.

Como sabemos, a história brasileira é marcada por rupturas com a legalidade vigente, por longos anos de autoritarismo, tanto civil, como militar, por violações dos direitos e garantias fundamentais, o que nos revela a inexistência de qualquer tipo de integração ética, especialmente em face do racismo e da desigualdade por ele imposta. Em outras palavras – e tal como assinala Jürgen Habermas ao se referir à história alemã – aqui também não podemos confiar antropologicamente em nossas próprias tradições, e ainda precisamos filtrá-las por algum tipo de consciência do pecado, diante de nossas descontinuidades históricas, do racismo e da cultura autoritária.

Foi somente a partir de 2002, com o início da implementação de políticas públicas voltadas à incorporação das camadas vulneráveis, que os direitos constitucionais assegurados desde 1988 começaram a fazer sentido para a maioria da população brasileira. Com a erradicação da fome, o imaginário popular encontra espaço para o desejo, seja o de estudar, viajar ou ter acesso à cultura. Rompido o dique imposto pela mera vontade de sobreviver, tudo começa a se tornar possível. E como ressaltou a capa de uma revista semanal, os brasileiros nunca foram tão felizes, segundo pesquisas realizadas na época.

Ao contrário do constitucionalismo estadunidense, que não encontra obstáculos em recorrer a conceitos como patriotismo republicano ou republicanismo cívico, de maneira a legitimar a atuação de sua Suprema Corte, o sistema de justiça brasileiro nos mostra que não foi a autocontenção a razão pela qual inviabilizou o mandado de injunção. Diante do redesenho político, econômico e cultural do país, o Poder Judiciário não teve dificuldade alguma em colaborar com nossas históricas elites políticas, autoritárias e racistas, e partir para um ativismo judicial de cunho efetivamente político. De forma ousada e contrária a uma postura de autocontenção, criou a imagem de um judiciário vanguardista, que apostava em pautas comportamentais – a união civil entre pessoas do mesmo sexo talvez seja a melhor expressão desse iluminismo – ao mesmo tempo em que aplaudiam e legitimavam o lavajatismo, inviabilizavam o garantismo penal e colaboravam com a demolição dos direitos trabalhistas e previdenciários.

O nosso Supremo Tribunal Federal, que jamais conseguiu buscar a legitimação de suas decisões no conjunto da sociedade brasileira – exatamente porque aqui não há patriotismo republicano ou republicanismo cívico aos quais recorrer – deveria ser apenas o efetivo guardião da nossa Constituição, exatamente como fazem os tribunais
constitucionais daquelas sociedades cuja tradição autoritária impediu a formação de uma efetiva vontade geral. Se, em nosso país, não podemos nos referir ao povo brasileiro no sentido desejado por Darcy Ribeiro, porque historicamente as nossas elites políticas tomam as grandes decisões em seu nome, perdemos a possibilidade de
construir um verdadeiro republicanismo cívico, ao mesmo tempo em que abrimos espaço para que o STF, sem constrangimentos, tente aparecer como um farol a iluminar nossos caminhos. Tal postura elitista bem se inscreve em nossa tradição autoritária, ainda que pareça uma opção menos violenta do que as de tempos passados.

O desrespeito pela soberania popular e a determinação de manter a maior parte do povo brasileiro distante dos direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal uniu, nesses últimos anos, parte significativa do nosso sistema de justiça, a maioria conservadora e não republicana que controla o parlamento, a grande mídia corporativa e nossas tradicionais elites econômicas. No entanto – e mais uma vez – a soberania popular volta a utilizar o derradeiro direito ainda intocável da nossa Constituição, ou seja, o de participar pela via do processo eleitoral. Lançando mão da democracia representativa, muitas vezes utilizada para traduzir o seu desejo de mudança, o povo brasileiro sinaliza o seu compromisso com a defesa dos direitos e garantias constitucionais capazes de afastar a exclusão, a vulnerabilidade e a desigualdade. Tal decisão também representa um repúdio à instituição de um novo ator autoritário, encarnado no sistema de justiça, que pretenda agir como um artesão divino capaz de indicar os rumos que a sociedade deve seguir. Em outras palavras, a soberania popular, por intermédio do voto, parece afirmar o seu inconformismo com todo tipo de criminalização de um projeto político que pretende transformar o país em uma grande nação. Aguardemos o resultado da eleição.


*Professora Associada do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Essa é uma série especial dedicada à Constituição Federal, que no dia 05 de outubro comemorou 34 anos de sua promulgação. Ao longo deste mês, publicaremos artigos de opinião apresentando conceitos, perspectivas históricas, visões e críticas sobre a Constituição Federal Brasileira.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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