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Opinião

A herança maldita de Bolsonaro

A herança maldita de Bolsonaro

Artigo por RED
03/11/2022 08:36 • Atualizado em 04/11/2022 12:41
A herança maldita de Bolsonaro

De CHRISTIAN VELLOSO KUHN*

Diante do término das eleições presidenciais, um capítulo se encerra com o anúncio do ocaso do governo Bolsonaro. Com uma margem bastante estreita sobre o seu adversário – menos de dois pontos percentuais (p.p.) – Lula iniciará o seu terceiro mandato como presidente precisando enfrentar uma série de adversidades, em cenário próximo ao da sua primeira gestão, quando assumiu em 2003.

Naquele período, a inflação chegou a 12,5% em 2002, em virtude principalmente da maxidesvalorização do Real de 53,7% no ano, contra 20,4% em 2001. Essa maxidesvalorização foi motivada, sobretudo, pela reação do mercado financeiro de incerteza com uma vitória de Lula nas eleições daquele ano, com muitas ilações infundadas de que mudaria radicalmente a política econômica de FHC, o que não ocorreu. O tripé macroeconômico implantado em 1999 (superávit primário, meta de inflação e câmbio flutuante) foi rigorosamente mantido não apenas em seu governo, como até os dias de hoje.

A forte desvalorização cambial de 2002 também impactou consideravelmente os níveis da dívida pública, que ficou mais indexada ao câmbio e, consequentemente, sofreu uma elevação de 33,3% naquele ano. A taxa de desemprego, que FHC fez promessa de queda em sua campanha de 1998, se manteve alta (9%), causando outra preocupação para o seu sucessor em 2003.

Dado esse contexto, Lula na época cunhou a situação em que assumiu o governo de “herança maldita”. Mesmo diante de tantos desafios, o petista obteve relativo sucesso em seu primeiro mandato, o que colaborou fortemente na sua reeleição em 2006. Agora, 20 anos depois, Lula novamente assumirá a presidência da república com uma “herança maldita” de seu antecessor, nesse caso Bolsonaro, porém, não restrita ao campo econômico.

As eleições presidenciais no segundo turno registraram uma diferença de pouco mais de 2 milhões de votos a favor do vencedor, em que o candidato derrotado obteve cerca de 58,2 milhões de votos, em números absolutos, 400 mil acima do que atingiu nas eleições de 2018. Todavia, como os votos totais aumentaram de 115,9 milhões em 2018 para 124,2 milhões esse ano (alta de 7,2%), acarretou numa queda de 3,1 p.p. do peso dos votos de Bolsonaro sobre os votos totais (46,8% ante 49,9%). Ainda, uma vez que os votos em branco/nulo recuaram de 11,0 milhões em 2018 para 5,7 milhões em 2022 (-48,3%), a participação dos votos do candidato do PL caiu 6,0 p.p., passando de 55,1% para 49,1%, respectivamente.

Essa massa de mais de 58 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro no 2º turno, em que acirra a divisão da nação, precisará ser conquistada, pelo menos em parte, para que Lula possa gozar de uma maior popularidade e lhe conferir maior apoio e segurança para impedir que sofra tentativas de processos de impeachment. Isso porque o congresso eleito esse ano contará com muitos deputados e senadores identificados com o grupo de Bolsonaro, e principalmente aqueles mais radicais certamente imporão obstáculos intransponíveis para votarem a favor de medidas e ações tomadas pelo novo governo de Lula. Ademais, precisará negociar com os congressistas para tentar desfazer ou pelo menos reduzir o orçamento secreto.

Além dessa grande parcela do eleitorado e de legisladores que devem lhe fazer uma ostensiva oposição, Lula precisará lidar também com problemas de ordem institucional, em que muitos órgãos de governo foram aparelhados pelo presidente Bolsonaro, como uma parcela das forças militares e da polícia federal, e estruturas foram desmontadas nas áreas da cultura e do meio ambiente, por exemplo.

Somada à necessidade de “desbolsonarização” do aparelho estatal, Lula terá que enfrentar o alto endividamento público (Dívida Bruta do Governo Geral de 77,1% do PIB em setembro de 2022) e negociar a LDO de 2023 que prevê um valor médio inferior (R$ 405,00 por família) ao Auxílio Brasil dado atualmente (R$ 600,00), bem como um salário mínimo de R$ 1.302,00, sem ganho real.

Ainda na economia, embora a taxa de desemprego tenha caído para 8,7% no terceiro trimestre desse ano, menor patamar desde junho de 2015 (8,4%), o número de empregados sem carteira assinada no setor privado chegou ao maior número da série histórica (13,2 milhões de trabalhadores), enquanto o número de informais atingiu 39,1 milhões, ante 34,5 milhões em igual trimestre de 2016. Isso é fruto da reforma trabalhista de 2017 do Governo Temer, que recrudesceu significativamente a precarização do mercado de trabalho no país.

Adicionalmente, um severo problema vem sendo a inflação (IPCA de 7,2% nos últimos 12 meses até setembro), que a despeito do recuo nos últimos três meses, coloca o Brasil na 7ª colocação no ranking de inflação dos países do G20. Caso o ano fechasse com esse índice, seria o terceiro maior nível do IPCA desde 2010, inferior apenas a 2015 (10,7%) e 2021 (10,1%). A inflação de alimentos é ainda superior ao índice geral (11,7%), dificultando a vida sobretudo da população mais carente. Importante registrar que a queda da inflação é fruto da política eleitoreira, denunciada em artigo recente na RED, “O Ciclo Político-Eleitoreiro de Bolsonaro”. Logo, passadas as eleições, é bem possível que as medidas que garantiram esse recuo artificial da inflação, como a limitação de alíquota do ICMS de combustíveis e outros itens, sejam revistas, o que poderá impactar numa alta dos preços de bens e serviços.

O país ainda padece com 49 milhões de pessoas na extrema pobreza (23% da população), um aumento de 10 milhões no número de miseráveis nos últimos quatro anos. A fome, que era de 19 milhões de pessoas em 2020, subiu para 33,1 milhões no início do ano. A manutenção do Auxílio Brasil e a instituição de um programa de renda mínima é crucial para reduzir esse enorme contingente.

Portanto, o descalabro institucional, político, econômico e social que Lula herdará de Bolsonaro conferirá em muitos desafios, que talvez poderão na melhor das hipóteses serem atenuados nos próximos quatro anos. Firmar um pacto com partidos, entidades e outros setores da sociedade civil pode vir a ser desejável para que o governo Lula obtenha a legitimidade e sustentação requeridas para o apaziguamento do país e tirá-lo de tantas mazelas.


*Professor e economista do Instituto PROFECOM, autor de livros como Governo Figueiredo (1979-1985): política econômica e ciclo político-eleitoral. 

Imagem em Pixabay.

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