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Opinião

A democracia brasileira não vai à praia

A democracia brasileira não vai à praia

Artigo por RED
28/12/2023 05:30 • Atualizado em 01/01/2024 23:06
A democracia brasileira não vai à praia

De LUIZ EDUARDO SOARES*

Dedicado a Manuel Domingos, Pedro Celestino e André Castro

Li com perplexidade e indignação a entrevista ao Globo do governador do  estado do Rio, Claudio Castro, publicada em 16 de dezembro de 2023: “Estamos  pegando menores que estão desacompanhados de responsáveis, que não têm  documentação, e levando para que a gente faça a pesquisa social deles. Não há nada de mais nisso, não há cerceamento na praia. Quer ir à praia, leve seu documento, vá  com seu responsável, você vai poder curtir a praia numa boa.” 

A quem se dirige a ordem do governador, a qual condiciona o acesso à praia  de menores de 18 anos à apresentação de documentos e à presença de responsáveis? A frase é muito clara: dirige-se a todos que desejem ir à praia. Entretanto, nenhuma informação suplementa a ordem. Claudio Castro não diz, e  estranhamente o repórter não pergunta, como agentes do Estado montarão guarda  nos calçadões para verificar documentos e atestar a presença de responsáveis, os  quais, por sua vez, seriam identificados a partir de quais critérios? Todo o efetivo da  PM seria mobilizado? Muros seriam erguidos com catracas e guichês? A medida  seria aplicável a todas as praias fluminenses? Quantos recursos materiais, humanos  e financeiros seriam investidos? Quais bases legais sustentariam a iniciativa? As  prefeituras das cidades envolvidas haviam sido consultadas? Disponibilizariam  guardas municipais e outros funcionários públicos para viabilizar o controle  previsto na ordem do governador? Quais, exatamente, as faixas etárias alcançadas  pela ordem restritiva? A questão em pauta é, realmente, o acesso à praia ou se  estende aos bairros contíguos ao litoral? Jovens podem visitar livremente esses  bairros? Quaisquer bairros? Ou haveria também condicionantes restritivos à  circulação que não envolvesse as praias? 

Não, nada disso: o que a estrutura lógica e gramatical da frase indica no plano  semântico (a ordem é universal, dirigida a quem reside no estado do Rio) inverte-se  no subtexto (a ordem se dirige a alguns e algumas, não elencados, explicitamente,  mas subentendidos -não há dúvidas sobre quem são). Por outro lado, o acesso em tela de juízo não corresponde à chegada à praia, mas ao deslocamento cujo destino  seja a praia – deslocamento que seria interceptado na origem ou em algum ponto do itinerário. Acesso pode ser concebido como um bem (a ser potencialmente  usufruído -sendo comum, o benefício individual não reduz seu potencial de fruição),  um direito (a ser exercido), uma possibilidade (física, material, desde que haja  cidadãos e o bem de que trata o acesso, no caso, a praia) ou um ato (estar na praia,  aproveitar o que ela oferece, o que pressupõe tê-la alcançado, ter chegado a ela) e  um fato (a praia ocupada).  

As ações policiais que constituem a referência implícita da declaração de  Castro ocorrem no trajeto dos ônibus que transportam para a Zona Sul, nos fins de  semana, moradores das áreas mais pobres da cidade e da região metropolitana. É  nessas abordagens policiais que a triagem se faz. Os escolhidos são recolhidos a  abrigos onde aguardam averiguações até o anoitecer -digo escolhidos porque não  caberia aqui a categoria suspeitos, pois sequer há crimes em marcha, em  preparação, ou indícios de organização para seu cometimento– e ainda não  contamos com a antecipação paranormal dos investigadores de Minority report -o  filme de Steven Spielberg, inspirado no conto de Philip K. Dick. Percebam: ao  anoitecer, usualmente, esgota-se o prazo de validade da praia como espaço de  diversão. Portanto, Castro reconhece que a pena -sim, pena sem crime, sem  acusação- aplicada aos jovens antecede e independe do resultado das tais “pesquisas  sociais”. Voltemos à sua declaração: “Estamos pegando menores que estão  desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando para que  a gente faça a pesquisa social deles.”  

A frase do governador é maliciosamente elíptica, sob a forma do discurso  universal: em primeiro lugar, sob aparência de uma relação diádica (emissor, o  governador, e receptor, a audiência universal pela mediação do repórter e,  portando, do jornal), estipula, na prática, uma relação triangular, ao operar uma  distinção entre dois tipos de receptores: aqueles a quem realmente a ordem é  dirigida e os demais, não visados pelas restrições, que apenas testemunham o ato de  fala governamental e cujo silêncio obsequioso (o repórter cala as interrogações  cruciais) confirma, simbolicamente, a legitimidade e a autoridade do comunicado  emitido. Observe como a ironia mal dissimulada mascara a duplicação dos tipos de  receptores: “Quer ir à praia, leve seu documento, vá com seu responsável, você vai  poder curtir a praia numa boa.” Você remete a quem jamais se exigirá documentos  ou o acompanhamento de responsáveis e, simultaneamente, a quem será alvo da exigência. A superposição mal disfarça o facciosismo e o enviesamento da ordem do  governador sob a evocação do interlocutor universal. 

Em segundo lugar, o discurso é inquietantemente elíptico e dissimulado. Cito,  novamente: “Estamos pegando menores (…) e levando (…) Não há nada de mais  nisso, não há cerceamento na praia.” Não, nenhum cerceamento na praia, de fato. Na  praia temos atos (modalidades ativas do estar naquele local) e fatos (a ocupação da  praia) tautologicamente comprobatórios da presença, presença que é o avesso da  exclusão. Sendo assim, o acesso como um bem não foi negado, enquanto fato, ato ou  possibilidade (uma vez que quem não estivesse na praia poderia, em princípio, lá  estar -ninguém, em princípio, estaria impedido de exibir documentos e fazer-se  acompanhar de responsável -e o caráter discriminatório da aplicação das exigências  não macularia a afirmação do acesso como possibilidade universal). Daí se deduziria  que o direito fora preservado, o acesso como direito permaneceria respeitado,  protegido, tutelado, garantido. O pulo do gato violador está justamente na confusão  intencional e ardilosa entre acesso como direito abstrato (correspondente ao não  cancelamento da possibilidade de fruir) e direito objetivo (correspondente à  sustentação da equidade na distribuição das condições efetivas de experimentar a  possibilidade). Ninguém, no Brasil, está impedido, em princípio, de beneficiar-se da  educação pública, ou seja, o acesso à educação, do primeiro ao terceiro graus, é  possível -e esta possibilidade é um bem precioso tutelado pelas autoridades  responsáveis (do MP ao Executivo, passando pela Defensoria e a Justiça). No  entanto, há políticas afirmativas, como as cotas, e elas foram consideradas  constitucionais pela Suprema Corte, em decisão unânime. Para que servem as cotas?  Reduzir a iniquidade que se verifica, concretamente, na distribuição das condições  em que os grupos sociais experimentam a possibilidade. 

O governador do Rio está introduzindo fatores que reduzem a equidade na  distribuição das condições efetivas de vivenciar a possibilidade. Sua decisão  confronta princípio axial da Constituição, a equidade no acesso a bem público -ele  criou a anti-cota ou a cota para a exclusão. Trata-se de um experimento perverso na  linha do apartheid, com aspectos sociais e raciais. 

Confesso que as palavras do governador produziram em mim um efeito  devastador: se não há mais nenhum limite, nenhum pudor, se o cinismo pode se  expor sem pejo, se a racionalidade não é mais parâmetro para argumentos, se o discurso da autoridade máxima do Executivo pode sacrificar qualquer compromisso  com o respeito à inteligência dos interlocutores, o que esperar dos cidadãos que o  escutam? O pacto que estabelece as condições mínimas para o diálogo no espaço  público democrático estava rompido, unilateralmente. No vácuo, prosperam o  negacionismo e o niilismo, venenos corrosivos, armas de destruição em massa  daquilo que, um dia, com boas intenções (embora, idealistas), foi chamado senso  comum: o consenso mínimo indispensável à vida em comum, substrato que não  impede as diferenças, ao contrário, as torna possíveis e lhes dá sentido. O  governador atirou no que viu e atingiu o que não viu: alvejou a crítica do MP às ações  policiais e implodiu os alicerces inter-subjetivos da linguagem e da cultura. Castro  declarou guerra (sem quartel e bandeiras, a guerra hobbesiana pela subordinação  do sentido à força, a guerra de todos contra todos) ao minar o campo do mútuo  entendimento, ao implodir o discurso como espaço público da argumentação racional. E, como disse Shakespeare: quando falta a linguagem, prevalece a violência. 

Minha perplexidade se agravou ante o posicionamento do TJRJ. A manifestação do governador foi apoiada pelo presidente do Tribunal de  Justiça do Rio, desembargador Ricardo Rodrigues, que, conforme O Globo, em 16 de  dezembro de 2023, “revogou (…), neste sábado, a liminar concedida pela juíza Lysya  Maria da Rocha Mesquita, titular da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da  Comarca da Capital. Nela, a magistrada determinou que o governo do estado e a  prefeitura se abstenham de apreender ou conduzir crianças e adolescentes a  delegacias ou a unidades de acolhimento, a não ser quando flagrados cometendo  crimes. A medida fazia parte de ações preventivas da Operação Verão que reforça a  segurança nas praias do Rio (sic).” Segue a reportagem: “O presidente do TJRJ  também considerou que os casos de encaminhamento de adolescentes abordados à  instituição de acolhimento não violam seu direito de ir e vir (…) A ação foi movida  pelo Ministério Público que questionou a motivação das abordagens. O MP afirmou  que, nos dias 25, 26, 29 e 30 de novembro e 2 e 3 de dezembro, a Operação Verão  encaminhou 89 adolescentes para a Central de Recepção Adhemar Ferreira de  Oliveira (Central Carioca), na Cidade Nova, após abordagem de agentes de  segurança. Esses jovens, de acordo com a Promotoria, relataram que foram levados  sem qualquer explicação e que a equipe técnica constatou motivo para o  acolhimento de apenas um deles.”  

Mas a escalada de ataques à equidade prosseguiu. O principal órgão de  imprensa fluminense, O Globo, defendeu, em editorial, no dia 21 de dezembro, a  decisão do governador e as ações policiais. Referindo-se aos princípios  constitucionais e aos limites legais, o texto ponderava: “Todos esses aspectos devem  ser levados em conta. Mas não se pode perder a noção da realidade.” 

De que realidade se trata? A violência dos assaltos que vêm assustando  sobretudo os moradores de Copacabana. Essa violência é real, é repulsiva, deve ser  repelida, contida e prevenida. Mas há outra realidade: a violação dos direitos de  adolescentes negros e pobres, a humilhação arbitrária, a violência do bloqueio à  livre circulação e da subjugação discriminatória -eles pagam não por crimes que  perpetraram, mas porque têm a mesma cor e origem social de alguns dos  perpetradores; eles pagam para que governo e polícias prestem contas a quem, com  razão, cobra punição e controle, e ocupam o lugar dos verdadeiros culpados, que a  polícia não identificou e não prendeu. Eles pagam pela incompetência das polícias.  

Se há duas realidades a considerar, elas não são equivalentes e uma não serve  para justificar a outra, porque deter aleatoriamente não constitui política de  segurança, a violação racista da equidade não garante a segurança em Copacabana.  Aprofunda, isso sim, a apartação, objetiva e subjetivamente: por um lado,  endereçando o medo dos moradores da Zona Sul à população alvo das apreensões  policiais nos ônibus e, por outro lado, intensificando o sentimento de injustiça e o  justificado ódio contra policiais (e as instituições que os respaldam) dos jovens  impedidos de transitar até a praia. É esse o método do Estado democrático de direito  para esvaziar a tão criticada polarização que fratura a sociedade? É assim que se  promove a redução da violência e da criminalidade? 

O editorial conclui: “Claro que policiais precisam ter critério, não podem sair  por aí detendo adolescentes negros e pobres só para justificar seu trabalho. Mas cobra-se da polícia justamente que aja preventivamente, antes que os crimes  aconteçam. Isso pressupõe abordagens, revistas, checagens. O MP e a Justiça têm  papel importante para coibir excessos e cobrar respeito à lei. O trabalho da polícia,  porém, não pode ser cerceado. Isso só beneficiaria os infratores, que se sentiriam  livres para delinquir.”  

A superficialidade, a estreiteza e o clichê ideológico dão o tom. Custa crer que  um jornalista responsável tenha redigido uma frase tão inacreditavelmente enviesada, de fundamento tão insensível à dimensão racista de suas palavras: “Isso  (o cerceamento do trabalho policial, entendido aqui como a execução das ações  objeto deste artigo e daquele editorial) só beneficiaria os infratores…” Não  beneficiaria todas e todos os inocentes que sofrem o abuso autoritário? Não  beneficiaria o conceito de Justiça e a segurança jurídica, ao demonstrar que as  instituições se recusam a negociar o valor central da equidade no balcão demagógico  de medidas voluntaristas? 

Em 17 de dezembro, reagindo à decisão do presidente do Tribunal, as  deputadas do PSOL Renata Souza e Talíria Petrone entraram com representação no  Ministério Público do Rio e no MP Federal contra a apreensão e a condução de  adolescentes sem flagrante nas praias ou a caminho das praias. No dia 21 de  dezembro, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro recorreu ao instituto da  “reclamação”, dirigida ao STF, alegando que, na Adi 3446, o próprio STF já decidira  exatamente no sentido de proibir essas apreensões arbitrárias e discriminatórias. O  objetivo da Defensoria foi garantir a autoridade do Acórdão unânime da ADI 3446.  Ainda está sendo aguardado o posicionamento definitivo do STF. 

Enquanto prossegue a esgrima jurídica, o mais triste é constatar que não saímos do lugar. Em 1993, publiquei artigos e pesquisas sobre o mesmo tema. No  final de 1992, ocorreu o que viria a se denominar “arrastão” e o tema do acesso às  praias invadiu as manchetes. Nesses trinta anos, o Rio foi laboratório para a  brutalidade policial letal e as violações mais diversas, sempre sob o discurso de que  se o método não funciona é porque não o aplicamos com energia suficiente: seria  preciso mais do mesmo com mais força. A estupidez, o desprezo por evidências, o  negacionismo, a obsessão com a guerra às drogas e o encarceramento em massa nos  lançaram no precipício da barbárie. É fácil apontar o dedo para gestores e políticos,  ante a decadência do estado do Rio. Governadores e políticos presos, erosão  institucional, aumento da violência armada, avanço das milícias, declínio econômico,  expansão da informalidade e o eterno retorno das mesmas dinâmicas degradantes.  É fácil acusar os outros, mas e aqueles que se sentem representantes da consciência  imaculada das elites? Qual sua dose de responsabilidade nesse processo  lamentável? Aplaudindo a violação de direitos elementares, endossando a  humilhação da juventude pobre e negra, aceitando o pacto fáustico, é assim que será  revertida a queda no abismo? Não creio. Pelo contrário, agindo assim, aplicando golpe parlamentar contra a presidenta Dilma para entronizar uma agenda  neoliberal (a ponte para o futuro), apoiando atropelos de princípios legais para  prender Lula e exclui-lo da disputa de 2018 -abrindo passagem ao fascismo-,  tolerando o jeitinho para adequar a Constituição aos interesses utilitários do  momento, higienizando as praias de presenças inconvenientes, silenciando sobre  20.791 mortes provocadas por ações policiais, no estado do Rio, entre 2003 e 2022,  das quais menos de 10% chegaram aos tribunais, nessa toada, o poço será cada vez  mais fundo e nossa deblacle irrefreável. 

Por pacto fáustico me reporto à tentativa de obter a segurança a qualquer  preço, mesmo que seja vendendo a alma da democracia, mesmo que seja rasgando  a Constituição, mesmo que seja pela via do golpe, do jeitinho ou de um drible nos  marcos legais. Sustento -e fiz dessa crença o lema de minha militância- que a  segurança não será alcançada por esses meios, pois ou ela existirá para todos, ou  ninguém estará seguro. 

Antes de finalizar, seria interessante uma visita ao passado. Já fomos  diferentes. Tudo poderia ter sido diferente. Portanto, por que não pensar a sério em  mudanças profundas? 

Pois bem, era uma vez um lugar em que fez-se a luz -ou melhor, o sol imenso  do verão carioca. Mas quem pôs a rota do sol no mapa da democracia emergente foi  Leonel Brizola. Eleito governador, em 1982, apressou-se a abrir caminho a pobres e  negros. Além de inscrever no programa de governo compromissos antirracistas,  inspirados por Abdias Nascimento, Lélia Gonzales, Caó e Darcy Ribeiro, criou novos  acessos à cidade (Linha Vermelha), à educação (Cieps), à cultura popular  (Sambódromo) e à praia (o espaço público em que -supostamente- nos despojamos  dos signos da distinção e celebramos a igualdade). Eleger o líder gaúcho não  significava apenas reatar o presente às lutas que antecederam o golpe de 64,  retomando o fio da história; representava também afirmar uma perspectiva  cosmopolita e generosa, a melhor autoimagem que o Rio poderia oferecer a si  mesmo: acolhedor e avesso ao espírito rancoroso dos regionalismos provincianos.  O ensaio de uma social-democracia tropical à beira mar, reduzindo distâncias – sociais, materiais e simbólicas- para promover o grande encontro: a festa como  utopia. Por isso, em certo sentido, o acesso universal à praia estava no projeto de  Brizola como o parangolé na obra de Helio Oiticica: o experimento sensível para novas sintonias com a natureza e a coletividade; a aposta em cidades sem cancelas,  trânsito fluente, de norte a sul; espaços abertos e acessíveis; arenas urbanas  franqueadas à dança do convívio democrático.  

A esquerda menos inflexível e dogmática já tinha intuído o sentido profundo  da declaração dos titãs, na canção “Comida” de 1987: a gente não quer só comida, a  gente quer comida, diversão e arte. 

Em 1982, quando a população brasileira voltou a eleger governadores,  embora sob condições restritivas, a sociedade mudava e o mundo se aproximava de  grandes transformações: a derrocada da União Soviética e o surgimento da ordem  neoliberal globalizada. Enquanto isso, a ditadura brasileira, ao ritmo lento da  distensão gradualista, concluía sua obra, transferindo ao futuro um legado ruinoso:  dívida externa, inflação galopante, concentração de renda, medo, veto à  participação, censura, perseguições, torturas, assassinatos políticos e licença  ilimitada à violência policial com viés de classe, cor da pele e território. Governar os  estados, naquele período em que a ditadura tolerava o funcionamento de algumas  instâncias democráticas, exigia prudência e audácia, paradoxo desafiador  representado poeticamente sob a forma da “esperança equilibrista” -retrato de  época e tema da canção memorável de João Bosco e Aldir Blanc, que se convertera  numa espécie de hino da anistia.  

Havia um eleitorado com mil e uma demandas reprimidas e acumuladas a  contemplar; recursos escassos a administrar; parâmetros legais impostos pela  ditadura a observar; ambiente político instável a enfrentar; incerteza jurídica e, no  ar, ameaças tácitas de intervenção: a espada de Dâmocles do retrocesso erguida  sobre a cabeça das lideranças de oposição ao regime militar.  

Nessa atmosfera de esperanças, promessas, tensões e incertezas, em pleno  verão de 1984, Brizola determinou a criação de três linhas de ônibus, ligando a Zona  Norte à Zona Sul, passando pelo Túnel Rebouças: 460, 461 e 462. As praias  tornaram-se acessíveis aos moradores dos bairros mais pobres da capital. A  experiência de cidade mudou para quem estivera até então confinado à aridez do  que se chamava subúrbio. Mudou também para os frequentadores tradicionais, que  passaram a conviver com uma diversidade antes apartada e invisibilizada. Reações  racistas pipocaram e estão registradas em reportagens e documentários. O  governador foi criticado, circularam propostas de revogação das decisões sobre o transporte no fim de semana e houve até quem sugerisse cobrança de ingresso para  “filtrar” frequentadores e esvaziar as praias daquela gente indesejada. Indesejados,  claro, eram os pobres, os negros, os “suburbanos”. A tal democracia então emergente  começava a ser posta em cheque, nesse caso não pela ditadura, mas por suas mais  profundas condições históricas de possibilidade: o racismo estrutural e a  naturalização da hierarquia de classes, legados do colonialismo e da escravidão,  marcas atávicas do capitalismo autoritário. 

Uma peça chave dos entraves ao desenvolvimento da democracia foi e  continua sendo o “inimigo interno”, seja como imagem e símbolo, seja como  categoria e ideia, seja como prática e valor. 

A doutrina de segurança nacional instituiu a categoria inimigo interno, que  vinha sendo gestada pelo menos desde os anos 1940, no rastro da guerra fria e da  expansão da influência estadunidense. Operava-se assim, pela mediação dessa  figura conceitual, a sobreposição entre as áreas de incidência de dois tipos de  instituição: Forças Armadas e Polícias, as primeiras projetando sua autoridade  sobre as segundas -e não o inverso, naturalmente, por razões eminentemente  políticas. O papel de pivô dessa categoria (inimigo interno) é chave porque produz  um duplo giro: primeiramente, desloca os comunistas do lugar de oposição política,  desqualificando-os como atores legítimos na disputa ideológica e os redefinindo  como infiltração estrangeira, destinada a abalar a soberaria nacional. Mas não para  aí. No mesmo movimento, subrepticiamente, reposiciona os detentores  circunstanciais do poder e as Forças Armadas como expressões permanentes da  própria nacionalidade, manifestações imanentes do substrato essencial da nação,  que, por algum passe de mágica metafísico, ter-se-ia consolidado como unidade  territorial e institucional. Tudo se passa como se a nacionalidade emanasse do  espírito do povo e se encarnasse nos militares -conforme nos ensinou Manuel  Domingos. Continuamos sem saber o que significam nacionalidade, espírito e povo,  mas compreendemos muito bem o que está em jogo: quem se opuser a esse  amálgama ideológico-místico-político -amálgama identificado com a própria nação será considerado inimigo da nação. A etiqueta inimigo traz consigo consequências  práticas, na medida em que militares adotam linguagem e procedimentos bélicos  para enfrentar inimigos. Ao contrário do adversário, que põe em risco a manutenção  do poder, o inimigo representa ameaça existencial e deve ser eliminado, aniquilado, abatido, extinto, neutralizado. Aos adversários, a disputa de eleições; aos inimigos,  a morte. Duplo giro, insisto: o mesmo gesto conceitual que desqualifica o outro  qualifica quem o performa. Além disso, essa operação semântica engendra a tese das  almas gêmeas: a nação e as Forças Armadas; ambas emanações de uma essência  comum, destinadas ao enlace eterno. 

Por tudo isso, dissolver a categoria “inimigo interno” (abandonando,  portanto, a doutrina de segurança nacional) teria de ser a tarefa mais urgente e  decisiva da Nova República, gestada ao embalo do movimento “Diretas, já”, cujos  contornos foram ganhando corpo e voz ao longo da década, e que seria inaugurada,  finalmente, com a promulgação da Constituição cidadã, em 1988. Era preciso  desatar o nó que amarrava a política à guerra -isto é, aos militares-, destravar o  mecanismo que sobrepunha segurança nacional à segurança pública, militares aos  policiais. Em outras palavras, o compromisso número um do Estado democrático de  direito, para merecer esse título, no ato mesmo de sua instalação, teria de ser afastar  os militares da política e das polícias, ou seja, desmilitarizar a política e a segurança  pública. Caso contrário, as Forças Armadas continuariam tutelando a vida política, enquanto a ordem social da cidadania, fundada na garantia dos direitos individuais  e coletivos, permaneceria confundida com estabilidade do poder econômico  hegemônico sobre o Estado. Desse modo, a democracia estaria condenada a  simplesmente encenar o revezamento no governo de expoentes do mesmo projeto  hegemônico, assim como as polícias e o sistema penal seguiriam regidos pelo  “combate” aos “inimigos” (da “sociedade” ou dos “homens de bem”). 

Cumprimos a tarefa número um? Não, os constituintes enfrentaram limites  impostos pela correlação de forças -e, nas décadas seguintes, a prática deitou raízes,  seguindo o rastro das tradições mais sombrias, oriundas do fundo mais remoto de  nossa história. A ditadura se eclipsava mas ainda mantinha suas garras cravadas na  defesa não só corporativista, também ideológica e política, das Forças Armadas. Daí  o veto à Justiça de transição e à própria extensão da transição democratizante às  três forças e às polícias -cujo modelo forjado na ditadura permaneceu intocado na  Carta de 88. Criamos um monstro, que conviveu com muitas conquistas cidadãs, mas  as limitou. O monstro é um enclave institucional de dupla face, refratário à  autoridade política e civil. O gênio das Forças Armadas parecia aos incautos ter  voltado definitivamente à garrafa, até que um capitão a destampou. Já as polícias nunca sequer simularam a contenção, a subordinação a controles externos (nem  mesmo do MP) ou ao comando dos governadores. Engendramos um duplo enclave,  no meio da sala de visitas do Estado democrático de direito, que respira por  aparelhos, volta e meia esperneia e se afirma, outras tantas se recolhe, acuado,  concede, transige, recua. No horizonte, livre, leve e solto, o personagem endiabrado  caçoa de nós, e suja de sangue a República: o famigerado “inimigo interno” -esse  amálgama prático-moral-conceitual, que traz consigo forte apelo emocional. 

Na praia, é ele que expulsa a galera e grita “suburbanos”, chicote na mão,  vociferando: “não há inocentes na periferia, nas favelas não há, assim como em Gaza.  Cancelem as linhas de ônibus, murem os morros, invadam as favelas, exterminem os  malditos. Pau nos moleques, essa é a língua que eles entendem”. 

Que tal retomarmos daqui o fio da história?


*Antropólogo, cientista político e escritor. Foi secretário nacional de segurança pública e coordenador de segurança, justiça e cidadania do Estado do RJ.

Imagem em Pixabay.

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