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A Religião e o Ópio
A Religião e o Ópio
Por JOÃO PEDRO CASAROTTO*
Os dois se encontraram na mesma mesa do bar onde sempre se reuniam no final da tarde para tomar um café, uma água e conversar sobre o dia a dia deles e da sociedade em que viviam.
Hoje voltei a ouvir a expressão de que “a religião é o ópio do povo” – disse o mais velho.
Sim, – disse o mais jovem – é uma expressão bastante citada quando são debatidas as obras de vários filósofos sobre religiões.
– Pois é, disse o mais velho, mas eu fiquei pensando se essa expressão ainda se aplica nos nossos tempos.
A propósito, lembro de um texto que li há muitos anos onde o autor, do qual infelizmente não lembro o nome, afirmava que diante do enorme consumo de drogas, tanto as ditas lícitas quanto as ditas ilícitas, que se verificava em nossa sociedade, talvez fosse o caso de inverter a ordem das palavras passando-se a afirmar que “o ópio é a religião do povo”.
O mais jovem ficou pensando alguns minutos e ponderou:
– Mas alguns filósofos afirmavam que as religiões eram utilizadas para alienar as populações das realidades sociais.
E continuou o mais jovem.
– Aliás, essa expressão chegou a ser adaptada ao futebol quando algumas pessoas afirmavam que “o futebol é o ópio do povo”.
– Bem, meu caro jovem, mas creio que aí essas pessoas exageraram na dose, afinal, o futebol é um dos lazeres das pessoas e, sem sombra de dúvidas, o lazer é essencial para a vida saudável do ser humano.
Voltando ao assunto inicial, o mais velho continuou.
– Creio que também estavam exagerando aqueles filósofos que tentaram desqualificar as religiões ao compará-las com aquele narcótico.
– Pelo que lemos na história humana, os povos sempre tiveram as suas religiões e quando uma ou outra deixasse de ser praticada ou fosse desqualificada outra era fundada para ocupar o espaço vazio, e isso ocorre ainda hoje o que demonstra que os seres humanos não conseguem viver sem uma religião, uma seita, uma crença ou uma fé que os conectem com o divino, com o transcendental, com o sobrenatural.
E continuou o mais velho.
– A vinculação do homem ao divino está presente inclusive naquelas sociedades que seguem ao pé da letra partes de escrituras que reportam sobre divindades rancorosas, vingadoras e belicosas.
– Assim, creio ser possível afirmar que todo o ser humano está indelevelmente vinculado a uma divindade, mesmo sendo ela um produto da imaginação.
– Além de serem utilizadas para a conexão com o divino, as religiões preenchem a necessidade das pessoas de terem o sentimento de pertencimento ao oferecerem o aconchego daquele grupo social que as praticam e, com isso, elas evitam que as pessoas busquem esse mesmo aconchego em grupos de pessoas que se organizam para praticar atos que são nocivos à sociedade por se sentirem ilhadas, sozinhas, abandonadas, desamparadas, isoladas.
– Portanto, me parece que a expressão que faz analogia da religião com o ópio está extremamente equivocada.
O mais velho parou por uns instantes, pensou e continuou.
– Me parece, inclusive, que o equívoco desses filósofos deve ser reconhecido até por aqueles que se dizem deístas, racionalistas, ateístas, descrentes, materialistas …
– Opa, me parece que essa conclusão não consegues sustentar.
– Creio que posso sustentá-la, sim, meu jovem.
– Vamos desenvolver um raciocínio sobre a importância das religiões na organização das sociedades sob um enfoque bem pragmático e realístico.
nquanto o mais velho pensava em como iria introduzir o assunto, o mais jovem disse:
– Agora, meu velho, fiquei mais curioso ainda, pois, quando dizes que até um ateísta deveria defender uma ou outra religião, me parece que entrastes em um terreno escarpado.
Adotando uma postura professoral, o mais velho começou a explanar o seu ponto de vista.
– Veja, meu caro jovem, nos estudos que abrangeram escrituras sagradas de civilizações que existiram há várias dezenas de séculos até as dos dias de hoje os pesquisadores afirmam que a pregação da empatia e da compaixão é um ponto de convergência entre elas.
– Cada religião tem seus textos sagrados, seus guias morais, que são escritos com palavras próprias, mas, na essência, alguns preceitos imperiosos são iguais em todas elas como, por exemplo, o de não matar, não adulterar, não furtar, não dar falso testemunho e o de não cobiçar as coisas alheias.
E continuou o mais velho.
– São regras simples e claras, que todos nós concordamos que devem ser adotadas por toda e qualquer sociedade humana.
– Essas religiões também têm em comum uma outra regra que foca a saúde mental e o bem-estar das pessoas e, consequentemente, da sociedade, que é o mandamento de não trabalhar em algum dia da semana bem como nos dias do ano que são chamados de feriados.
Neste momento, o mais jovem interrompe a explanação e afirma.
– Ei, meu velho, calma lá, mas essas regras também são estabelecidas pelo Estado, ou seja, nada há de novo nisso.
– Aí é que te enganas, meu jovem, não podes te esquecer que essas regras são anteriores a qualquer lei, portanto as nossas atuais leis foram inspiradas nesses mandamentos.
O mais jovem o interrompe mais uma vez e fala.
– Tudo bem, vou concordar que as religiões tiveram um papel importante na organização das diferentes sociedades, mas, como essas regras religiosas já estão incorporadas ao arcabouço jurídico do Estado, atualmente não precisamos mais delas.
– Negativo, não podes te esquecer que as leis do Estado são continuamente alteradas, tanto para melhor quanto para pior, enquanto as regras das religiões vêm se mantendo ao longo de milênios e continuam servindo de farol tanto para a organização quanto para a reorganização das sociedades eventualmente desestruturadas.
– Está bem, mas não sejamos pessimistas e vamos considerar que, como o Estado já incorporou essas regras religiosas, dificilmente as pessoas aceitarão retrocessos nesses pontos.
– Afinal, meu velho, o Estado é formado pelas mesmas pessoas e se o Estado cumpre o seu papel as religiões se tornam totalmente desnecessárias.
Neste momento, o mais velho o interrompe.
– Ótima colocação, meu jovem, pois ela me permite te mostrar o quanto estás equivocado ao não ver a enorme diferença que existe entre o Estado e a religião na aplicação dessas regras.
– Continuando a abordar o tema somente sob o aspecto bem pragmático, bem realista, posso te assegurar que as religiões são mais importantes e muito mais eficazes que o Estado na aplicação dessas regras.
– Ei, calma lá, meu velho, as religiões não têm o poder de polícia que tem o Estado, portanto, a eficácia do Estado é, seguramente, bem mais contundente e mais efetiva que a das religiões.
– Este é um dos pontos fulcrais da questão, pois, meu caríssimo jovem, o Estado tem o poder de polícia, mas esse poder depende da existência de um pormenorizado regramento legal, seja constitucional ou infraconstitucional.
– Se uma pessoa transgride uma regra social, como, por exemplo, a de não furtar, ela só poderá ser condenada pelo Estado se houver previsão legal, se houver provas da transgressão e se houver um minucioso processo administrativo onde tudo isso fique perfeitamente comprovado.
– No entanto, se a pessoa tem interiorizada a regra religiosa ela fica muito mais inibida de transgredir o mandamento religioso de não furtar, pois ela terá receio da condenação moral do grupo social ao qual pertence assim como terá medo da condenação divina.
– Lembras, meu jovem, que as religiões ensinam para os seus seguidores que a divindade é onipresente e onisciente, ou seja, a divindade está em todos os lugares ao mesmo tempo, consegue ver tudo e está sempre presente em todos os momentos das nossas vidas.
– Portanto, enquanto o Estado age inibindo a transgressão com a possibilidade da aplicação de algum tipo de sanção como a prisão, a pecuniária ou a restritiva de direito, as religiões agem no sentido de inibir a transgressão pela consciência, pelo sistema de valores morais, da pessoa.
– Assim, a pessoa transgressora sabe que a punição do Estado só acontecerá se a transgressão vir a ser descoberta e se for legalmente provada em um detalhado processo burocrático, o que, convenhamos, pode ser fácil numa população pequena, mas é muito difícil em localidades onde habitam centenas de milhares ou de até milhões de pessoas.
– No entanto, a punição da religião não dependerá de descoberta e de comprovação, pois a divindade que aplicará a pena é testemunha da transgressão, já que ela, a divindade, está sempre, dia e noite, junto à pessoa.
– Por isso, meu jovem, fica muito claro que as religiões são muito mais eficazes que o Estado na construção de uma sociedade mais solidária, mais justa e mais harmonizada, pois elas passam a ser uma filosofia de vida que impulsiona as pessoas a terem um novo propósito.
– Assim, meu caríssimo jovem, as religiões ao transmitirem às pessoas um forte sentimento de pertencimento e uma revigorante visibilidade social lhes dá a segurança necessária para aceitarem os reveses da vida por acreditarem que nunca ficarão desamparadas.
– Além disso, a principal sensação que a religião proporciona às pessoas é a da proteção da divindade que tudo pode e que as proverão sempre que elas necessitarem.
– Assim as pessoas fortalecem profundamente as suas autoestimas, que é um sentimento fundamental para todo o ser humano.
– Pois é, meu velho, mas temos visto que pessoas se utilizam de religiões para explorar as pessoas.
– Sim, é verdade, meu jovem, e esse fato nos leva a duas constatações:
– A primeira é a de que as pessoas tanto necessitam dessa conexão com o divino que chegam ao cúmulo de permitir que pessoas inescrupulosas as manipulem.
– E a segunda constatação, é a de que as autoridades constituídas estão sendo, perigosamente, coniventes com essas pessoas manipuladoras, pois permitem que elas explorem a boa-fé e a confiança das pessoas.
– Pois é, meu velho, preciso pensar melhor sobre isso.
Como sempre, eles se despediram com um “até a próxima” e saíram.
*João Pedro Casarotto é auditor; especialista em operações financeiras, finanças e dívidas públicas.
O texto acima integra o livro.
Foto de capa: IA
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