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Opinião

A Constituição de 1988 sob a perspectiva trabalhista

A Constituição de 1988 sob a perspectiva trabalhista

Artigo por RED
01/11/2022 17:33 • Atualizado em 03/11/2022 08:23
A Constituição de 1988 sob a perspectiva trabalhista

De FERNANDA BARATA SILVA BRASIL*

A evolução do constitucionalismo reflete a dinâmica da vida em sociedade e seus desafios ao longo da história. E foi assim que surgiu o modelo de constituição que veio dar conta do Estado Liberal. Tratava-se de proteger o indivíduo de um estado tirânico, lhe assegurando as liberdades individuais, os direitos civis e políticos. Instituíram-se, então, os chamados direitos fundamentais de primeira geração: direito à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, ao voto, ao acesso à justiça, entre outros.

O progresso tecnológico e o estabelecimento de uma sociedade industrial fez com que um novo paradigma surgisse, emergido da tensão social relacionada às condições de vida e trabalho da então nova classe operária urbana: o Estado Social, que tem por norte promover a justiça social, concretizando o princípio da igualdade no plano material, e não meramente formal, como nos ensina Paulo Bonavides¹.  Estabeleceram-se, então, os direitos fundamentais de segunda geração, de viés econômico, social e cultural, e que impõem ao estado o dever de prestar aos seus cidadãos educação, saúde, assistência e previdência social, moradia, lazer, cultura, proteção aos idosos, às mulheres e às crianças, bem como políticas públicas que promovam o acesso ao trabalho e à renda dignos, entre outros direitos tendentes à diminuição da desigualdade social. A propósito dessa etapa evolutiva dos direitos fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet destaca, para além dos direitos sociais positivos (garantidores da participação ao estado de bem estar social) as “liberdades sociais”² , exemplificadas como direito à greve, liberdade sindical, limite de jornada, salário mínimo, etc, ou seja, direitos trabalhistas, direito ao trabalho, mas, especialmente, o direito da classe trabalhadora de se organizar coletivamente para garantir condições de vida e labuta mais dignas.

Nossa Constituição Federal de 1988, que aniversariou no dia 05 de outubro, tratou de garantir direitos fundamentais de primeira e segunda gerações, assim como cuidou dos direitos fundamentais de terceira geração, de natureza coletiva e difusa, e de titularidade transindividual, como os direitos ligados à defesa do patrimônio histórico e cultural, do meio-ambiente, da autodeterminação dos povos, etc. Mas, acima de tudo, a Carta Cidadã inovou no plano dos direitos sociais, deslocando o direito ao trabalho (art. 6º, caput) e os direitos de proteção ao trabalhador (art. 7º) e à sindicalização (art. 8º) das disposições relativas à Ordem Econômica e Social, onde eram tratados em Constituições anteriores, para o capítulo dos direitos fundamentais, marcando a relevância desse complexo de direitos e garantias para a estruturação do Estado Brasileiro. Aliás, nossa Carta Magna, já no seu art. 1º, estabeleceu que os “valores sociais do trabalho” (inciso IV) integram os fundamentos da República Federativa do Brasil, ao lado da livre iniciativa, o que por si só demonstra a relevância que as relações de trabalho ostentam na organização da nossa sociedade e seu ordenamento jurídico.

Com efeito, os direitos trabalhistas, presentes desde a Carta Constitucional de 1934, ganharam destaque na Constituição de 1988, consideradas as dimensões quantitativas e qualitativas, alcançando status nunca antes ocupado na tessitura dos Diplomas Constitucionais brasileiros.

Considerados reflexos diretos dos princípios da dignidade humana e da igualdade, os direitos ao trabalho e de proteção ao trabalhador obrigam o estado a empreender políticas que fomentem a geração de empregos e a qualificação do trabalhador, assim como lhe compete garantir o pleno e livre exercício da atividade sindical e fiscalizar o cumprimento dos direitos trabalhistas que vinculam empregados e empregadores.

A lista de direitos consagrados no art. 7º da Constituição Federal é extensa, envolvendo desde o prazo prescricional para o ajuizamento de reclamatórias trabalhistas (inciso XXIX), até prestações de cunho humanitário, como a aposentadoria (XXIV), garantia de uma velhice digna, e a licença à gestante (inciso XXVIII) que não apenas protege a mulher grávida, mas, acima de tudo, visa a assegurar a saúde e bem estar do nascituro, protegendo nossas futuras gerações.

Para além da plêiade de direitos positivos assegurados na Constituição, porém, como décimo terceiro salário, limite de jornada, adicionais noturno e de horas extras, férias anuais, aviso prévio, etc, nos interessam os princípios consagrados pelo Texto Maior e que informam toda a cadeia hierárquica de normas trabalhistas: princípio da proteção ao trabalho e a prevalência da condição mais favorável ( “art. 7º, “caput”- São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social’); princípio da irredutibilidade salarial (art. 7º, inciso VI), princípio da isonomia salarial e de tratamento (art. 7º, XXX); princípio da não discriminação (art. 7º, incisos XXX, XXXI, XXXII).

Vólia Bomfim³ ainda enumera outros “princípios constitucionais específicos do Direito do Trabalho” assentados no art. 7º da Constituição de 1988, a propósito dos quais paira controvérsia quanto à sua natureza de “princípios”, efetivamente, a despeito de sua inequívoca relevância: princípio da proteção contra a despedida arbitrária (art. 7º, inciso I); garantia de salário mínimo digno, capaz de atender às necessidades básicas e vitais do trabalhador e de sua família (art.7º, IV); periodicidade de reajuste do salário mínimo (art. 7º, IV); princípio da proteção do mercado de trabalho da mulher (art. 7º, XX), do reconhecimento dos Convênios Coletivos (art. 7º, XXVI); princípio da proteção do trabalhador em face da automação (art. 7º, XXVII); princípio da proibição do trabalho infantil e proteção de trabalho noturno, perigoso e insalubre ao adolescente (art. 7º, XXXIII); princípio da redução de riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII) e do seguro contra acidentes do trabalho a cargo do empregador (art. 7º, XXVIII).

O mais importante, porém, parece ser o disposto no inciso I, do comentado art. 7º, que consagra o direito à “relação de emprego”, ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha decidido, nos autos da ADPF 324 e RE 958252, com repercussão geral, que “A Constituição Federal não impõe a adoção de um modelo de produção específico”, decisão essa que republicanamente se respeita e observa, a despeito de com a mesma não se concordar.

Temos, por fim, ainda dentro do capítulo dos direitos fundamentais, princípios relativos à organização sindical e que se encontram no art. 8º da Constituição Federal: liberdade sindical, (art. 8º, caput); princípio da não interferência estatal nos sindicatos (art. 8º, inciso I); unicidade sindical (art. 8º, inciso II); livre filiação sindical (art. 8º, inciso V), princípio da necessária intervenção sindical nas negociações coletivas (art. 8º, inciso VI), garantia do sistema confederativo (art. 8º, inciso IV) e subordinação do sindicato à vontade da assembleia (art. 8º, inciso IV), sem falar do direito fundamental à greve, constante do art. 9º da Carta Maior.

Não bastasse essa consideração elevada, entre os direitos fundamentais, o trabalho e seu tratamento social e jurídico voltou a ser objeto de cuidado do constituinte de 1988 no art. 170, que diz com a ordem econômica brasileira a qual, nos termos do que ali se assentou, é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (caput), tudo de modo a assegurar a todos os brasileiros uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. Os incisos do comentado art. 170 estabelecem os princípios que orientam a ordem econômica nacional e entre eles encontramos a função social da propriedade (incluindo-se, por óbvio, capital e empresas- art. 170, inciso III ) e a busca pelo pleno emprego (art. 170, inciso VIII).

Disso tudo se conclui que a Constituição Federal de 1988, de forte espírito social, deu ao trabalho e ao Direito do Trabalho tratamento privilegiado, compatível com a importância que esse ramo do Direito representa para a dinâmica da vida social, econômica, política e jurídica do nosso país.

Infelizmente, as mais recentes decisões do Supremo Tribunal Federal a propósito de temas trabalhistas e a Lei 13.467/2017, que promoveu a chamada Reforma Trabalhista, não parecem atentar para os princípios que nortearam o constituinte de 1988 ao dispor sobre as relações de trabalho. Figuras jurídicas que pretendem substituir a relação de emprego da base fundante do modelo econômico nacional (‘pejotização’, terceirização), a admissão de que a negociação coletiva possa afastar as garantias legais, o enfraquecimento dos sindicatos, através da retirada do imposto sindical, a flexibilização de normas relacionadas à limitação da jornada, como banco de horas, redução do intervalo para repouso e alimentação, entre outros, têm demonstrado que a jurisprudência e a legislação ordinária pretendem andar em descompasso com o espírito e, até mesmo, com a literalidade da Constituição Federal de 1988, subvertendo a hierarquia das normas.

A cultura que permeia o ensino do Direito do Trabalho e a praxis nos tribunais juslaboralistas nacionais, por outro lado, é excessivamente apegada ao debate infraconstitucional, abdicando, muitas vezes, de amparar as argumentações nos ditames da Constituição Federal e das convenções internacionais, o que contribui para a baixa familiarização da sociedade brasileira com sua Carta Maior no que tange aos direitos sociais antes comentados.

Urge que se estimulem o estudo e o debate em nível constitucional para que o Direito do Trabalho e o direito ao trabalho gozem, no âmbito social, da dignidade e relevância que a Carta Magna lhes conferiu. E que assim possamos ser a pátria solidária, justa e produtiva que planejaram os constituintes de 1988.


*Advogada, Especialista em Direito e Processo do Trabalho.

1 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 518.

2 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional, p. 319.

3 BOMFIM, Vólia. Direito do Trabalho, p. 169.

Essa é uma série especial dedicada à Constituição Federal, que no dia 05 de outubro comemorou 34 anos de sua promulgação. Ao longo do mês passado, foram publicados artigos de opinião apresentando conceitos, perspectivas históricas, visões e críticas sobre a Constituição Federal Brasileira. Em decorrência das análises eleitorais da eleição de domingo, que ocuparam os últimos dias do mês, a série é finalizada hoje com este artigo. 

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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