Opinião
A conquista do sertão
A conquista do sertão
De GERALDO HASSE*
Para os primeiros habitantes do Brasil, estabelecidos principalmente no litoral do Nordeste e do Sudeste do país, avançar rumo ao oeste sempre foi a suprema aventura. Caminhar “para dentro” significava desafiar o perigo, correr grandes riscos (cobras, feras bravias, povos indígenas), sujeitar-se a doenças desconhecidas transmitidas por insetos e… criar um país.
Nessa lenta porém constante caminhada para o interior, os brasileiros tomaram efetivamente posse de um novo território. Quinhentos anos depois, a aventura continua e a conquista definitiva ainda parece longe do fim. “O deserto é o senhor da colônia”, escreveu o historiador Frederick J. Turner, tentando explicar a corrida dos pioneiros para o oeste dos Estados Unidos da América (do Norte).
Ao contrário dos colonizadores ianques, que só contavam com a força dos cavalos e dos próprios braços, os aventureiros modernos contam com máquinas sofisticadíssimas – de tratores a computadores e satélites. No miolo do Brasil abrem-se novos caminhos e inauguram-se novas cidades – tudo numa velocidade sem precedentes na história da humanidade.
Os brasileiros, financiados por consumidores de outros países, são os protagonistas centrais de uma das últimas e decisivas aventuras humanas em busca de espaço para sobreviver e produzir alimentos.
Uma das atividades mais primitivas dos seres humanos, a derrubada de matas para a implantação de lavouras é documentada via satélite por organismos internacionais, sob protestos veementes de ambientalistas alarmados com a devastação do planeta.
O Brasil contém hoje a maior reserva mundial de terras agricultáveis. São áreas que ficam principalmente no Cerrado, a última fronteira virgem antes da Amazônia, considerada o pulmão da Terra. Juntos, esses dois imensos biomas constituem as maiores reservas de água doce do mundo. Manejando o fogo, tratores, sementes transgênicas, computadores e satélites, os brasileiros jogam aqui não apenas o seu futuro como povo, mas o futuro da humanidade, talvez.
Não é apenas o oeste geográfico que está em jogo. No imaginário brasileiro há todo um oeste mítico desenhado como metáfora ao longo dos séculos. Repete-se aqui o fascínio ianque pelo oeste como espaço para a grande corrida da
sobrevivência.
O Cerrado, ex-sertão, ora temido, ora ignorado, é o território do contraditório: na busca da realização individual, milhões de pessoas esmeram-se na prática das mesmas técnicas agrícolas e mercantis, sujeitando-se aos ditames do Mercado, que sobressai como o verdadeiro senhor das colônias modernas.
Ao confundir-se com um horizonte ilimitado, o ex-sertão do Brasil Central representa hoje um espaço livre que precisa ser ocupado de qualquer maneira, a qualquer preço, não importando muito a qualidade da ocupação ou a
sustentabilidade do modelo adotado.
Estimulada pela demanda mundial, essa corrida cega, sem freios, transformou-se num movimento coletivo que se realimenta incessantemente da falta de perspectivas no litoral e das tradicionais promessas do sertão como espaço de fuga, escape e redenção.
Aqui o sucesso pessoal é medido por sinais externos como a extensão das fazendas, a capacidade de armazenagem dos galpões, o número de tratores e caminhões ou a largura dos pneus das camionetas. O que será dos brasileiros se
fracassarem nessa aventura descomunal?
BANDEIRISMO
Um dos mitos fundadores do Brasil, a conquista do sertão está presente no imaginário brasileiro desde as primeiras lutas pela independência, no final do século XVIII, quando os mineiros liderados por Tiradentes tentaram articular a revolta popular contra a exploração portuguesa. Não admira que o esforço para conhecer o país e dominar o território tenha contribuído para o surgimento de uma consciência nacional.
Diversos pensadores estudaram a contradição Litoral x Interior, mas ninguém foi mais fundo nessa investigação do que a socióloga carioca Nísia Trindade Lima. No livro “Um Sertão Chamado Brasil” (Revan, Rio, 1999), ela afirma que a consciência de que havia uma distinção entre os dois espaços apareceu apenas no início do século XIX. Não se tratava de uma simples diferenciação geográfica. Ou, seja, essa conscientização coincide com a declaração da independência.
Desde suas origens mais remotas, a dicotomia litoral x sertão tinha conteúdo crítico, pois já se percebia a distância cultural entre ambos. No litoral, sob influência da imigração peninsular, houve desde o início uma civilização
conservadora, “de empréstimo”, segundo Euclides da Cunha; já nos sertões, ao contrário, formou-se uma civilização mais aberta e original, conservadora também, mas portadora de uma cultura genuinamente americana, fruto do embate direto com a natureza. No interior e não no litoral estaria o cerne da nação brasileira. Daí a busca incessante da integração, ou de um encontro-resgate.
Os principais agentes dessa fusão cultural foram os bandeirantes, líderes de históricas incursões aos sertões ignotos. No início eles agiam por encomenda do império português, depois moveram-se também por iniciativa própria e sempre demonstraram um peculiar espírito de pioneirismo. Na busca de ouro e pedras preciosas, percorreram vastos espaços, mas não os ocuparam realmente. Vilas e cidades construídas para apoiar o garimpo e a mineração não lograram a autossuficiência senão após o fim da febre do ouro, quando parte da população se convenceu de que precisava buscar a saída na agricultura e na pecuária. Esse processo de colonização, bastante lento, foi executado pela pata do boi e as tropas de burros. Definitivamente, a partir de 1800, o antigo papel dos caçadores de esmeraldas passou a ser exercido por agricultores, criadores de gado e tropeiros.
No entanto, a inteligência brasileira demorou a se dar conta da contribuição dos bandeirantes em geral à criação de uma consciência nacional. Por muito tempo os intelectuais nativos tatearam no escuro, construindo ídolos de barro. Por exemplo, em certo momento do século XIX, quando esteve em voga a poesia indigenista de Gonçalves Dias, tentou-se entronizar o índio como símbolo da nacionalidade, mas esse apelo nativista esgotou-se com o sucesso dos Guarani – o romance de José de Alencar e a ópera de Carlos Gomes.
Mais tarde, registrou-se a tentativa de idolatrar o caboclo sertanejo, mas o tiro saiu pela culatra, resultando num estereótipo negativo — o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. Quanto aos modernistas promotores da Semana de Arte de 1922 em São Paulo, até hoje não se sabe muito bem o que queriam – fora o desejo de lavrar seu protesto contra o conservadorismo das academias, das elites e dos detentores dos poderes.
No trabalho dos intelectuais brasileiros, lembra Nísia Trindade Lima, a valorização do bandeirante como elemento-chave na formação da identidade nacional tornou-se recorrente a partir da pregação de Vicente Licínio Cardoso (1890-1931), sociólogo e engenheiro que procurou desconstruir a ideia (colonial, na sua opinião) de que a história do Brasil transcorrera toda ela na costa, como reflexo da tradicional relação com Portugal e a Europa.
É verdade que tanto no Rio como em outras cidades costeiras boa parte da população vivia de frente para o mar, à espera do que vinha da Europa, mas uma parcela minoritária do povo encarava a incorporação dos sertões como indispensável à formação da identidade nacional. Nasceu assim uma tensão que estaria viva até hoje, transparecendo, por exemplo, na forma como os nacionalistas brasileiros veem a conquista/preservação da Amazônia e do Cerrado – o que resta do sertão, enfim.
Em seu estudo sobre a dicotomia litoral/sertão, Nísia Trindade Lima destaca a importância dos livros de viagens e dos relatórios de missões científicas para a descoberta do país e a consequente formação de uma consciência nacional. Depois do ciclo das bandeiras tradicionais, essa corrida ao interior intensificou-se no início do século XIX com a chegada de cientistas europeus como Spix, Martius e Saint-Hilaire, cujos relatos se tornaram famosos. Entretanto, antes e depois dos pesquisadores ambulantes, diversos estudiosos brasileiros ou até mesmo estrangeiros identificados com a causa brasileira promoveram uma busca instintiva de razões e pretextos que permitissem ao país sobreviver sem vínculos de dependência a um padrão/patrão europeu. Paralelamente a esses esforços de pesquisa científica, realizava-se uma corrida espontânea por parte dos exploradores (materiais) dos recursos naturais do território.
Até hoje não se alcançou a autonomia desejada mas, à medida que se interiorizou, a identidade brasileira, originalmente “carangueja”, foi mudando de feição, num processo que se renova ao sabor das trocas entre esses dois polos da geografia econômica nacional: enquanto a cultura urbana vai impondo seus valores às populações rurais e suburbanas, a cultura sertaneja vai deixando sua marca no comportamento dos habitantes das cidades. Tanto tempo depois, prevalece hoje o consenso de que a brasilidade não está nesse ou naquele tipo isolado, mas na mistura, na miscigenação. Nesse sentido, a fusão do litoral com o sertão seria fundamental para dar origem a um Brasil organicamente americano, autônomo e feliz.
NACIONALISMO
Os autores mais identificados com a idéia do sertão como cerne da nacionalidade foram principalmente Euclides da Cunha, Alberto Torres, Monteiro Lobato e Roquette Pinto. Eles se situam no eixo central de um nacionalismo que serviu de estímulo e inspiração a iniciativas governamentais como a campanha pelo saneamento rural nos anos 1910, a Marcha para o Oeste no final da década de 1930 e a construção de Brasília na segunda metade dos anos 1950, sem contar expedições mais ou menos avulsas – como a Coluna Prestes, nos anos 1920; ou a Missão Rondon, desde o início do século XX — organizadas para desvendar a realidade do interior remoto.
A conquista do sertão brasileiro teve vários impulsos e um dos mais fortes esteve associado à construção de estradas de ferro entre 1870 e 1920. A morte de milhares de trabalhadores na abertura dessas estradas despertou os cientistas brasileiros para a necessidade de tratar doenças endêmicas como a malária, o mal de Chagas e a esquistossomose. Por isso Nísia Trindade Lima chega ao ponto de situar os higienistas liderados por Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Belisário Penna como uma espécie de novos bandeirantes – dispostos não a escravizar índios e capturar escravos fugidos, mas a libertar brasileiros da doença, da fome e da miséria. A pesquisadora carioca lembra especialmente a viagem do médico Julio Paternostro ao vale do Tocantins no período 1934/38: seu relatório, hoje esquecido, causou um choque ao comparar a vida das comunidades rurais tocantinenses à de populações de séculos passados.
É claro que as medidas oficiais em prol das populações do centro do país não correspondiam apenas a impulsos de fora para dentro; algumas dessas iniciativas eram também uma resposta a pressões originárias do próprio litoral superpovoado, onde muita gente via no interior desabitado uma saída para as periódicas crises nacionais. Além disso, procurava-se atender às brutais carências dos habitantes dos sertões, isolados pelas longas distâncias, fenômeno ainda atuante nos dias de hoje.
Embora desde o início do século XX os bandeirantes já tivessem sido apontados como líderes intrépidos da conquista do território nacional, a construção de seu mito ganhou impulso no final dos anos 1930, durante a ditadura de Getúlio Vargas. Os intelectuais franceses que fundaram a escola de sociologia de São Paulo – embrião da USP – encorajaram o estudo do bandeirismo, atribuindo-lhe um papel de vanguarda. Com isso não só agradaram a seus patronos, membros da elite paulista, mas deram – sem querer – um mote à ditadura estadonovista, tão carente de heróis.
Um dos que melhor souberam cantar o bandeirante como líder nacional foi o poeta paulista Cassiano Ricardo, intelectual que se deixou cooptar pela retórica nacionalista da ditadura varguista. Bem mais à esquerda, o sociólogo paulista Antonio Candido, em seu clássico Os Parceiros do Rio Bonito, reconheceu que o caipira do Sudeste herdou do bandeirante o laconismo, a rusticidade, o nomadismo e a capacidade de adaptação ao meio sobrevivendo com o mínimo.
Graças a esses e outros estudos, tornou-se mais ou menos consensual atribuir ao ímpeto bandeirante a extensão das fronteiras do Brasil além da linha imaginária traçada em 1494 pelo Tratado de Tordesilhas, pelo qual os reis de Espanha e Portugal dividiram entre si a América do Sul. Nesses vastos territórios situados no miolo do Brasil plantou-se paulatinamente uma réplica do modelo econômico institucionalizado no litoral sob o governo luso (até a independência), mantido por influência inglesa (até a república) e acelerado por meio do patrocínio ianque (na
maior parte do século XX).
EMPREENDEDORISMO
Não importa sob tutela de quem se realizou, o avanço sobre os espaços virgens do interior teve desde sempre um caráter missionário, como se a exploração das florestas e a posse da terra contivessem uma promessa de libertação. Ao confundir-se com um horizonte ilimitado, o Brasil Central sempre prometeu redenção aos aventureiros que ousaram adentrá-lo, perseguindo o mito do enriquecimento. Como um determinismo histórico, parece estar disseminada no inconsciente coletivo brasileiro a noção de que é preciso levar adiante a ferro e fogo o trabalho pioneiro de desmonte ambiental e conquista territorial iniciado pelos bandeirantes.
O mito do heroísmo bandeirante continua presente no imaginário brasileiro moderno e se reproduz no elogio constante aos empreendedores que desafiam os riscos mais primitivos e transformam os ambientes naturais, gerando progresso e implantando os valores da civilização capitalista nos meios mais distantes – hoje no Cerrado e na Amazônia. Não é por acaso que entre os tipos mais admirados do Brasil contemporâneo se destacam os derrubadores de florestas (como o capixaba Rainor Greco), os abridores de estradas (como o paulista Sebastião
Camargo), os construtores de barragens (o mineiro Mendes Junior), os criadores de cidades (o paranaense Enio Pipino, fundador de Sinop, MT) e os campeões da agricultura (como os paulistas José Cutrale e Takayuki Maeda, famosos como reis da laranja e do algodão).
Não raro, esses tipos se tornam ministros ou disputam cargos legislativos ou executivos. O mais recente exemplo de empresário atuante na política vem do sojicultor Blairo Maggi, migrante que trocou o Sul mini fundiário pelas terras sem fim do Mato Grosso. Já em meados da década de 1990 ele era apontado como o rei da soja em lugar do empreiteiro-banqueiro Olacyr de Moraes.
Festejado pelos políticos, Maggi tornou-se suplente de senador antes de eleger-se governador do Estado do Mato Grosso em 2002. Consciente de que a deficiência logística é o calcanhar-de-aquiles do miolo do Brasil, ele viabilizou a exportação de soja pela hidrovia do rio Madeira, afluente do rio Amazônas, e fez da construção de estradas uma prioridade. Como profeta de um Brasil neoliberal, candidatou-se à Presidência da República.
Não chegou sequer a concorrer, mas a partir de meados de 2016 assumiu o cargo de ministro da Agricultura do governo-tampão do vice-presidente Michel Temer, empenhado em desmantelar conquistas democráticas em favor de um modelo superado de capitalismo selvagem. De forma explícita, tendo como porta-bandeira o festejado rei da soja, o bandeirantismo moderno presente no Centro-Oeste está vivo no espírito empreendedor de brasileiros dispostos a trabalhar dia e noite pelo enriquecimento pessoal.
*Jornalista, autor do livro O Brasil da Soja (L&PM, 1996).
Foto da vegetação no entorno do Morro Cabeludo, no Parque Estadual dos Pireneus, em Goiás – Wikipédia.
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