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A cusparada no busto
A cusparada no busto
Por SOLON SALDANHA*
A atriz Fernanda Torres fez história ao se tornar a primeira brasileira agraciada com o Globo de Ouro. Ganhou na categoria Melhor Atriz Dramática, ao superar a concorrência de cinco atrizes da primeira linha do cinema mundial: Angelina Jolie (Maria Callas), Kate Winslet (Lee), Nicole Kidman (Babygirl), Pamela Anderson (The last showgirl) e Tina Swinton (O quarto ao lado). Venceu por sua atuação impecável em Ainda Estou Aqui, um filme de Walter Salles baseado em livro de Marcelo Rubens Paiva. O anúncio do resultado foi feito pela atriz Viola Davis, durante a cerimônia que ocorreu na noite do último domingo, em Los Angeles (EUA).
O livro, originalmente publicado em agosto de 2015, conta a história da família Paiva, relatando as consequências enfrentadas a partir da prisão, tortura e morte do deputado federal Rubens Paiva pela ditadura militar brasileira, em 1971. A figura central, papel vivido por Fernanda, é o da esposa de Rubens, Eunice Paiva. Mãe de cinco filhos, que precisou então criar sozinha, ela se reinventou a partir da dor. Jamais chorou na frente de câmaras, voltou a estudar, se formou advogada e lutou pelo reconhecimento do assassinato do marido até obter a certidão de óbito. O corpo jamais foi recuperado. Marcelo, o escritor da obra, era o único filho homem do casal, que teve também quatro meninas.
Inúmeros parlamentares foram cassados em nosso país, pelo arbítrio dos militares. Vários foram presos. Mas Rubens foi o único que, depois de detido, não retornou para casa. Dois bustos com sua imagem existem atualmente, como forma de reconhecimento à figura pública fiel aos seus princípios. Um deles está colocando na frente da antiga sede do DOI-CODI (*), no Rio de Janeiro, onde ele foi torturado e morto. O outro está no Congresso Nacional. Este segundo foi inaugurado exatamente na data da passagem dos 50 anos da ditadura, em 1º de abril de 2014. Durante a solenidade, que foi presidida pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, este lembrou em seu discurso ter sido seu próprio pai, Aluízio Alves, também cassado. E destacou ser muito importante “defender com rigor os ideais da democracia, assim como não esquecer das marcas e dos que se sacrificaram na luta”.
Agora, se algo chamou a atenção na inauguração do busto, não foi a presença dos familiares do agraciado, nem as palavras do orador oficial. O então deputado federal Jair Messias Bolsonaro, acompanhado de dois guarda-costas que eram verdadeiros armários – e asseguravam a sua coragem –, se fez presente mesmo sem estar convidado. Falando em voz alta que Rubens Paiva havia recebido o que merecia, se aproximou e deu uma cusparada na escultura, para surpresa e estarrecimento de todos. Talvez devesse ter respondido por falta de decoro, mas isso não ocorreu.
Essa impunidade foi fator que favoreceu suas atitudes intempestivas e várias vezes criminosas, ao longo do tempo. Seja na carreira militar, nos mandatos legislativos ou na presidência da República. Agora, ao menos uma certeza se tem ao lembrar disso: ele não está entre os milhões de espectadores que estão transformando este filme em um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro, de todos os tempos. E, para concluir: ao contrário do que seus seguidores andam espalhando via redes sociais, não houve financiamento público nem apoio via Lei Rouanet para a feitura da obra.
07.01.2025
(*) DOI-CODI é a sigla pela qual ficou conhecido o temido Destacamento de Operações de Informações – Centro de Defesa Interna, um órgão destinado à repressão e subordinado ao Exército Brasileiro, durante a vigência do golpe militar.
*Solon Saldanha é jornalista e blogueiro.
Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.
Foto de capa: Laura Tizzo/G1
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