Opinião
A esquerda sitiada?
A esquerda sitiada?
De ENIO PASSIANI*
Passados já mais de dois meses do segundo turno, depois do alívio e da comemoração da vitória de Lula por vários setores, camadas e campos da sociedade brasileira e após vários artigos de avaliação e balanço a respeito das
eleições, bem como das possibilidades e limites do novo governo, peço licença e paciência ao(à) leitor(a) para oferecer a minha leitura a propósito do pleito, das dificuldades que a meu ver o novo governo enfrentará e, talvez mais importante, dos efeitos de tudo isso sobre a esquerda brasileira.
Antes de mais nada, qualquer avaliação minimamente ponderada deve reconhecer que Lula venceu Bolsonaro, mas não o bolsonarismo – algo, aliás, que o próprio Presidente Lula já admitiu recentemente.
O bolsonarismo implica um movimento social, político, ideológico e cultural cuja complexidade e abrangência ultrapassam em muito a figura daquele que empresta nome ao fenômeno. Ao meu juízo, Bolsonaro passará rápido, mas não o bolsonarismo, que resistirá tanto no âmbito político quanto se encontra enraizado em solo social.
No campo da política, Lula e sua coalizão enfrentarão a oposição de deputados(as), senadores(as), governadores e prefeitos ortodoxamente bolsonaristas. Tal disputa poderá esticar exagerada e perigosamente o 3º. turno das eleições, de modo a ameaçar a governabilidade. Podemos argumentar, com alguma razão, que na composição do próximo Congresso, embora majoritariamente conservadora, o grupo bolsonarista-raiz não é tão grande assim e que o Executivo Federal dispõe de recursos suficientes – econômicos, jurídicos etc. – que permitiriam a negociação e, quiçá, a conciliação. Diante da composição hostil do atual Congresso, a aprovação da PEC da transição sinaliza a força e capacidade de Lula e do vindouro Governo e produz certo otimismo e esperança quanto à governabilidade. No entanto, não se pode esquecer como se comporta o Centrão, que flutua conforma as conveniências e pode passar de aliado a adversário renhido num estalar de dedos. Enfim, cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém…
O que nos leva a uma segunda questão: qual o limite da conciliação? Até onde ela deve ir? A questão não me parece óbvia, tampouco fácil de responder, ainda mais quando se está dentro do governo e não de fora, avaliando, como faço agora, externamente. As negociações, provavelmente, serão constantes, o que poderá gerar algum desgaste do governo junto aos(às) opositores(as), aliados(as) e da própria imagem retratada pela mídia junto ao conjunto da sociedade. As negociações, como sugeri logo acima, não serão feitas apenas em relação àqueles(as) que se opõem ao governo, mas também – e principalmente – junto às(aos) aliados(as), o que pode, inclusive, antecipar desnecessariamente as discussões e acordos em torno da eleição de 2026: o PT terá candidato(a) próprio(a)? Deverá ter? Deverá se satisfazer com a vice-presidência? Deverá apoiar uma chapa em que renuncia a ambos os cargos? Mais uma vez, a questão não é fácil, pois divide petistas e não-petistas, e estes compõem o governo de coalizão, que me parece, neste momento, necessária, mas não consiste em algo simples e pode produzir efeitos contraditórios. O governo vencedor das eleições abriga em seu interior vários(as) potenciais presidenciáveis (Marina, Haddad, Tebet, Alckmin, Dino, e quem sabe quantos(as) mais), ameaçando o risco de tensão interna desde cedo.
Todo esse cenário até agora imaginado, caso se concretize, exigirá do atual Governo doses brutais de inteligência e imaginação políticas, e virtude suficiente para decidir quando engrossar nas negociações e quando recuar.
Há que se combater também o bolsonarismo que viceja no húmus social. Enfrentar o fascismo implica políticas públicas de longo prazo em vários setores, e pra ficar apenas em dois, interligados mas diferentes, cito a educação
e a educação digital – a este tema voltarei mais adiante, num texto futuro. Além das ações pedagógicas, não podemos descartar a ação do aparelho judiciário e policial nos casos mais radicais, o que também vai, provavelmente, exigir um certo (re)arranjo institucional.
Por fim, aquele que é, para mim, o tema mais sensível: a força do neofascismo tupiniquim trouxe para o seu próprio terreno a sintaxe, a semântica e até parte da agenda políticas. Atualmente a esquerda nacional joga no campo do inimigo, responde a certas questões e demandas nos termos do rival, que habilmente sequestrou temas e vocabulário próprios da esquerda, meio que a descaracterizando. Durante a campanha chegou a se debater quem era o cristão
mais autêntico, Lula ou Bolsonaro? A certa altura, se discutia se Bolsonaro havia mesmo sugerido o aborto do seu último filho, tema este, o aborto, central para uma agenda política mais progressista. Há quem diga que se estava tentando desmascarar Bolsonaro, apontar as suas contradições. Para mim, este tipo de postura não deveria sequer ser ensaiada na disputa. Ainda que num volume muito menor, a esquerda também se rendeu à produção e à difusão das fake News. Claro que se pode argumentar que vencer a eleição era decisivo para o futuro do país e numa guerra todas as armas são necessárias. Mas qual, pergunto, o efeito de tudo isso a médio e longo prazos? A esquerda, durante todo o processo eleitoral, se tornou a defensora da ordem moral e institucional burguesas, guardiã dos Três Poderes e da democracia representativa tal qual se apresenta entre nós já há algum tempo, em suma, aliada do status quo. A esquerda se viu “obrigada” a abandonar o discurso radical mais contestador daquilo que existe, surrupiado pela extrema-direita, e encontra-se impedida de questionar a chamada “normalidade democrática”, que, historicamente, revelou-se neste país violentamente seletiva e excludente. Diante de tal paisagem política, como e quando a esquerda voltará a ser esquerda? Como e quando poderemos novamente propor e agir em prol de uma radicalização democrática profunda, desbaratando privilégios e assegurando a emancipação e a dignidade de vastos setores de nossa sociedade? Parafraseando Vladimir Safatle, quando a esquerda não temerá mais dizer o seu nome?
O cenário é complexo, labiríntico, nada fácil, mas, mesmo assim, as mudanças políticas, socioeconômicas e culturais não podem esperar muito mais tempo, sob a ameaça de se tornarem cada vez mais difíceis e distantes.
*Professor do Departamento de Sociologia da UFRGS e dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Segurança Cidadã da mesma Universidade.
Imagem em Pixabay.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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