Curtas
A história das polícias no Brasil: “polícia não deve ter autonomia”, diz Almir Felitte
A história das polícias no Brasil: “polícia não deve ter autonomia”, diz Almir Felitte
Especialista afirma que ao não responder ao controle público, sistema policial se torna milícia: “não tem outro nome”
De Agência Pública.
Após 40 dias marcados por denúncias de violações de direitos humanos e um saldo superior a 20 mortos, o secretário de segurança pública do Estado de São Paulo, Guilherme Derrite, declarou, na última terça-feira (5), o encerramento da Operação Escudo. Instaurada em resposta ao assassinato de um soldado da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) em julho, a operação foi caracterizada pela alta letalidade e graves suspeitas de práticas de execução e tortura dos agentes policiais.
Vinicius de Souza Silva, um jovem morto na Baixada Santista, é um dos casos em destaque. A versão apresentada pela polícia sobre sua morte foi questionada em documentos revelados pela Agência Pública, sugerindo a possibilidade de uma execução. Operações com características semelhantes têm se repetido pelo Brasil quase como uma regra das corporações e, invariavelmente, ficam impunes os desvios de conduta. Em 2023, dados do Fogo Cruzado apontam que 148 indivíduos já perderam a vida em operações desse tipo, em uma luta declarada contra a criminalidade.
Diante de tais eventos, intensifica-se o debate sobre o papel histórico das forças de segurança no Brasil, abordando suas práticas controversas e refletindo sobre a crescente politização das polícias. No episódio 87 do podcast Pauta Pública, lançado em 1º de setembro, Almir Felitte, Mestre em Direito e pesquisador em áreas como sociologia do direito, instituições policiais, direitos humanos e militarismo, discute a origem e a realidade atual da segurança pública no país. Felitte é autor do recém-publicado livro “A História da Polícia no Brasil: Estado de Exceção Permanente?”, pela editora Autonomia Literária.
Na conversa, o pesquisador defende que um órgão como a polícia não deve ter autonomia. “Uma polícia autônoma que não responde ao controle público, ao controle estatal, ao controle popular, pra mim, não tem outro nome que não seja milícia. É como se a gente estivesse observando uma milicianização de todo o nosso sistema policial”, diz.
Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.
[Andrea Dip] Você acaba de lançar o livro “A História da Polícia no Brasil: Estado de Exceção Permanente?”, que tem a árdua tarefa de compilar e contextualizar a história das polícias no Brasil. Como foi sua pesquisa para o livro?
O livro se desenvolve com base na teoria da polícia como um mecanismo de “estado de exceção permanente”, e tenta trazer um compilado do desenvolvimento histórico das polícias no Brasil. Essa talvez seja a grande novidade que o livro introduz no tema. Não que nunca tenham escrito sobre a questão da história das polícias no Brasil até hoje, mas é um tema que, no ambiente acadêmico, em termos científicos, possui literatura majoritariamente recente. A maioria das publicações sobre segurança pública no Brasil surge a partir dos anos 2000, período que coincide com o início das primeiras políticas de segurança pública no país.
Ao analisar a trajetória histórica das polícias, encontramos obras frequentemente voltadas para períodos mais específicos, como a era Vargas, a ditadura militar ou o império, e, em sua maioria, focadas nas grandes capitais, como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. O que tentei com o livro foi identificar um contexto histórico de abrangência nacional para o desenvolvimento das polícias no Brasil.
E o que descobri é que, apesar das peculiaridades de um país tão grande quanto o Brasil, peculiaridades de desenvolvimentos regionais diferentes, é possível traçar uma história das instituições policiais em âmbito nacional. O subtítulo, ainda que com um ponto de interrogação, oferece uma pista. A análise é fundamentada na teoria do estado de exceção permanente, principalmente a partir das ideias do Aschille Mbembe e Giorgio Agamben, problematizando não só as instituições policiais, mas o nosso próprio conceito de estado democrático de direito e democracia liberal.
[Clarissa Levy] Após anos de constante crise na segurança pública do país, torna-se interessante refletir sobre o assunto e sua trajetória histórica. Em sua pesquisa, o que você descobriu sobre as reformas das polícias ao longo da história?
O que mais chama a atenção é que todas as reformas estudadas a respeito dos sistemas policiais no Brasil não mencionam, de fato, a busca por um sentimento de segurança geral da população ou a tentativa de reduzir a suposta violência no país. O que percebemos são reformas sempre ligadas a um contexto de controle político do país.
No momento inicial de seu surgimento, há a questão do abolicionismo, com um número crescente de pessoas negras circulando pela cidade. A partir da transição do século XIX para o século XX, observa-se a formação de uma classe trabalhadora livre no Brasil, juntamente com a população negra que atinge uma situação de liberdade, com uma grande oferta de imigrantes, também trabalhadores livres. O que vemos é a polícia se organizando para conter esses trabalhadores, bem como para reprimir greves e protestos. No livro, apresento uma série de comunicações entre autoridades de São Paulo, o que é muito interessante. Não me recordo exatamente se trata-se de um comunicado do chefe de polícia ao governador, mas ele sugere que uma polícia militarizada não seria adequada para lidar com o policiamento cotidiano. Mas que ela era essencial para conter grandes manifestações e a existência de uma cavalaria militarizada seria crucial para conter greves e protestos. Ou seja, o que observamos são motivos políticos levando a essas grandes reformas.
Na década de 1910, as polícias militares começaram a contratar missões militares para treinar os seus pequenos exércitos estaduais. Em 1906, a Polícia Militar de São Paulo contratou uma missão militar francesa para seu treinamento. Anos depois, a Polícia Militar de Minas Gerais contratou uma missão suíça. Também anos depois, a Polícia do Rio Grande do Sul contratou uma missão do próprio Exército Nacional para fazer esse tipo de treinamento. Ao passo que nas polícias civis, que faziam o policiamento cotidiano, foi justamente nesse período que começaram a surgir as primeiras escolas de polícia civil e os primeiros departamentos, que trazem maior profissionalismo a essas forças.
Nos anos 1920, mesmo antes da ditadura de Getúlio Vargas, surgiu em São Paulo o primeiro DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). A primeira polícia política do Brasil surgiu ainda na República Velha.
Então, o que acompanhamos são reformas policiais que pouco se relacionam com uma preocupação diária com a segurança das pessoas ou com o combate a uma suposta criminalidade. Basicamente, até os anos 1950, temos dados que indicam que a maior parte das prisões no Brasil era realizada por motivos de vadiagem, desordem, embriaguez ou devido a crimes políticos e sociais. Não estamos falando de uma população carcerária presa por crimes violentos, como roubo ou homicídios. O que observamos é um controle político. Por isso, o livro se debruçou tanto sobre essa temática do estado de exceção permanente, e isso perdura até aproximadamente os anos 1990.
As primeiras políticas verdadeiramente preocupadas em transformar a polícia em um instrumento de trabalho cotidiano, não apenas para controle social, mas também para tentar ampliar o sentimento de segurança da população, só surgirão após a redemocratização e, ainda assim, de forma bastante inócua. O primeiro plano nacional de segurança pública só apareceu no Brasil no final dos anos 1990. Nos anos 2000, observamos um aumento desses planos, mas ainda são planos muito fracos. São planos muito mais voltados a uma questão de educação e doutrina policial, mas nenhum deles mexe exatamente na estrutura das polícias.
[Andrea Dip] Considerando a história recente do país, os últimos anos e os governos anteriores, em eventos da política nacional nos quais a Polícia Militar adota um posicionamento claro, como no dia 8 de janeiro, como essa instituição se adapta e até mesmo se posiciona politicamente?
É difícil determinar quando um processo histórico realmente se inicia, mas, em certos momentos, é possível identificar um marco a partir do qual podemos afirmar que ele está em andamento. A partir de 2018, percebo uma mudança no papel das polícias em nossa sociedade. Elas começam a se afastar da função de força auxiliar e iniciam um processo de autonomização, uma busca por protagonismo, não apenas em razão da eleição do ex-presidente Bolsonaro. Em 2018, os policiais atingiram um recorde de deputados eleitos no Congresso; se eu não me engano, foram algo em torno de 30 a 40 deputados. E esse recorde foi superado novamente em 2022, mesmo com a eleição do atual presidente Lula.
Esse processo está acompanhado de outros movimentos. Estamos começando a observar um surgimento muito grande de influencers policiais na internet. Muitos não têm necessariamente o interesse de se candidatar, mas desempenham um papel fundamental nas tropas e nos cursos preparatórios para policiais, principalmente os militares, passando uma doutrina completamente desumanizada. Vemos surgir bandeiras próprias entre os policiais e um risco crescente de insubordinação. Vale lembrar que, às vésperas do 7 de setembro de 2021, governadores de todo o país se organizaram para determinar se as polícias ainda estavam sob seu controle ou não.
As paralisações dos caminhoneiros em 2022 só foram possíveis porque a polícia não fez o que deveria ter feito e, em alguns momentos, até ajudou nas paralisações. Faltou a leitura de que não estávamos apenas diante de uma paralisação de nossa principal malha de transporte no país; não era somente uma greve de caminhoneiros e do agronegócio. A polícia desempenhou um papel protagonista nesses dias.
Então, desde 2018, talvez desde os tempos das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio de Janeiro), eles começaram a assumir um protagonismo que, de certa forma, era inédito na política brasileira. Contudo, em 2018, percebo uma verdadeira mudança de paradigma nas polícias brasileiras, nas quais elas passam a buscar autonomia e protagonismo.
E há a questão do controle das polícias. É algo que se deve criticar no atual governo, porque, mesmo nos governos anteriores, o governo Lula sempre teve esse discurso de dar autonomia às instituições, ao ministério público, às polícias, e isso é uma visão muito errada do que é a democracia. Um órgão como a polícia não deve ter autonomia; um órgão como a polícia deve estar submetido a controle externo rígido. Uma polícia autônoma que não responde ao controle público, ao controle estatal, ao controle popular; pra mim, não tem outro nome que não seja milícia. É como se a gente estivesse observando uma milicianização de todo o nosso sistema policial.
Por Andrea Dip, Clarissa Levy e Ricardo Terto.
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil.
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