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Opinião

A estética de Huxley e os tapetes de Lula: Gestão e Política num país destruído

A estética de Huxley e os tapetes de Lula: Gestão e Política num país destruído

Artigo por RED
18/12/2022 18:12 • Atualizado em 02/01/2023 09:07
A estética de Huxley e os tapetes de Lula: Gestão e Política num país destruído

De TARSO GENRO*

Procuro uma entrevista de Aldous Huxley constante do livro Escritores em ação (Paz e Terra, Coordenação e Prefácio de Malcolm Cowley, 1982), pois intuo que lá está – numa resposta do escritor sobre o processamento da sua condição de escritor – uma parábola para a interpretação da montagem, não só do Governo Lula, mas de qualquer ação importante das lideranças políticas mundiais, neste presente que é sobretudo fugidio: fustigado por mudanças rápidas e imprevistos sucessivos, os homens e mulheres de hoje já fazem a História fundindo seu “fim” e seu “começo”: como se ambos – passado e presente – fossem idênticos e só a atualidade do perverso fizesse sentido e todo o heroísmo, assim, se banhe em ironia. É um tempo em que as conexões entre tática e estratégia não funcionam mais, já que a rapidez da História muda o passado com a velocidade da luz, petrifica o presente e dissolve todas as convicções sobre o futuro. Em um suspiro da Bolsa e em cada Guerra pulsa o “presente perpétuo” e nele não se sabe quais são os valores que vencem e os seres humanos que sobram, embora se saiba que a utopia é sempre derrotada.

As ações políticas dos líderes mais fortes, nos momentos críticos em que são desfiados seus talentos – no nosso sempre curto presente – não obtém mais apoio para “estratégias” originais, expressas nas longas narrativas do Século passado. E o passado já não é mais o mesmo, pois as identidades do trabalho (que vinham do lugar certo da fábrica com as suas metástases benignas na cultura) deslocaram-se para um outro lugar arredio: enquanto o sujeito pensa já começa a se fechar o círculo para a extinção da sua experiência. Huxley diz, na entrevista: “escrevo um capítulo por vez descobrindo meu caminho à medida que prossigo. Quando começo, só sei vagamente o que irá acontecer. Tenho apenas uma ideia geral e então a coisa se desenvolve, enquanto escrevo”. O dilema estético da escrita de Huxley é o dilema político dos dirigentes que se comprometem eticamente com políticas de “esquerda”, num regime democrático-liberal cada vez mais apertado por um cenário mundial, onde o que emerge não é solidariedade entre os oprimidos da modernidade capitalista, mas é o fascismo servo das elites financeiras, cujos interesses são sobretudo manter a reprodução infinita do dinheiro, sem trabalho assalariado e sem lastro produtivo.

Na política, os sujeitos ativos – numa disputa de princípios – enfrentam, quando os horizontes utópicos se afastam cada vez mais nos cenários de guerras e devastações ambientais, a “contradição entre os tipos ideais de governança moderna, ou ao menos contemporânea: mobilidade, agilidade e velocidade” (de um lado) e (de outro) “autoridade rígida (ou autoritarismo) rígido (ou férreo)”, já que “a hegemonia neoliberal se impõe em todo o processo político, a autoridade se impõe à governança” (e) “como se trata de vasos comunicantes, o poder passa do recipiente do Estado ao da empresa, que opera a nível mundial”. É quando o gestor transmuda-se em monarca, a capacidade de liderar em autoritarismo, a inteligência em arrogância”, como mostra Christian Salmon (La era del enfrentamiento, Ed. Península, 2019, Barcelona), agregando o perigo de que a democracia se torne uma encenação periódica para uma cidadania cansada e a Constituição Social o arremedo de uma promessa sem fundamentos.

É a isso que me refiro quando falo nas “estreitas margens operacionais” de uma política de distribuição de renda e proteção social, num país que – mesmo forte na cena política mundial, até Bolsonaro chegar ao Governo – é obrigado para sobreviver, não só ceder a interesses lícitos, embora egoísticos, das elites públicas e privadas do país, mas até transformar o seu programa de mudanças estruturais possíveis em políticas compensatórias às vezes humilhantes, mas que podem ser feitas e devem ser feitas, para salvar as pessoas da morte pela fome. O Presidente Lula caminha sobre quatro tapetes, coalhados de pontas cortantes, que aguardam ansiosos sua desarmonia magistral, para cortar a sua vontade democrática, destinada a resgatar os miseráveis da miséria, os pobres da pobreza, bem como os deserdados do deserto do empreendedorismo individual, que resgatará poucos. Um primeiro tapete Lula precisa passar, para desbloquear recursos visando o combate a fome; outro, o segundo, ele transitará para unir a América do Sul num consórcio plural e democrático, para pensarmos juntos as relações com o mundo de maneira agregadora; um terceiro é o da Segurança Pública e Ambiental, espaço pelo qual Bolsonaro passou a sua boiada fascista e anti-ambientalista de forma ilegal vergonhosa; e o quarto tapete-armadilha, também minado pelo bolsonarismo, é o da segurança nacional e da defesa da nação, contra as cobiças externas de todos os lados.

Não nos enganemos, se não tivermos uma saída para coesionar a maioria do povo e inclusive parte das elites ricas, ainda democráticas do país, tudo será insuficiente, já que os mecanismos principais do poder não estão mais nas instituições ditas “fortes” do Estado Democrático de Direito, mas ancoradas nos “fluxos informacionais e financeiros” (Castells), sob controle de poucos, numa sociedade cada vez mais “líquida” e sem afetividade solidária, como nos mostrou Zygmunt Bauman na sua obra estupenda. É que o fascismo e a guerra vieram para ficar e de uma forma ainda mais cruel, porque o controle científico das almas – pelo domínio e o exercício restrito da opinião – sublima o presente de forma histérica e aniquila, de forma permanente, o que de humano ainda resta em cada um de nós. Ao contrário do que ocorreu na primeira gestão de Lula, onde o cenário mundial -nos seus debates políticos de fundo – ainda permitia transitar ideias impossíveis como o “não pagamento da dívida da dívida externa”, nos dias de hoje – com a destruição total da estrutura de governança do Estado brasileiro promovida pelo bolsonarismo – a capacidade técnica de gestão e a alocação das pessoas certas nos lugares certos, para reorganizar o Estado brasileiro, vai se tornar uma tarefa política de fundo, porque sem a efetividade desta prioridade inicial, todas as demais estarão desde já comprometidas.

A gestão do Estado Moderno, na sua complexidade e abrangência de funções, nunca foi para amadores. Hoje se pode dizer – nas circunstâncias de liquidação do Estado pelo bolsonarismo sociopático – onde os profissionais da destruição não deixaram pedra sobre pedra nas suas tarefas essenciais de Governo – que a gestão recuperadora das funções públicas do Estado é para profissionais de alto quilate e para políticos de capacidade extraordinária, já que Frente Democrática é uma conquista, não uma experiência para ser arquivada no espaço da memória de uma crise sem fim e sem fundo, sobretudo sem futuro democrático no sortilégio de nomeações improvisadas. Penso que Lula, em regra, vai bem e – por isso mesmo – deve se cuidar muito mais, para não errar. Afinal, o destino do país está nas suas mãos, legitimadas para um Governo de União Nacional contra o fascismo, contra a fome, contra a deserção e o “apartheid” social, que caracteriza o bolsonarismo, que permanece à espreita de uma oportunidade para abrir mais uma vez as portas do inferno.


*Ex-governador do RS, ex-prefeito de Porto Alegre, advogado, professor universitário, ensaísta, poeta. Foi ministro da Educação, das Relações Institucionais e da Justiça.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.


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