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Opinião

A depredação da Praça dos três poderes: um ataque dos fascistas que não suportam ver Lula subir a rampa com a diversidade democrática e popular

A depredação da Praça dos três poderes: um ataque dos fascistas que não suportam ver Lula subir a rampa com a diversidade democrática e popular

Artigo por RED
10/01/2023 10:52 • Atualizado em 16/01/2023 08:35
A depredação da Praça dos três poderes: um ataque dos fascistas que não suportam ver Lula subir a rampa com a diversidade democrática e popular

DE SÍLVIA CAPANEMA*

Muito se tem escrito e dito sobre a invasão e depredação dos prédios dos três poderes em Brasília. Mas pouco ainda se sabe sobre esse levante fascista até agora. Como foi organizado? Qual o perfil dos bolsonaristas presentes? Quem financiou? Qual foi a ação (ou inação) concreta das forças da ordem, polícia e exército, e de seus comandantes? As respostas reais para essas perguntas só teremos nos próximos dias, meses e anos, com a investigação e o inquérito policial, os processos criminais, com o trabalho dos jornalistas e, por fim, com as pesquisas em ciências humanas e sociais.
Mas já que as análises proliferam e elas nos fazem bem neste momento – são quase que vitais e necessárias – também arrisco umas linhas.

Para mim, dois elementos são essenciais na compreensão do ocorrido. Primeiro, a proximidade espacial e temporal que tais atos apresentam com a posse do presidente Lula – exatamente uma semana depois e no mesmo local. Em segundo lugar, o fato de que simbolicamente foi um ataque essencial à democracia brasileira, com a invasão, a destruição e a vandalização dos lugares dos três poderes-pilares definidos na Constituição de 1988: o legislativo (Congresso), o executivo (Planalto) e o judiciário (Supremo). Nenhum dos contra-poderes foi poupado. A destruição e ataque à democracia é total.

Fato é que eu mal tinha acordado do sonho que representou ver aquela maravilhosa posse, show de inclusão social, de criatividade, de responsabilidade, de confiança, de resistência (não só no nome da cachorrinha), de vitória dos estropiados, humilhados, explorados, silenciados. O quadro me parecia uma obra de arte perfeita. Um presidente operário de esquerda que ressurge do calabouço, retirado pela convicção e força da luta coletiva. Uma primeira-dama digna, dois discursos de chorar, com juras de amor eterno à democracia e resolução de combate à miséria, entremeados por um discurso correto de Rodrigo Pacheco. O ápice foi a subida da rampa, com o presidente eleito pela terceira vez em companhia de um professor de português, uma catadora de material reciclável negra (salve Carolina!) que lhe passa a faixa, o cacique Raoni, representante da resistência indígena, um portador de deficiência física ativista, uma criança negra e uma cozinheira. E como fundo, aquela multidão vermelha, representando os movimentos sociais, surgindo como verdadeiros botǒes de cravos na paisagem. « Foi bonita a festa, pá! »

Mas fomos ingênuos em imaginar por um segundo que eles, os fascistas, iam deixar barato. Se o golpe não tinha acontecido antes da posse, ele seria tentado logo depois. A presença fascista é uma realidade no Brasil há alguns anos, reunindo as velhas e conhecidas forças reacionárias de nosso país: escravocratas, ruralistas, milicianos, alguns pequenos e grandes empresários, rentistas, “classe média” branca, integristas religiosos, muitos militares e grande parte de uma categoria que seria próxima do que foi chamado por Marx de lumpemproletariado, ou seja, trabalhadores pobres e empobrecidos, desarticulados, desprovidos de direitos e de consciência social. “Deus, Pátria, Família”, nem o melhor livro de história poderia encontrar algo tão definidor da essência fascista, junto com o excesso de cores da bandeira nacional, com gente armada para defender a propriedade e sabe-se lá o quê, negacionistas, homofóbicos, a branquitude que não se coloca em questão ultra-representada. Talvez, gente com medo e perdida, muito perdida. Mas não há outro nome para o grupo: fascistas ressurgidos das cinzas. E claro que, organizados e legitimados por um presidente que ascendeu depois de homenagear um torturador, não estariam mesmo dispostos a deixar “o nosso samba popular passar” sem reagir.

Eles já estavam organizados há muito tempo. Como estudos demonstram, compõem um embrião que nasce das derivas de 2013, eclodem em 2014, se acentuam na crise econômica de 2015, se fortalecem no impeachment de 2016 e na prisão de Lula em 2018. Entram no poder por vias eleitorais em 2019. Nosso pesadelo maior. Eles governam com destruições e negações, mas perdem parte do apoio, interno e externo, aos poucos. Parte dos liberais e sociais democratas, aliados com eles num primeiro momento, não suportaram ver tanto lixo, ver esse « sanatório geral passar ». Muita gente percebe. Nisso, conseguimos salvar o Lula que nunca deveria ter sido preso, comprovando as irregularidades totais dos processos. E nossa luta pôde continuar.

Estava eu esboçando um texto, em francês e em português, sobre a posse de Lula justamente, sobre como a imprensa francesa não tinha percebido a força daquele momento, não tinha noticiado quase nada sobre os decretos sociais e humanitários assinados naquela noite do 1o de janeiro, sobre os ministérios de bem maior diversidade e justiça, preferindo enfocar na questão da Amazônia e insistir em buscar referências sobre a posição de Lula na guerra na Ucrânia e suas possíveis relações com Putin… Eu estava quase terminando esse texto. E eis que o Capitólio brasileiro acontece.

Na frente da televisão, ouvindo os jornalistas da Globo News chamar com propriedade os bolsonaristas de terroristas, ainda sem acreditar naquilo, começo a receber um batalhão de mensagens dos meios de comunicação franceses. Nunca recebi tantas chamadas num só dia. Todos, de todos os canais e imprensa, queriam explicações, uma fala genérica que fosse. Prudente e atônita, recuso as primeiras demandas. Preciso entender melhor, mas aceito as seguintes. Algumas. A imprensa francesa de repente quer saber tudo. E surgem boas coberturas em todos os lugares. Trata-se de um golpe? Qual o papel da polícia e do exército? Qual a implicação de Jair Bolsonaro nisso? E agora como fica o Lula? Reportagens curtas, longas, em todos os programas. Debates com quase uma hora de duração sobre o tema. Tudo isso na noite e no dia seguinte. E percebo claramente que uma posse que se passa bem, com valores humanos e progressistas, não rende muito além de algumas boas frases e manchetes. Mas conflitos, tensões e quebra-quebra, isso interessa imensamente mais. Aproveitemos então para debater.

De cara, é preciso entender o papel da polícia e das forças armadas. A ação do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, é mais do que suspeita. Como também não se pode deixar de pensar no envolvimento ou omissão do secretário de segurança pública Anderson Torres, ex-ministro de Bolsonaro e que se encontrava ausente e também em viagem à Flórida no momento das ações. A surpresa levantada pela mídia francesa era geral: o fato de haver muito pouco policiamento, quase nenhuma resistência às invasões e até mesmo uma conivência dos policiais, que acompanharam os militantes golpistas, alguns chegando a fazer fotos selfies com eles. Uma das imagens da chegada dos fascistas mostra nitidamente que os policiais presentes faziam uma verdadeira escolta do grupo. No dia seguinte, recebemos um áudio do responsável da segurança pública que substituía Torres, explicando ao governador que a ordem era acompanhar os « manifestantes », que eram pacíficos, sem mostrar desconfiança e claramente facilitando a ação deles. Omissão ou cumplicidade das forças da ordem abriram o caminho para a destruição, e as terríveis imagens que o mundo inteiro viu, que nos envergonham e entristecem. Ora, sabíamos que os bolsonaristas mais fanáticos estavam reunidos nos grupos WhatsApp e Telegram, proclamando valores golpistas e antidemocráticos. Já logo após as eleições, bloquearam estradas, sem resistência policial visível, e depois se organizaram na frente dos quartéis, para exigir a reação das forças armadas, um apoio que não veio como gostariam. Um homem foi encontrado antes da posse de Lula com importante material explosivo. Flávio Dino, escolhido como futuro ministro da justiça no período de transição, já apontava para o perigo, dizendo que « os acampamentos pró-golpe eram incubadoras de terroristas. »

Sabemos que empresários e grupos financiavam a aspiração de golpe. Durante a campanha presidencial, artigos da imprensa denunciaram a existência de um grupo de Whatsapp com 8 dirigentes de grandes grupos que discutiam como financiar uma reação golpista em caso de provável vitória de Lula, que foram investigados pelos ministros do Supremo. A ameaça golpista proferida por Bolsonaro era uma constante, com diversas falas contra as urnas eletrônicas, o sistema eleitoral, afirmando que não deixaria o poder de forma nenhuma, somente morto. Todos esses alertas faziam a sociedade civil reagir. Lembremos aqui dos atos do 11 de agosto último, nas ruas e faculdades de direito pelo país, dos diversos manifestos pela democracia, no Brasil e no exterior. O golpe era uma ameaça real. E a tentativa mais concreta foram os atos de invasão e destruição da praça dos três poderes, procurando provocar um estado de rebelião e que as forças armadas seguissem. Uma tentativa de desestabilizar o novo governo, considerado pelos autodenominados patriotas como ilegítimo, sem que se possa fazer nenhuma demonstração concreta desse argumento. O golpe fracassou.

A curto prazo, a ação dos poderes parece bem oportuna, do executivo, judiciário, em cooperação com os governos estaduais. No legislativos, certamente também haverá respostas e inquéritos. O argumento e uso da força da lei, a destituição dos acampamentos, a ação do Ministério Público, da polícia e da justiça, o afastamento do governador do Distrito Federal, as mais de 1500 prisões em flagrante ou preventivas, em menos de 48 depois do ocorrido, são boas medidas. A médio e a longo prazo, haverá a necessidade de uma nova afirmação da democracia, com pedagogia, e com a presença, sempre, do povo. Além disso, um trabalho de reconstrução, como previsto no lema do novo governo, mas também de recomposição e refundação das polícias e forças armadas. Precisamos mais do que nunca, como afirmou Lula no primeiro discurso de posse, proclamar e disseminar a cidadania, valor comum e outro nome de democracia. Entender fundamentalmente a diferença entre falso patriotismo e verdadeira cidadania. Aqui, falamos de cultura e educação formal e popular, de serviços públicos, de formas associativas e de direitos e deveres.

Os fascistas não me deixaram terminar meu texto com o prazer da nossa vitória, com o gosto da nossa esperança, com o sabor da nossa democracia. Defendo desde o início a ideia de que a democracia é algo importante demais, ela está do nosso lado na essência, pois faz parte da luta longa por conquistas sociais, humanas, igualitárias. Uma luta de talvez mil anos ainda, mas também de hoje, aqui e agora. A Constituição brasileira de 1988 é um passo nessa conquista, por avanços sociais, como cada povo experimenta de uma forma ou de outra criando seus direitos à saúde, à aposentadoria, à educação, à terra, à memória e assim por diante. Ela também foi consolidada como uma forma de virar a página da ditadura. E assim, para o fascismo personificado no bolsonarismo, a Constituição é uma inimiga, e os lugares de poder só são reconhecidos se forem submetidos à sua própria concepção de ordem e de progresso. A luta que eles dizem travar, não nos enganemos, é contra toda forma de progresso humano e emancipação social, é contra-revolucionária, conservadora, aristocrática, neoliberal, reacionária. Quem financia as operações, churrasco e ônibus desses militantes fascistas sabe bem disso, o inimigo número 1 é o Movimento dos trabalhadores sem terra, os indígenas e quilombolas defendidos pela Constituição, as esquerdas políticas, sindicais, de movimentos sociais. Nós, que estamos na pluralidade do campo democrático hoje, mas que conseguimos nos impor como a força central dele no Brasil que ganhou as difíceis eleições de 2022. Nós, que estávamos na plateia ou no palco na posse do Lula. A guerra deles é contra nós. Eles perderam o golpe. Mas nós ainda não ganhamos a guerra.



* Sílvia Capanema é historiadora, professora na Universidade Sorbonne Paris Nord, Parlamentar no Departamento da Seine-Saint-Denis (Movimento da França Insubmissa)

Fotos: Mídia Ninja

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