Opinião
7 mil toneladas de arroz orgânico
7 mil toneladas de arroz orgânico
De HULI MARCOS ZANG* e ROBERTO E. ZWETSCH**
Atrás desse número significativo existe muito mais que quantidade. Este é o volume de arroz orgânico que o Assentamento Filhos de Sepé do MST está colhendo na safra 2022/2023, em Viamão, RS, 26 km da capital Porto Alegre. Uma localização privilegiada para um Assentamento que teve seu início em 1998, final do governo Antônio Britto, em pleno Governo FHC. A área de 9.470 hectares pertencia a um proprietário do grupo Correio do Povo e tinha dívidas com a União. Vivia em Nova York. Como não pagou por anos a dívida, a propriedade foi considerada prioritária para a Reforma Agrária. Naquele ano, depois de muito tempo pressionando em acampamentos de beira de estrada, 376 famílias conquistaram o direito à terra, dando início ao Assentamento Filhos de Sepé. Era o início do governo de Olívio Dutra, que auxiliou no desenvolvimento do Assentamento. Desde o início os assentados precisaram negociar com o INCRA, além de receberem mais tarde apoio da EMATER/RS. Em certo momento o Banco do Brasil apoiou a transição para o arroz orgânico.
Estive lá com colegas da Faculdades EST quando as centenas de famílias ainda tiveram de morar por um bom tempo embaixo das lonas pretas num particular bairro camponês. Mas então, finalmente, em terra conquistada para resistir e produzir, segundo o lema irredutível do MST. Foi uma luta árdua e cheia de percalços. No início o povo teve de
se organizar para saber como ocupar aquele território de mais de 9 mil hectares, dos quais cerca de 2.543 hectares eram área de proteção ambiental e reserva legal, que foram unificados criando-se com o decreto Nº 41.559º a Unidade de Conservação Integral Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos. Toda a área do Assentamento está inserida na APA do Banhado Grande. O MST e as famílias acordaram com o INCRA e entidades ambientais produzir respeitando a riqueza da fauna e flora do banhado, típico do RS. Com a assessoria do INCRA, depois de muito debate, dividiram a área em 4 setores, A, B, C e D, nos quais cada grupo formou sua agrovila e organizou suas formas de trabalho e de produção. A área já tinha uma prioridade agrícola, o arroz plantado na forma convencional de produção, com utilização de muito maquinário, defensivos tóxicos aspergidos por pequenos aviões agrícolas. Boa parte dessas famílias veio do norte e noroeste do RS e tinha outra tradição agrícola, mais voltada para as culturas tradicionais de terras dobradas, como feijão, milho, batata, aipim, hortas pequenas e frutíferas. Tiveram de se adaptar e estudar como plantar arroz.
Foi um longo e duro aprendizado, mas em certo momento tiveram de tomar a decisão que mudou sua vida e a de todo o Assentamento. Algumas poucas famílias decidiram que no seu pedaço de terra iriam plantar arroz orgânico e sem veneno. Ousadia que não foi bem vista por boa parte das famílias parceiras. Mas esse pequeno grupo não voltou atrás. Persistiu, aprendeu e colheu adiante os frutos de sua ousadia! As primeiras colheitas foram pequenas depois de um exaustivo trabalho. O plantio feito a mão, os homens metidos na água até a cintura, o barraco ao lado da lavoura em condições por demais precárias, as noites infestadas de mosquitos, a alimentação preparada em fogões
de barro, tudo parecia conspirar contra a nova opção. Mas esse grupo não se deixou abater. Com a ajuda de outros assentamentos, a imprescindível assessoria técnica, a utilização de tratores e depois de colheitadeiras dessas parcerias, a produção do arroz orgânico foi crescendo ano a ano.
Bem depois o Projeto ganhou uma Cooperativa de Produção e Beneficiamento de Arroz, já então com uma estrutura bem mais sofisticada. As variedades de arroz foram se multiplicando, a produção crescendo ano a ano, a técnica de produção e colheita se sofisticando, o que melhorou muito as condições de trabalho das pessoas. Foi assim que
mais famílias aderiram ao projeto. Hoje se associam à produção do arroz orgânico em Viamão 125 famílias, enquanto a diversificação de qualidades de arroz sobe até 15 diferentes variedades de arroz coloridos e integrais. Filhos de Sepé se tornou o Assentamento com a maior produção do MST no RS com 1.600 hectares de área plantada do alimento e um modelo de produção, beneficiamento e pesquisa na área do arroz orgânico. Mas é importante destacar que, além do carro chefe do projeto, as famílias ainda se dedicam a produzir hortaliças, feijão, milho, ovos, produção de pães e outros alimentos, sucos, mel, e muitas frutas. É um território com vocação de produzir alimentos de grande quantidade e qualidade. A comercialização desta produção de alimentos orgânicos é realizada quase que na totalidade em feiras, programas de doação para famílias carentes e para a alimentação escolar.
O MST se tornou nos últimos dez anos líder na produção de arroz orgânico não só no Brasil como também na América Latina, segundo o IRGA – Instituto Riograndense do Arroz. Por isso, o destaque em âmbito regional e nacional, uma vez que por aqui ainda predomina a produção do arroz convencional a base de agrotóxicos e grande consumo de água. Algumas grandes redes de supermercados se tornaram compradores de parte dessa produção que normalmente segue, primeiro, para as Feiras Agroecológicas regionais ou aos pontos de venda do próprio MST que começam a se diversificar pelo país, até mesmo em Brasília, capital federal. O MST prova assim que é possível adotar com qualidade e quantidade a agroecologia como modelo tecnológico de produção alternativo e bem sucedido, de modo a oferecer alimento saudável e diversificado à mesa das famílias consumidoras das cidades. Não por acaso uma das maiores divulgadoras e apoiadoras dessa produção é a culinarista e apresentadora Bela Gil, conhecida como especialista em alimentação saudável.
Segundo Nelson Krupinski, do Grupo Gestor do Arroz Agroecológico, a 20ª Festa da Colheita do Arroz Orgânico, realizada em 17 de março passado, num território 100% livre de agrotóxicos e de sementes transgênicas, atestado por organismos internacionais, é um evento simbólico de grande expressão, pois reforça o compromisso do MST com a vida e a defesa do meio ambiente. Mostra ainda que é possível investir, com a ajuda de tecnologia limpa e inteligente, em produção de alimentos saudáveis que irão – estes sim – matar a fome do povo brasileiro, que tem atingido milhões de pessoas e famílias pelo país afora nos últimos anos. Foi esta a situação que fez o Brasil voltar ao Mapa da Fome da ONU, o que significou um retrocesso criminoso em relação às famílias e às crianças mais pobres do país.
Nesta safra de 2023, o MST vai produzir em torno de 16 mil toneladas de arroz orgânico no RS, numa área de 3,2 mil hectares, produção que vem de 352 famílias organizadas em 7 cooperativas de 22 Assentamentos presentes em 9 municípios do estado. Segundo os responsáveis, os dois principais tipos de arroz produzidos são o agulhinha e o cateto, além das variedade do arroz vermelho, negro e aromático. As cooperativas do MST industrializam o arroz e logram oferecer o produto pronto para o consumo nas marcas das cooperativas como Terra Livre, Origem Orgânica e Coopan. Podem ser adquiridos na forma integral, polido e parboilizado. No Filhos de Sepé, mais precisamente na indústria da cooperativa local – COPERAV – se pode acompanhar a embalagem do arroz numa pequena máquina que acondiciona o produto a vácuo, de modo que ele pode ser preservado por um bom tempo sem perder suas características e valor nutricional.
Um dos desafios assumidos no evento do dia 17 de março foi dar início a uma Unidade de produção de Bioinsumos, primeiro para o próprio assentamento e depois para oferecer aos demais assentamentos que se dedicam à produção agroecológica. Esta Unidade foi viabilizada numa parceria entre o MST, a Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (COOTAP) e a Associação Internacional para Cooperação Popular (BAOBAB). A partir desse novo projeto, os assentados que produzem arroz orgânico poderão produzir seus próprios insumos, o que é uma mostra de sua busca por autonomia e menos dependência das grandes empresas. Por tabela, evidentemente, haverá crescimento da renda das famílias, melhoria da fertilidade dos solos e maior proteção do meio ambiente e da saúde das milhares de pessoas envolvidas nessa produção e também no consumo de um alimento totalmente saudável.
O Assentamento Filhos de Sepé acolheu desde 2022 um dos mais importantes projetos educativos do MST, Instituto de Educação Josué de Castro, antes localizado em Veranópolis, e que agora optou em se instalar neste território. Logo poderá receber mais de 100 jovens oriundos de assentamentos de todo o Brasil e até da América Latina que buscam formação técnica em agroecologia e cooperativismo, e que se preparam para retornar aos seus lugares de origem qualificados para dar continuidade a um projeto de produção e de vida que supera todos os parâmetros conhecidos no país em termos de formação técnica. Mas este é tema para outra oportunidade.
Como diziam em uníssono as milhares de pessoas presentes na Festa, mais de 4 mil pessoas, podemos nos juntar ao seu coro proferindo o lema: Reforma Agrária Popular: TERRA! COOPERAÇÃO E AGROECOLOGIA! Viva a Reforma Agrária! PATRIA LIVRE, VENCEREMOS!”
*Agricultor agroecológico do Assentamento Filhos de Sepé, Tecnólogo em Processos Gerenciais; Coordenação da Cooperativa dos Produtores Orgânicos da Reforma Agrária de Viamão – COPERAV, Viamão, RS.
**Pastor luterano, professor de Teologia vinculado ao Grupo de Pesquisa Identidade Étnica e Interculturalidade do PPG de Faculdades EST, São Leopoldo, RS; membro da Coordenação Nacional da PPL – Pastoral Popular Luterana.
Foto: Jorge Leão/Brasil de Fato RS
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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