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Opinião

A fala de Lula

A fala de Lula

Artigo por RED
22/02/2024 11:11 • Atualizado em 24/02/2024 22:44
A fala de Lula

De LINCOLN PENNA*

O maior desafio ao capitalismo seria a extensão da democracia além de seus atuais limites extremamente reduzidos.

Ellen Wood

Essa sentença da historiadora norte-americana tem muito a ver com a fala do presidente Lula ao se referir à ação perpetrada pelas tropas israelenses especialmente na Faixa de Gaza, mas também no Líbano, a pretexto de responder ao ataque terrorista do grupo Hamas, por sinal condenado pelo governo brasileiro e explicitado por Lula. E reiterado por ocasião de seu último pronunciamento.

Por que razão associo os dizeres que servem de epígrafe a este texto com o pronunciamento de Lula? Faço essa relação porque evoca-se muito a democracia, porém não se pratica a democracia nos meios formais da política, só quando convém aqueles pretensos donos da verdade. Se erro danoso cometeu a facção mais extremada em nome dos palestinos, erro maior tem cometido o governo pró-fascista de Netanyahu, à testa de uma coligação dominantemente reacionária e avessa à criação do Estado da Palestina. E ao assim procederem estimulam a radicalidade de grupos que se julgam capazes de representar um povo sem lugar de pertencimento.

A fala de Lula não foi inconveniente como muitos a avaliam dependendo, é claro, do lugar e de quem emite tal juízo. A fala foi pronunciada em circunstâncias que devem ser consideradas. Naquele instante e no local em que se deu representou a indignação dos que entendem ser desumana a resposta dada pelo governo israelense, cujos motivos de revolta diante do ocorrido com seus concidadãos explicaria uma atitude. Por exemplo, uma ação cirúrgica visando os membros do Hamas. Ação que deveria poupar o povo palestino, sobretudo crianças, idosos, e os que se encontravam vulneráveis por diversas situações.

A reação da ONU foi pífia, a despeito dos esforços de muitas das delegações com assento no Conselho de Segurança, organismo encarregado de tomar decisões diante de conflitos que ameaçam a paz mundial. Desse fórum tem feito parte a representação brasileira, que na ocasião fazia parte em rodízio desse organismo decisório para matérias dessa natureza. Em vão, os ataques à toda a extensão da Faixa de Gaza têm transcorrido com milhares de perdas humanas e o que se debate é até quando será possível conter esse genocídio. Sim, porque o que se assiste naquela região não tem outro nome. Denominem como quiser, mas é uma afronta aos valores humanitários, de modo a ser qualificado como um ato de lesa-humanidade plenamente tipificado.

E por que a mídia nacional e internacional, sempre com as exceções para não fugir à regra, tem se manifestado condenando a fala de Lula? Por parte dos israelenses mais reativos às críticas muito provavelmente por causa da referência feita pelo presidente brasileiro a Hitler, comparando-o ao que tem feito Netanyahu. Poderia falar qualquer coisa que identificasse o holocausto produzido pelos nazistas de modo a ceifar milhões de judeus, mas ao pronunciar o nome do Führer do Terceiro Reich o impacto foi redimensionado e pôs à nu a democracia tão decantada pelos que a admitem silenciosa diante de tragédias, e incapaz de admitir que o direito de expressão possa via a ser exercido não importa em que contexto ele se dê.

Lula é Lula nos improvisos, fora deles não se distingue totalmente de muitos dos chefes de estado mundo a fora. Todos esses presos aos scripts dos experts da diplomacia internacional. É esta diplomacia que azeita as eventuais divergências e pondera os pontos mais agudos das muitas controvérsias. Em nome da construção de consensos mínimos, um dos predicados da ação política voltado para a concertação e, portanto, para a acomodação de diferenças, trata-se de um expediente positivo nesse sentido. Todavia, um ser político não pode ficar refém desses acertos e deixar de se posicionar diante de fatos a merecer uma forte condenação.

A fala de Lula é a expressão de um gemido puro, que vem do povo atento ao que se passa nesse cenário mundial tão intranquilo quanto cada vez mais armamentista, onde a paz não tem lugar permanente. Sua voz de fala contundente ecoou como uma tempestade avassaladora. A democracia reduzida repleta de porta-vozes repudia, censura e procura tirar proveito do que alguns chamam de erro imperdoável que segundos essas mesmas vozes fariam Lula perder o protagonismo que vem semeando em suas já numerosas passagens por vários países e entidades de grosso calibre. Ledo engano, são os líderes que fazem abalar convicções, para o bem ou para o mal.

Que os tempos que virão transformem esse episódio em algo que nos faça rever as atitudes verdadeiramente democráticas, aquelas em que exercitemos o amplo direito ao contraditório. Qualquer aplauso ou condenação a tomadas de posição de uma liderança política faz parte das práticas democráticas, que não comportam limitações e nem tampouco controles de quem opina para atender ao bom- mocismo dos que pretendem formar a opinião pública, que para que possa ser assim designada é preciso que seja libertária a acomodar as contradições inerentes a sociedades tão diversificadas cultural quanto socialmente.

A fala de Lula vai reverberar por algum tempo. Será com certeza objeto de questionamentos repetidos, incisivos e agressivos. Estes, certamente, por seus mais raivosos adversários, que preferem defini-lo como inimigo. Ficará, no entanto, como um grito de solidariedade aos povos que sofrem violência de todo tipo, que pode ser repreendido pelos cultores da política bem-comportada, mas jamais será esquecida pelos que sinceramente sofrem com a dor alheia. Isto também é democracia, aquela em que o que vale para mim vale tanto quanto para o meu semelhante.


*Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).

Foto: Ricardo Stuckert/PR.

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