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Opinião

A CONTRIBUIÇÃO DA MÍDIA GAÚCHA PARA A DECADÊNCIA DO RS – PARTE 5

A CONTRIBUIÇÃO DA MÍDIA GAÚCHA PARA A DECADÊNCIA DO RS – PARTE 5

Artigo por RED
24/06/2023 18:30 • Atualizado em 26/06/2023 15:32
A CONTRIBUIÇÃO DA MÍDIA GAÚCHA PARA A DECADÊNCIA DO RS – PARTE 5

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

ATUALIZADO ÀS 12H30 DE DOMINGO, 25/06.

Justiça é tratar de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais na medida de sua desigualdade. Aristóteles. Ética a Nicômaco

Se o Copom se levasse a sério … anunciaria a redução da taxa Selic. Não precisaria ser nada afinado com a racionalidade. Bastaria amenizar a impressão de que não conseguem nem mesmo arbitrar uma taxa segundo indicadores que eles próprios prodigalizaram. São apenas cumpridores das tarefas negociadas com os “Mercáduz”, onde todos vão depois ganhar o pão, e, como resta evidente, com o apoio quase unânime da imprensa. Nessa matéria, como se sabe, a ordem é cantar segundo o coro dos contentes. Inexiste direito ao “outro lado”. Reinaldo de Azevedo. Folha de São Paulo, 20/06/2023.

À Guisa de Prefácio: amigo é coisa pra se guardar

Telefono para um amigo que deu seus primeiros passos profissionais, cresceu, atingiu a pior idade e se aposentou dentro da Zero Hora e pergunto se minha saga sobre Dívida & Mídia está “causando” entre os pares. Ele diz que sim. Mas, em geral, negativamente. Pergunto o porquê. Resposta: “É que a inculcação ideológica atingiu tais patamares que os jornalistas e redatores da ZH já não se percebem como censurados, como obrigados a reproduzir a perspectiva política dos proprietários e das chefias. Eles se veem como analistas bem informados e politicamente neutros da realidade brasileira e gaúcha. Creio que aqueles que leram teus textos sequer entendem que se trata de uma crítica à ideologia. Eles a leem como se fosse apenas uma crítica a “este ou aquele colega”. Pasmei. Só não caíram todos os butiás dos bolsos porque desde guri que não os guardo mais na algibeira.

Outro amigo me liga para elogiar a fusão dos dois temas. Para ele, a crise econômica e social gaúcha tem duas bases: o crescimento exponencial da dívida pública estadual e a decadência intelectual e moral da mídia gaúcha. E relembra os tempos em que nossos jornais davam espaço para intelectuais como Valério Rohden, Pilla Vares, Goida, Enéas de Souza, dentre outros. Hoje nossos jornais reproduzem o padrão “desinformativo” das redes sociais. A lacração é mais importante do que a argumentação racional e ninguém mais parece ser capaz de distinguir entre opinião abalizada de senso comum pretencioso.

Outro amigo me escreve no zap para dizer que está adorando a saga, mas acha que a mistura de assuntos dificulta a plena compreensão e registro dos argumentos de ordem mais técnica e econômica. E pede, encarecidamente, uma síntese (se possível, pequena) sobre a evolução da dívida até Tarso, Sartori e Leite para que que ele mesmo possa organizar sua compreensão. Respondo que, se fizer isso, o texto ficará maior do que já tem sido. E temo perder (ainda mais) leitores. Mas concordo que o último capítulo da saga merece uma “arredondada econômico-financeira” nos fatos transcorridos. E me proponho a fazer esse resgate tomando como ponto de partida o governo em que a dívida gaudéria explodiu e cujo acordo firmado para “dar um fim ao problema” (como alardeava ZH) nos levou ao caos em que vivemos hoje: o Governo Britto.

A decisão de atender à demanda do terceiro amigo impôs um ônus e um bônus. Esta quinta parte da “saga” ficará ainda maior do que as anteriores. Porém, para não afugentar todos os leitores, vou fazer um esforço de síntese no tratamento dos três últimos governos. Não que eles mereçam menos atenção que os demais. Mas porque eles voltarão a ser objeto em outros trabalhos na RED.

Leia com cuidado: há Tabelas na pista (na dúvida, ULTRAPASSE e vá para a terceira seção!)

Todos os dados que apresentaremos abaixo foram extraídos de sites oficiais, em especial: 1) do site da SEFAZ-RS, onde estão presentes os Relatórios Anuais da Dívida do RS; 2) do site do Banco Central, que disponibiliza a série histórica da Selic; 3) da FGV, que calcula o IGP-DI; 4) do IBGE, que calcula o IPCA.

Como se vê no Quadro 1, o valor da dívida em termos reais só cresceu de forma expressiva nos Governos Collares (23,45%) e Britto (122,3%). O valor real da dívida no último ano do Governo Britto (R$ 104,2 bilhões) e no último ano do Governo Yeda (R$ 104,8 bilhões) é praticamente o mesmo. Só no Governo Tarso a dívida volta a apresentar algum crescimento (8,49% em quatro anos).

Como devemos interpretar estes dados? Seria correto deduzir que os governos Olívio, Rigotto e Yeda foram governos “responsáveis e probos”, enquanto os governos Collares, Britto e Tarso foram gastadores irresponsáveis? E desde quando Yeda e Olívio passaram a brincar no mesmo parquinho? E Britto agora anda de mãos dadas com Collares e Tarso? Estranho, né gente?

Na visão da mídia, Britto e Yeda são os Joãzinhos do Passo Certo. Fizeram tudibão: privatizaram, arrocharam salários deram subsídios para atrair grandes empresas (como a GM, a Souza Cruz e a Nestlé). Foram tão dedicados ao “dever de casa” que chegaram a tratar crianças como se fossem sardinhas, colocando-as em escolas de lata.

Já Olívio e Tarso, sabemos todos, são notórios gastadores: pagam salários em dia, fazem concurso público, dão reajuste, apoiam as empresas locais e – como se tudo isto não bastasse – são DO PT! Já Collares e Rigotto são tico-tico no fubá. O primeiro é mais tico-tico e o segundo é mais no fubá. Mas estão no limbo. Em suma: não são confiáveis.

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Bem, temos de reconhecer que há alguma verdade nisto tudo. O que envolve admitir que o crescimento vertiginoso da dívida pública durante o governo Britto não foi fruto de excesso de gastos.  Deve-se, acima de tudo, às taxas de juros usurárias impostas pelo Banco Central durante os primeiros anos do Plano Real e, secundariamente, à Lei Kandir de 1996. Estas duas medidas foram impostas com vistas a sustentar o Plano Real. Mas tiveram como “efeito colateral” a destruição das finanças dos Estados que – por determinações muito distintas – haviam constituído uma dívida relativamente elevada; algo próximo da Receita Corrente Líquida anual. Expliquemo-nos.

2.1. A triste e comovente história da dívida gaúcha e o Plano Real desalmado

A base do Plano Real é a âncora cambial. Durante os anos de hiperinflação, a moeda nacional deixou de operar como unidade de conta. Os produtores e comerciantes definiam o preço de suas mercadorias em dólares. Se uma calça custava Cr$ 20,00 e deveria ser vendida por Cr$ 40,00 (para gerar o lucro do fabricante, do comerciante, do banqueiro, etc.), este preço final era “indexado” em dólares. Se a taxa de câmbio fosse de Cr$ 2 por US$ 1, o preço de venda da calça era definido como US$ 20,00. Se o dólar subisse para Cr$ 3,00, a calça passaria a ser vendia por Cr$ 60,00. E assim por diante.

Em primeiro de julho de1994, o Governo Itamar (leia-se: FHC e a ekipeconômica que o acompanhou durante seu período de Ministro da Fazenda) instituiu uma nova moeda – o Real – e definiu que o seu valor era equivalente US$ 1,00 (com um espaço mínimo para flutuação). O que se almejava era congelar os preços dolarizados e impor uma queda abrupta da inflação.

Infelizmente, a medida não teve o sucesso esperado. A inflação (IPCA) do segundo semestre de 1994 foi de 18,57%; e foi de 22,41% no ano de 1995. Ou seja: nos primeiros 18 meses do Plano Real, a inflação acumulada no Brasil foi de 45,14%. Mas o governo insistia em manter a paridade 1 dólar = 1 real, temendo o retorno da inflação. Só que isto não era nada fácil. A turma do “mercado” estava cética. E começou a fazer o que mais gosta: especular.

Como pensa alguém que especula com câmbio? Vamos dar um exemplo empírico, tomando a indústria calçadista do RS (em crise desde o início do Real) como referência.

Imagine que, um calçado padrão produzido no Vale dos Sinos tinha um custo de produção de R$ 10,00 e era vendido com lucro, no país ou no exterior, por R$ 20,00. A partir de 1 de julho de 1994, R$ 20,00 passou a ser igual a US$ 20,00. Porém, em pouco mais de 18 meses, a inflação no Brasil foi de 50% e elevou os custos de produção para R$ 15,00. Para que o fabricante e o comerciante tivessem a mesma margem de lucro, o calçado teria que ser vendido a R$ 30,00. Ocorre, porém, que o calçado chinês era vendido – antes e depois do Plano Real – por US$ 25,00. Em julho de 1994 o calçado brasileiro era mais barato, pois podia ser vendido no mercado externo por US$ 20,00. Mas quando a inflação interna chegou a 50% e a taxa de câmbio ficou fixa, o calçado brasileiro ficou mais caro que o chinês. Nossa indústria calçadista perdeu mercado externo (especialmente, dos EUA) e perdeu mercado interno, pois o produto chinês começou a entrar no país com preço inferior.

Ora, o mesmo aconteceu em todos os setores da indústria. E passamos a exportar cada vez menos e a importar cada vez mais. Assim, a Balança Comercial começou a apresentar déficits crescentes e as reservas brasileiras em dólar começaram a cair. Ao mesmo tempo, a indústria nacional entrou em crise e passou a desempregar. Na avaliação dos especuladores, mais cedo ou mais tarde, o Brasil teria que desvalorizar o real frente ao dólar. E abre-se, então, uma oportunidade de ganho especulativo. Quem adquire dólares ao câmbio 1:1, mesmo sem fazer qualquer aplicação no exterior, ganhará uma fortuna se esperar até a desvalorização acontecer. Se o dólar passar a custar R$ 1,5, quem converteu 1 milhão de reais em dólares à taxa 1:1 ganhará 50% de lucro reconvertendo-os ao novo câmbio.

Ora, se todo mundo tenta comprar dólar na expectativa de que ele suba de preço, a demanda fica tão grande que ele acaba subindo mesmo. Só que o governo FHC tinha que impedir este movimento. O que ele podia fazer? Duas coisas:

  • oferecer uma alternativa ao especulador que lhe proporcionasse ganhos tão polpudos no mercado interno quanto na especulação. Como? Colocando os juros internos em níveis assombrosos, nunca dantes vistos na história do país e, quiçá, da humanidade.
  • Eliminar todas as tarifas e impostos sobre as exportações para ampliar a competitividade da indústria interna e estimular o ingresso de divisas para contar com as reservas necessárias para o atendimento da demanda dos especuladores renitentes.

Bingo. A “taxa básica” do Bacen – que é o piso e a referência mais baixa para todas as demais taxas de juros do país – foi elevada a patamares que fariam Shylock corar de vergonha. E como praticamente todos os impostos federais sobre exportação já tinham sido eliminados, o Governo Federal resolveu legislar sobre a principal fonte de arrecadação dos Estados, zerando o ICMS dos produtos exportados com a Lei Kandir. Tal como veremos adiante, em 2021 o STF abriu espaço para o questionamento do direito da União de interferir sobre a arrecadação fiscal dos Estados sem garantir plena compensação. Mas, à época, ninguém contestou a nova lei. Nem o RS; que apresentava uma das maiores taxas de exportação sobre o PIB dentre todas as UFs do país.

Pergunta que não quer calar: o Governo Federal errou ao realizar estes ajustes? A resposta é óbvia: sim e não. Errou por não ter previsto que a inflação não seria zerada com o “golpe de mestre” da âncora cambial. Houve uma clara subestimação dos desajustes de preços gerados por quase duas décadas de hiperinflação. Bem como do impacto diferenciado da âncora cambial sobre os setores tradables (que produzem bens importáveis e exportáveis, sujeitos à concorrência externa) e dos setores não-tradables (os serviços, que não podem ser importados). Porém, há que se reconhecer que, depois que a coisa degringolou, não havia como sustentar a política de combate à inflação sem elevar os juros e desonerar as exportações.

O problema é que isto não poderia ter sido feito às custas dos Estados Federados! Assumir que temos que pagar pelos erros do Governo FHC com “muito orgulho e muito amor” é pusilânime, é vergonhoso, é burro, é masoquista e é perverso. Mas, infelizmente, é o que a mídia gaudéria tem feito há décadas.  

Tomemos uma única dimensão do problema anunciado acima: os juros. Esta dimensão é suficiente para demonstrar que não há qualquer exagero no argumento de que o crescimento exponencial da dívida gaúcha é de exclusiva responsabilidade do Governo FHC. Para tanto, construímos os Quadros 2 e 3 abaixo.

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No Quadro 2, apresentamos a evolução do IGP-DI, do IPCA, da taxa Selic nominal e da taxa Selic real indexada pelo IGP-DI e pelo IPCA. Estas taxas – apresentadas por ano e acumuladas por Governo – é que vão nos permitir estimar o montante do serviço da dívida que foi pago entre o início do Governo Britto (1995) e o final do Governo Tarso (2014). Esta estimativa encontra-se no Quadro 3. Mas gostaria de frisar que se trata de uma mera estimativa e explicar porque.

Na verdade, não há como obter resultados absolutamente precisos sobre esta questão. Por quê? Por vários motivos. Mas dois são os mais importantes. Em primeiro lugar, porque existem inúmeros índices de inflação e indexadores, que geram resultados distintos para a atualização monetária, seja dos valores da dívida a cada ano, seja dos dos pagamentos realizados. Em segundo lugar, o RS não tem um único credor. Os valores que constam do Quadro 1 acima não correspondem apenas à dívida com o Tesouro Nacional, negociada por Britto em 1998. O Estado também deve para outras agências, sejam nacionais (BNDES, INSS, Pasep, etc.), sejam internacionais (Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, etc.). E apesar do Tesouro Federal ser o nosso principal credor desde 1998, responsável por aproximadamente 90% da dívida total, esta porcentagem variou ao longo dos anos. Alguns governos – como Yeda e Tarso – contrataram novos financiamentos. E o fizeram por motivos distintos. Por vezes, buscava-se quitar dívidas antigas, contratadas em piores condições. Neste caso, o pagamento de uma dívida equivale à contratação de uma nova; com distintas taxas de juros e prazos de carência e amortização. Mas também há contratações que são novos empréstimos, voltados a projetos específicos de desenvolvimento e infraestrutura. Todos estes elementos complexificam sobremaneira o cálculo preciso dos serviços da dívida efetivamente pagos a cada ano. Mas não nos impedem de estimar estes valores com razoável precisão. Senão vejamos.

O Quadro 1 está baseado em dados da SEFAZ-RS e nos informa que, ao longo dos 4 anos do Governo Britto, a dívida cresceu 204,95% em termos nominais e 122,3% em termos reais. Por sua vez, o Quadro 2 nos informa que a taxa Selic acumulada entre 1995 e 1998 foi de 207,48% em termos nominais e foi de 119,2% em termos reais (IGP-DI).

Bingo! O crescimento nominal e real da dívida no Governo Britto corresponde, quase à perfeição, às taxas de juros usurárias dos primeiros anos do Real. Afinal, vale lembrar que até meados de 1998, a dívida era rolada no sistema bancário privado; que opera com taxas superiores à Selic. Chega a ser surpreendente (e é quase digno de palmas) que a dívida total tenha subido tão pouco em anos tão anormais. Com certeza, não houve excesso de gastos no Governo Britto, mas houve excesso de juros no Governo FHC.

Não “bestante”, @s analistas econômicos da mídia charrua, sabem que todo o problema está na gastança, no empreguismo e na ineficiência do Estado. E têm uma solução muito simples: fazer do dever de casa. … Não há como deixar de lembrar de Mencken: “Para cada problema complexo existe uma solução simples, elegante e completamente errada”. A mídia charrua é expert em produzir soluções deste teor e qualidade. Com a convicção que só a mais profunda ignorância é capaz de produzir.

2.2. O dever de casa que “não fizemos”

A comparação dos Quadros 1 e 2 impõe uma pergunta: Britto pagou algo da dívida? Afinal, ela cresceu 122,3% a preços constantes. E a Selic real entre 1995 e 1998 foi inferior: entre 119,2% (se indexamos pelo IGP-DI) e 114,36% (se indexamos pelo IPCA) Se a dívida cresceu acima da Selic, isto significa que Britto não pagou nada? Não, ele pagou! Em primeiro lugar, porque a taxa de juros imposta à rolagem da dívida gaúcha pela legislação federal até 1998 era superior à Selic. Com as restrições impostas ao refinanciamento da dívida mobiliária pelo Banrisul, Britto teve que negociar com bancos privados. Que exigiam muito mais do que a mera Selic. Porém, mesmo tomando a Selic como referência, houve pagamento de serviço. Ocorre que o maior crescimento real da dívida se deu no primeiro ano do Governo (41,88%,), quando o montante ainda era “relativamente pequeno”. Nos demais anos – quando o montante já era elevado – o crescimento real da dívida ficou abaixo da Selic real. De forma que, nos anos finais, Britto alcança pagar parte do serviço da dívida. Assim como todos os governos desde então. O Quadro 3, abaixo, traz uma estimativa destes desembolsos. Como o construímos?

Tomamos o valor real (vale dizer: atualizado pelo IGP-DI e expresso em valores de 2022) da dívida a cada ano do Relatório da SEFAZ-RS de 2022. Esta é a nossa “variável A”. Subtraindo o valor real da dívida a cada ano do valor real do ano anterior, temos o valor da variação da dívida no período. Esta é a nossa variável “B”. Na sequência, calculamos qual seria a variação do valor real se não houvesse ocorrido qualquer pagamento do serviço da dívida. Esta é a nossa variável “C”. O cálculo da variável “C” envolve algumas simplificações. Em primeiro lugar, tivemos que ignorar a diversidade de credores, taxas de juros e indexadores. Supusemos que toda a dívida era rolada à mesma taxa, tomando por referência os credores principais. Durante o Governo Britto, usamos a Selic real (indexada pelo IGP-DI) como referência de rolagem. A partir do primeiro ano do Governo Olívio, passamos a usar como critério de “variação esperada da dívida caso não houvesse qualquer pagamento” os termos do acordo de Britto de 1998: IGP-DI + 6% de juros. Com estas variáveis, chegamos à estimativa do valor do serviço da dívida pago em cada ano. Ele corresponde à diferença entre o valor que a dívida alcançaria no ano seguinte caso não houvesse qualquer pagamento – variável “C” – e a variação efetiva da dívida divulgada pela SEFAZ-RS em seus relatórios – a variável “B”. Os desembolsos estimados encontram-se na coluna final do Quadro 3 (nossa variável “D”).

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Quais as principais conclusões do Quadro 3? Primeira: entre o início do Governo Britto e o fim do Governo Tarso o Tesouro do Estado pagou ao Tesouro Federal e demais credores algo em torno de R$ 94,4 bilhões em valores de 2022. Segunda: a dívida no início do Governo Britto era de R$ 46,8 bilhões e ao fim do Governo Tarso era de R$ 113,7 bilhões: ela foi multiplicada por 2,42 vezes. Logo, temos a terceira conclusão: após o pagamento de R$ 94,4 bilhões uma dívida inicial de R$ 47 bilhões, se transformou em uma dívida de R$ 113,7 bilhões.

Se se tratasse de uma relação de débito entre um usurário apoiado pela milícia e um cliente pobre e sem amparo legal da periferia do Rio de Janeiro, até se poderia compreender. Mas trata-se da relação entre dois entes da federação, supostamente solidários e juridicamente equivalentes em autoridade fiscal. Pelo menos este é o entendimento do Plenário do STF que, em julgamento de junho de 2021, invalidou, por inconstitucional, os dispositivos do Código Tributário Nacional que garantiam a preferência da União em execução fiscal.

Mesmo assim, nossos jornalistas “fofos” insistem na tese de que é preciso pagar tudo. Afinal, contrato é contrato. Se alguém toma, por livre opção, um empréstimo a juros flutuantes e, de repente, o agente financeiro resolve elevar os juros, o problema é do credor. Se, às novas taxas, a dívida do sujeito mais do que dobra em poucos anos, o problema é dele. Há que cumprir o contrato. Por que não fez o dever de casa? Era só ficar sem comer, prostituir a filha e a esposa, tirar o filho da escola e colocá-lo no negócio de powder delivery e trabalhar 24 horas por dia no táxi. Veja que belo exemplo daquele outro devedor que foi para o Norte e entrou no negócio de corte e venda de madeira ilegal! Ele fez o dever de casa e pagou tudo! Você não fez? Então entrega a casa, que a turma do tráfico está precisando de um novo ponto. Simples assim.

Para que se tenha ideia do que significam os R$ 94,4 bi que pagamos entre 1995 e 2014, vou dar alguns exemplos. A construção dos 2300 kms da Ferrovia Norte-Sul já em operação custou pouco mais de R$ 14 bilhões de reais. O trecho previsto para o sul do país – entre Chapecó (SC) e o porto de Rio Grande – terá algo como 800 kms de extensão. Mesmo imaginando que os custos por km no sul do país fossem 50% mais elevados em função do terreno irregular e do maior valor das desapropriações, a construção deste trecho custaria algo como R$ 7,3 bilhões, 7,8% do valor que pagamos ao Tesouro com o “dever de casa mal feito”. Com um valor equivalente, seria possível construir os ramais unindo todos os principais polos regionais econômicos – Erechim, Passo Fundo, Caxias/Bento, Novo Hamburgo, Santa Maria e Bagé – à nova ferrovia.

Segundo exemplo: ao final de 2019, a Confederação Nacional dos Transportes avaliou que a reparação e modernização de toda a malha rodoviária do RS custaria R$ 4,9 bilhões. Se atualizarmos este valor pelo IGP-DI chegamos a R$ 6,45 bilhões. Vale dizer: 6,83% dos valores consumidos pelo serviço da dívida. Com menos de R$ 5 bilhões seria possível duplicar as principais rotas rodoviárias que ainda são de mão única. E, dada a nova lei dos Portos do Governo Dilma, seria possível ampliar a área do Super Porto de Rio Grande (provavelmente, estendendo suas operações para São José do Norte) e concedê-la para a administração privada. Esta operação apresentaria um custo inicial em torno de R$ 5 bilhões, dos quais o Tesouro se ressarcia ao longo do tempo com os valores recebidos da concessionária. Em suma, com 33% do que pagamos de dívida, poderíamos ter a melhor infraestrutura logística do país. E ainda sobraria 67% para coisinhas tolas como “educação, segurança, saúde e salários”. Mas a mídia insiste: faltou fazer o dever de casa. … Ah, se eu não fosse essa água de poço, este verdadeiro Buda!

2.3. O que poderia ser feito?

Quando invadimos o terreno das possibilidades, é preciso ter alguma imaginação. Imaginemos um Brasil de governos probos e responsáveis, que respeitam o pacto federativo e a interpretação do STF da autonomia fiscal dos Estados. Imaginemos um Rio Grande do Sul unido, bem informado, brioso e disposto a lutar pelos seus direitos e por um mínimo de autonomia na gestão de seus recursos. E – o mais difícil – imaginemos uma mídia responsável e capaz de operar como impulsora e articuladora de um movimento de resistência à espoliação do Rio Grande Amado.  Neste mundo idílico, o acordo de 1998 poderia ser totalmente distinto. Apresentamos abaixo apenas uma dentre inúmeras possibilidades. Nossos termos seriam:

  1. o governo gaúcho assume para si o ônus dos juros usurários e da legislação bancária e fiscal predatória dos governos Collor/Itamar/FHC entre os anos 1991 e 1996, quando nossa dívida cresceu 100,86% pela rolagem bancária e desonerações;
  2. o governo gaúcho também abre mão de contestar a Lei Kandir, a despeito de sua discricionariedade, inconstitucionalidade e impacto desigual sobre Estados com distintos graus de abertura para o exterior. Em compensação;
  3. o governo federal assume para si a rolagem no mercado de toda a dívida gaúcha e a refinancia nos seguintes termos: c.1) independentemente da data da assinatura do acordo, a União tomará por referência o valor real da dívida do Estado em 31 de dezembro de 1996; c.2) este valor será pago com dispêndios anuais de até 13% da Receita Corrente Líquida do Estado; c.3) a dívida será indexada pelo IPCA mais uma taxa real de juros de 2%.

Como se pode ver no Quadro 4, só a mudança do indexador do IGP-DI para o IPCA já gera uma diminuição no valor atualizado monetariamente da dívida inicial. Em compensação, os valores atualizados pelo IPCA dos pagamentos anuais calculados no Quadro 4 também serão inferiores àqueles calculados no Quadro 3. Porém, como o valor da dívida é inferior desde o primeiro ano, e cresce a taxas mais baixas, agora, os valores pagos a cada ano e indexados pelo IPCA, permitem a amortização gradual da dívida; de sorte que ela seria integralmente quitada no terceiro ano do Governo Yeda.

Peço perdão aos não-economistas para introduzir uma nota técnica (quem tiver alergia a números pode pular este parágrafo). O ponto de partida para a determinação dos valores de cada linha do Quadro 4 são os valores presentes em sua última coluna: a estimativa do valor líquido despendido com o serviço da dívida a cada ano. Vale dizer: aquele que foi o ponto de chegada do Quadro 3, agora, é o nosso ponto de partida. Tomamos a última coluna do Quadro 3 (que estavam atualizados pelo IGP-DI) e os transformamos em valores “correntes”, multiplicando-os pela razão entre os valores das duas colunas do Quadro 1. Depois voltamos a atualizá-los monetariamente para valores de 2022. Só que, agora, utilizamos o IPCA como indexador. O segundo ponto de partida foi o valor da dívida nos três primeiros anos da série: 1994, 1995 e 1996. Eles também tiveram seus valores atualizados pelo IPCA. Só que, para estes anos, o cálculo do valor efetivamente pago seguiu o padrão utilizado no Quadro 3: indexamos o valor da dívida do ano anterior pela Selic-Real-IPCA, e calculamos quanto teria sido efetivamente pago pela diferença com valor da dívida atualizada do ano seguinte. Como o IPCA de 1995 (22,41%) foi muito superior ao IGP-DI deste mesmo ano (14,77%) a dívida no primeiro do governo Britto cresce assombrosos 52,37%. O que implica supor uma tomada de crédito substancial (de R$ 7,4 bilhões). Em compensação, a variação do montante da dívida é ínfima no ano seguinte, o que gera uma estimativa de saldo líquido de R$ 4,83 bilhões. Na verdade, a transição para o IPCA apenas amplificou os efeitos constatados no Quadro 3, que previa um rombo nas contas de Britto em 1994 e um pagamento relativamente pequeno do serviço da dívida em 1995.

A partir de 1997, os juros anuais devidos são calculados pela regra de 2% sobre o saldo da dívida do ano anterior. Subtraindo os juros da estimativa do valor pago atualizado pelo IPCA temos o valor amortizado. O qual é subtraído do saldo da dívida deixado do ano anterior.

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Como se pode ver acima, com a indexação pelo IPCA + 2% a partir de 1997, dívida do Estado teria crescido “apenas” 55% no Governo Britto (ao invés dos 122,3%). Ela teria decrescido -33,74% em termos reais no Governo Olívio (ao invés de meros -0,26%). Teria caído -54,86% no Governo Rigotto (ao invés de se elevar 1,84%). E teria sido zerada no Governo Yeda (ao invés de cair meros -0,99%).

Se fizesse o mesmo esforço de arrocho nos gastos, Yeda teria um excedente de R$ 6,16 bilhões ao final de seu governo. Vale lembrar que este valor corresponde a 85% do montante necessário para construir o trecho Chapecó – Rio Grande da ferrovia Norte-Sul. Tarso herdaria um Estado sem dívida e contaria com R$ 7,5 bilhões para construir todos os ramais ferroviários unindo os principais polos urbanos e industriais à Norte-Sul de Yeda. Os resultados seriam tão positivos para o desenvolvimento do Estado do RS que, talvez, quem sabe, oxalá, se Deus (e o outro) assim quisessem, até mesmo Sartori poderia ser um governador razoável.

Bem, talvez isto já seja pedir demais. Mas, enfim, nem só de realismo vive um economista. Um pouco de utopia, sonho, ilusão e delírio não faz mal a ninguém.

O Governo Tarso: uma aposta no desenvolvimentismo

No programa que Rigotto apresentou para a sociedade em 2002, enquanto ainda candidato, ele afirmava a intenção de resgatar as melhores práticas e programas de Britto e de Olívio. Prometeu, mas não cumpriu. Abandonou programas importantes de Olívio (como o Extensão Empresarial) e mesmo quando procurou dar alguma atenção às cadeias produtivas consolidadas do RS, cometeu atrocidades, como a concessão de subsídios turbinados para a atração da Nestlé, que impôs um grave desequilíbrio competitivo aos laticínios gaúchos. Se há um Governo ao qual podemos atribuir um real esforço de síntese dos projetos de Britto e Olívio, este é o Governo de Tarso Genro.

Ora, dirá o leitor atento desta pequena saga: mas o Governo Britto foi apresentado, até aqui, como um conjunto de equívocos! Pretender que Tarso tenha recuperado algo do mesmo não equivale a fazer uma crítica radical ao mesmo? Absolutamente, não. Por quê?

Em primeiro lugar, porque fazer uma síntese não é fazer uma “média”; nem envolve resgatar todas as ações de cada governo e atualizá-las. Britto foi o governo que mais privatizou. Leite está em busca deste troféu, mas ainda é medalha de prata. E Tarso não privatizou nada. Quando falamos em síntese pensamos, acima de tudo, em resgate com superação.

Ao contrário do que se pode pretender, o problema do Governo Britto não foi atrair empresas concedendo subsídios. Foi atrair empresas erradas e insustentáveis no RS (como as fabricantes de cigarros) e não atrair empresas relevantes (como a laminadora, que acabou se instalando em Santa Catarina). A percepção de que há “furos”, “ausências”, “elos fracos” em nossas cadeias produtivas e que o Estado deve contribuir para a superação dessas carências é correta e pertinente. O próprio Governo Olívio atraiu uma fábrica de MDF para o atendimento da cadeia moveleira e tentou atrair uma laminadora argentina para operar no Estado. E Tarso persistiu nesta perspectiva. Só que a transformou num dos pilares de seu projeto de Governo.

Por trás desta postura havia uma percepção essencialmente correta: a de que parcela não desprezível de nossos problemas fiscais estão assentados nas modestas taxas de crescimento da economia gaúcha nos últimos anos. O Governo Yeda (que o antecedeu), buscou equacionar o problema fiscal através do arrocho dos dispêndios. Tarso entendia que era preciso buscar, acima de tudo, a ampliação da receita. E que isto dependia de um projeto de crescimento e desenvolvimento econômico sólido e bem equacionado. Para tanto, criou a Agência Gaúcha de Desenvolvimento e Promoção de Investimentos, a AGDI. A principal função da AGDI era justamente a análise das cadeias produtivas gaúchas, identificação das suas carências e identificação das ações necessárias à promoção de sua competitividade. E, como não poderia deixar de ser, foram identificadas carências no fornecimento de insumos. Que foram enfrentadas pela retomada da política de atração de empresas com apoio em benefícios fiscais. Só que – ao contrário do que ocorreu no Governo Britto – os benefícios eram concedidos com o mais absoluto respeito à legislação e a partir de uma avaliação tecnicamente rigorosa de seus impactos sobre as empresas já instaladas (se elas existissem) no território do RS. Além disso, a política industrial e de desenvolvimento econômico de Tarso (ao contrário do que se dava no Governo Britto) não ignorava o papel das Micro, Pequenas e Médias Empresas na geração de emprego. Nem subestimava seu potencial de crescimento e ganhos de produtividade. Na esteira da política industrial de Olívio Dutra, os Arranjos Produtivos Locais (APLs) foram objeto políticas públicas específicas, também elas baseadas no mapeamento e dimensionamento destes arranjos a partir de pesquisas esmeradas que foram levadas à frente com o apoio da Fundação de Economia e Estatística.

Além disso, com vistas a minimizar o impacto desta política sobre a arrecadação estadual, foi montado um grupo de trabalho com técnicos da AGDI e das Secretarias da Fazendo, do Desenvolvimento e do Planejamento para avaliar o custo-benefício das concessões fiscais e desenvolver propostas de alteração na legislação do ICMS para garantir a sustentação e ampliação da exação fiscal. Todo este trabalho está registrado com maestria no livro Remando contra a Maré: Política Industrial e de Desenvolvimento Econômico no Rio Grande Do Sul, organizado pelos amigos Junico Antunes e Carlos Horn, que foram protagonistas na construção e condução das políticas ali analisadas.

Não cabe fazer aqui uma análise detalhada da política industrial e de desenvolvimento do Governo Tarso. Mas creio que dois comentários são pertinentes. Me parece que os gestores da política sobrestimaram a potência do Estado na promoção do crescimento econômico (e, por extensão, do crescimento da arrecadação). Não que o Estado seja incapaz de alavancar o crescimento. Mas esta potência é tão maior quanto mais ele foca sua ação em cadeias muito longas, já consolidadas e amplamente difundidas e espraiadas no território. Penso aqui, em especial, nas cadeias agroindustriais. Se se almejava uma resposta relativamente rápida em termos de ampliação das taxas de crescimento e da arrecadação fiscal, acredito que estes resultados teriam sido mais significativos se o foco fosse no agronegócio. Talvez se avaliasse que, por serem cadeias exportadora, focar nas mesmas traria poucos benefícios fiscais, dada a Lei Kandir. Mas esta avaliação me parece equivocada. Pois o ICMS perdido na exportação é reconquistado no consumo das milhares de famílias envolvidas com a produção agroindustrial.

No que diz respeito à gestão fiscal, há dois elementos a observar. Primeiro que o crescimento da dívida no Governo Tarso (identificado nos Quadros 1 e 3) é real, e expressa a compreensão de que a dívida não pode nortear todas as ações do governo, se isto o impossibilita de investir e promover o crescimento e o desenvolvimento. Para Tarso, insistamos, o problema da dívida deveria ser enfrentado pelos “dois lados”: tanto pelo controle dos gastos, quanto pelo apoio ao crescimento da renda e da arrecadação tributária. Mas isso não é tudo. Igualmente importante é o fato de que Tarso tomou novos empréstimos junto a agências internacionais. E, ao contrário do Governo Yeda, estes créditos não foram utilizados para quitar outras dívidas, mas para financiar investimentos e políticas públicas. Assim, o crescimento da dívida em seu governo não pode ser entendido como incapacidade de honrar com os compromissos assumidos com o Tesouro da União. Parte dele se deriva dos novos financiamentos.

Em segundo lugar, é muito importante entender que, ao longo de seu Governo, Tarso manteve uma interlocução permanente com a Presidente Dilma Rousseff, com a equipe do Ministério da Fazenda e com outros governadores com vistas a articular um novo acordo para a dívida, com a mudança do indexador para IPCA e a redução da taxa de juros. Estas tratativas foram bem sucedidas, e o novo acordo foi votado no Senado ao final de 2014. Porém, desde o final de 2013 que os termos do novo acordo já estavam definidos. O que permitiu uma gestão fiscal um pouco mais frouxa por parte da equipe de Tarso em 2014, que é justamente o ano em ocorre a maior variação positiva do saldo devedor.

O assombroso (e assombrado) Governo Sartori

Um amigo que leu os capítulos anteriores desta “saga” me questionou se eu consideraria o Governo Britto como o pior governo das últimas décadas. Respondi que Britto só era digno da medalha de ouro se tirássemos Sartori da disputa e o elevássemos a hors concour. Mesmo assim, persistiria uma dúvida: a disputa de Leite com Britto pelo primeiro lugar é acirrada. Não há juiz que possa dirimir esta questão sem apoio do VAR.

Mas ninguém precisa de VAR ou de juiz para reconhecer que Sartori é o nosso grande goleador. Pena que ele só faz gol contra.

O RS já foi uma referência nacional em termos de planejamento e eficiência do setor público. A persistente crise fiscal não levou apenas à depressão da capacidade de investimentos do Estado, manifesto nas péssimas condições de nosso sistema logístico, que já foi um dos melhores do país. Ela também levou à depressão dos salários do funcionalismo e às crescentes dificuldades de renovação de seus quadros. Não obstante, até Sartori, ainda contávamos com agências de excelência, de reconhecimento nacional e internacional. Um desses polos eram as Fundações Estaduais, dentre as quais cabe destacar a Fundação de Economia e Estatística, o Cientec, a Fepagro e a Fundação Zoobotânica. Técnicos de agências estaduais com funções similares eram visitantes contumazes das nossas Fundações. Vinham não só para levantar dados ou acompanhar pesquisas. Na era da internet, este material encontra-se disponível web. Eles vinham para entender o sistema de organização, de pesquisa e de troca de informações dentro das Fundações que lhes garantia uma produtividade absolutamente ímpar. Estas Fundações – e o seu sistema de organização interno – foram extintas por Sartori. Aparentemente, ele acreditava que poderia demitir seus funcionários, por serem celetistas. Era tamanha a certeza, que Sartori contratou e pagou uma fortuna para que a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP fizesse o cálculo do PIB do RS e de seus municípios. Sem conhecer o RS e sem o banco de dados da FEE, os cálculos se mostraram de péssima qualidade. E esta “lambança” foi feita sem que um único técnico da extinta FEE tivesse sido demitido. Aparentemente a assessoria jurídica de Sartori não sabia que o padrão de concurso para o ingresso nas Fundações impedia qualquer demissão sem justa causa. De sorte que elas foram destruídas sem que isso gerasse qualquer “poupança com pessoal”. Na verdade, os gastos aumentaram, com a contratação de serviços desnecessários. E todos resultados pioraram. Esta é a cara do Governo Sartori: a incompetência.

São tantos os “causos” reveladores desta face de seu (des)Governo, que daria para preencher mais de um livro. Mas deixe-me contar apenas mais um, pois é tão revelador quanto hilário. De certa feita, Sartori foi ao Uruguai em visita oficial. Só que seus assessores se “esqueceram” de informar que o Governador iria na aeronave do Estado. Resultado: assim que o avião adentrou o espaço aéreo do Uruguai, os pilotos foram comunicados que a nave era clandestina, não tinha autorização para sobrevoar o país e que deveriam retornar. Sartori insistiu em ir para Montevideo. Foi recepcionado no aeroporto da capital pela Polícia Nacional. Não será preciso dizer que nenhuma das atividades previstas em sua visita realizou-se a contento.

Aqui se encontra o “segredo” de seus problemas fiscais. Sartori recebeu de mão beijada uma renegociação da dívida estadual com a União que foi conquistada ao final do Governo Tarso. Em novembro de 2014, o Senado aprovou a Lei Complementar 148/2014 que instituiu a renegociação do acordo firmado por Britto e Malan (representando FHC) em 1998. A Lei 148/2014 alterou o indexador do montante (do IGP-DI para o IPCA), alterou a taxa de juros (de 6% para 4%; ou Selic nominal, se ela fosse inferior ao IPCA + 4%); e retroagiu as alterações para janeiro de 2013. Como a Lei 148 não foi regulamentada imediatamente, ela abriu espaço para que os desembolsos mensais do Tesouro do RS ficassem abaixo dos 13% da Receita Corrente Líquida. Esta era uma imposição da Lei 9496/1997, que serviu de base para o acordo de Britto/Malan de 1998. Uma imposição à qual Sartori se esquivou já no primeiro ano de sua gestão. Em setembro de 2015 ele passa a atrasar e diminuir os valores repassados ao Tesouro da União. O qual reage suspendendo as transferências constitucionais para o Estado. Em resposta, Sartori entra com uma nova ação junto ao STF, demandando a retomada dos repasses federais independentemente do Estado haver, ou não, realizado o pagamento do serviço da dívida. O Ministro Fachin dá parecer favorável ao Governo Gaúcho. E Sartori deixa de pagar a dívida desde então. Não pagará mais nada, até o fim de seu mandato.

Ufa! Finalmente o Tesouro se livrou dos usurários dispêndios mensais que comprometiam 13% da Receita Corrente Líquida. Certamente essa folga vai lhe permitir cumprir com seus demais compromissos, certo? Afinal, até aqui, todos os governos haviam conseguido pagar (mesmo que de forma parcial) os serviços da dívida e arcar com salários, aposentadorias e despesas de custeio. Sartori ganhou uma folga. Logo, vai surfar na boa onda, certo?

Errado. Não há como subestimar a incompetência do Governador “Quer piso? Vai no Tumelero”. Nunca um governador atrasou e/ou parcelou tantas vezes o salário do funcionalismo. Até a RBS fica chocada. Em matéria de avaliação de seu (des)Governo ao final do mandato, lê-se

Jamais um governador atrasou tantas vezes o pagamento do funcionalismo como Sartori. Foram 36 meses de incertezas para os servidores do Executivo, que não sabiam quanto nem quando iriam receber. No começo, os salários eram parcelados. Em agosto de 2017, míseros R$ 350 foram destinados a cada servidor. No mês seguinte, o governo passou a pagar primeiro os menores vencimentos, com faixas escalonadas de depósitos. Em novembro, houve o temido encontro de folhas, com os salários de outubro quitados somente em 30 de novembro. (ClicRBS, 21/12/2018)

Vale ler a matéria acima na íntegra. Ela é exaustiva. Não há porque dizer mais nada. E surge uma dúvida: será que nossa mídia mídia recobrou sua capacidade crítica? Não. De forma alguma.  Trata-se apenas da velha regra: rei morto, rei posto. Viva o novo rei. A matéria é de 21 de dezembro de 2018. Leite já estava eleito. E, agora, ele é o novo herói.

Leite, o bem-amado

Eduardo Leite foi o primeiro Governador do RS a conquistar uma reeleição desde o fim da ditadura militar. Na avaliação de muitos, trata-se da prova cabal de que seu primeiro mandato foi aprovado pela maioria. Será mesmo? Leite só conseguiu ir para o segundo turno porque obteve 2.441 votos a mais que o terceiro colocado. Edegar Pretto, do PT, era um candidato relativamente desconhecido. Sua candidatura foi, inclusive, objeto de contestação por parcela não desprezível das forças de esquerda, que propugnavam a construção de uma grande frente em torno de um candidato mais competitivo. E, mesmo assim, quase tirou Leite do páreo. Não são poucos aqueles que avaliam que Leite só superou Edegar porque contou, já no primeiro turno, com alguns muitos votos da esquerda “anti-Onyx” que duvidava da capacidade de Edegar vencer o candidato de Bolsonaro no segundo turno.

A mim parece que a segunda leitura é bem mais razoável do que a primeira. Com isto não estou pretendendo que o anti-bolsonarismo tenha sido a única determinação da reeleição de Leite. Há várias outras. A começar pelo fato de nenhum outro Governador, desde Britto, ter sido tão incensado pela mídia. Além disso, Leite mostrou-se muito hábil na construção de sua base parlamentar. Incluiu praticamente todos os Partidos no primeiro e segundo escalão de seu governo, excluindo tão somente o PT e o PSOL. E exponenciou o valor das emendas parlamentares, em detrimento do orçamento dos Coredes para a Consulta Popular. Não creio que Arthur Lira tenha algo para lhe ensinar. Leite sabe conquistar aliados e cabos eleitorais nos grotões do Rio Grande Amado. Como se isto não bastasse, ele é jovem e bonito. E isto é mais relevante do que pode parecer. Para aquele eleitor que acredita que todo o político é igual, este pode ser um bom critério de desempate. Afinal, se teremos que ver fotos e vídeos do futuro Governador na mídia impressa e digital, é melhor que ele tenha um visual agradável, não é mesmo?

Mas o que realmente importa entender é que Leite não foi reeleito porque o povo gaúcho aprovou sua gestão. E nem poderia. Leite surfou no calote dado por Sartori ao pagamento do serviço da dívida e tampouco a pagou até o final de seu mandato. Tal como Sartori, Leite atrasou salários e parcelou o 13º. E, como se isto não bastasse, impôs uma reforma administrativa e previdenciária que gerou perdas reais não desprezíveis ao funcionalismo. Além de tudo, Leite “pisou no pala” ao incidir, repetidas vezes, naquela que é uma das poucas regras éticas da qual comungam gaudérios de direita e de esquerda: o princípio do fio de bigode. Leite disse que não concorreria à reeleição, e concorreu. Leite disse que não atrasaria salários, e atrasou. Leite disse que iria recuperar as Fundações extintas por Sartori, mas não o fez. E estes são apenas alguns dos inúmeros exemplos em que Leite faltou com a verdade. E o povo tem mais memória do que parece. Júlio César deu a deixa há mais de dois mil anos: mais importante do que ser honesto é parecer honesto. Leite fez tantas, que já não parece ser aquilo que ele nunca foi.

A não ser para a mídia, claro. Em 14/09/2022, a Zero Hora anunciava o compromisso inquebrantável do então candidato Leite com o Regime de Recuperação Fiscal tal como ele havia sido assinado por Ranolfo Vieira, seu Vice-Governador no primeiro mandato e que o havia substituído quando postulou sua candidatura para Presidente.  O candidato afirmava que as finanças estavam ajustadas e não seria preciso mudar nada. Em janeiro de 2023, Juliana Bublitz comemorava o dream team que Leite havia trazido para a SEFAZ. A começar pela nova Secretária da Fazenda, responsável pela renegociação que nos levou ao Regime de Recuperação Fiscal. Em 15/06/2023 o mesmo veículo anunciava que o Governo Leite buscava nova negociação com o Governo Federal, pois havia ficado claro que, no máximo em cinco anos, a dívida se tornaria impagável.

Alguma surpresa da mídia? Alguma crítica a Leite por ter, mais uma vez, mentido? Alguma autocrítica do veículo por divulgar “notícias” que contribuíram para a reeleição de um sujeito que muda a versão dos fatos com uma facilidade assustadora? Não. Nenhuma.

Tal como as ovelhas da Revolução dos Bichos de Orwell, a nossa imprensa e seus jornalistas estão sempre prontos a apoiar e justificar qualquer movimento dos governos liberais. Até mesmo quando cometem falsidade ideológica. Parafraseando Goebbels: assim como uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade, uma verdade sobre a qual se guarda total silencio, torna-se mentira.


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).

Este é o quinto e último texto da série de Carlos Paiva intitulada A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS. 

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